Valdir Aguilera
 Físico e pesquisador

 

 

A entidade humana

Tartaruga Barros

– Encontrei um tálus – disse a ratazana. – Era a parte que faltava.
O corvo saltou do topo da castanheira e mergulhou até o chão, abrindo as asas logo antes de bater e estraçalhar os ossos. Pegou no bico o ossinho que a ratazana segurava entre as patas. Ajeitou-o com as garras da pata direita. Ainda tinha perfume de sangue, mas a ratazana já tinha limpado a carne. O osso estava bom, inteiro. O corvo aprovou e levou-o até o topo da árvore, onde já se conectavam os outros ossos de um pé humano. Ajeitou o tálus entre o calcâneo e o navicular.
– Perfeito – bateu as asas de satisfação. – O primeiro pé está completo.
– Direito ou esquerdo– – perguntou a ratazana lá de baixo.
– Não sei. Faz diferença?
  
– Se você quer construir um humano, vai precisar dos dois.
– Tem razão, tem razão. – O corvo saltitou pensativo em volta do pé montado com ossos recém-descarnados. – Me diga você. Tenho um problema de lateralidade.
A ratazana escalou a única árvore naquele campo em que pululava vida: a castanheira de tronco pretejado. O preto que tingiu a castanheira não veio de fogo. O incêndio que se deu ali foi de sangue humano. As labaredas da morte lamberam o campo de batalha, o tronco da castanheira, as espadas, tão metálicas, tão brutas, tão ousadas. Depois tão carne.
E a morte dançando em invisíveis chamas, brincando de misturar sangue e lama, aço e carne humana. Flechas estalando pelo ar que nem brasas se apagando. Um corpo a mais no chão, uma tora a mais no fogo morto. Dor azul, sangue escuro, preto igual ao tronco da castanheira só.
– É o esquerdo – disse a ratazana. – Precisamos do direito.
– O difícil é tirar da bota, ainda com tanta carne em volta – disse o corvo. Estava sendo pessimista, pois não gostava de carne de pé. Dura, seca, tudo calo.
Já a ratazana considerava pé um tipo de iguaria, com um cheirinho todo especial. Até a dificuldade em separar carne, osso e unha dava um quê de chic para a carne podal.
– Procure os camponeses, os mais pobres – ela disse. – As botas já vêm rasgadas, grandes demais. É mais fácil de tirar.
– Mas os ossos sob armadura costumam ser mais inteiros.
– E a carne, mais curtida. – A ratazana lambeu os bigodes.
Encontrar pés descalços foi mais fácil do que o corvo imaginou. Já há muitas semanas a morte se transformara em cinzas e a vida retomara o campo em forma de fome. Primeiro a fome de coisas, típica humana (e de alguns poucos pássaros colecionadores). Coisas brilhantes, tilintantes, até mesmo roupas ainda utilisáveis. Todas as botas prestáveis para pés humanos foram levadas por humanos mesmo, o que facilitou o trabalho da fome que inundou o campo a seguir: a fome de carne morta, de uma podridãozinha apetitosa, de afiar a língua numa cartilagenzinha, descansar os dentes num tendão desses que se ficam mastigando, mastigando, que nem tabaco em corda.
Antes mesmo de os humanos terminarem sua colheita, já lá estavam as gralhas, uns cães, os ratos, ratazanas, o urubu que arrancava fatias da parte interna de uma coxa, jogava-as para o alto, deixava-as cair direto no estômago. Saboreava o feito por um minuto, abocanhava a próxima fatia.
A ratazana passou correndo pelo urubu, o corvo sobrevoou sua cabeça sem plumas.
A ratazana foi apontando pé após pé. Os ratinhos de campo ajudaram a desencavar calcâneo, cuboide, metatarso, mas o corvo perfeccionista apontava a falange proximal e:
– Está gasta. – Ou: – O cuneiforme lateral está trincado.
Até que um cachorro se sentou, varreu as pulgas da orelha e disse:
– Pega o cuneiforme lateral daquele arqueiro decapitado ali atrás e põe neste pé aqui. Pronto.
O corvo gostou tanto da ideia que saiu ao campo em busca dos ossos mais bonitos para formar o pé direito do seu humano em cima da árvore.
– Só que esta falange distal é de pé esquerdo – apontou a ratazana.
– É que eu tenho um problema de lateralidade.
Uma revoada de gralhas se uniu à empreitada e ajudou o corvo e a ratazana a levarem os ossinhos para cima da árvore.
Montados os pés, veio o problema das pernas. Como carregar para o topo da castanheira uma tíbia, um fêmur– Os cachorros trouxeram tudo para os pés enraizados da castanheira de tronco preto, mas cachorro não sobe em árvore.
O urubu se prontificou. Poderosas asas em câmera lenta, a cada batida um pequeno furacão. O fêmur foi subindo em degraus incertos, uma escada em caracol feita de vento arenoso ao redor da árvore. Caía um pouquinho, a cada batida de asa, mas subia sempre um pouco mais do que descia. Finalmente chegou ao topo da castanheira.
Foi preciso o urubu descansar entre uma perna e outra. Enquanto isso, os ratos iam trazendo pedaços de esqueleto para o corvo selecionar. Ele virava osso por osso em suas garras, chegava bem perto com seus olhos de lupa. O rádio mais bem acabado, a costela mais ricamente arqueada, esses ele passava para as gralhas, que poliam tudo com seus bicos fortes.
Para erguer o ílio no ar, o urubu precisou da ajuda de mais outro urubu, que se aproximou da empreitada para perguntar:
– Mas para quê vocês querem construir um humano em cima da árvore– 
Ao que o corvo respondeu:
– Porque um humano morto no topo da árvore é a certeza de que os humanos vivos jamais perturbarão esta área.
As gralhas ajudaram os ratos a montar a coluna. Vértebra por vértebra (previamente selecionadas pelo corvo) elas foram depositando nas patinhas peladas dos ratinhos delicados.
– Mais para lá – guiava a ratazana de um galho distante, onde tinha melhor visão.
E os ratinhos encaixavam a vértebra milimetricamente. Aconteceu que uma das gralhas errou a ordem das coisas, trouxe uma vértebra na hora errada e a ratazana só foi perceber quando já haviam encaixado outras quatro vértebras em cima da errada.
– Não – disse o corvo. – Se eu quisesse defeito, pegava já uma hérnia.
As gralhas ergueram de novo as vértebras no ar até que os ratos conseguissem retirar a que tinha vindo errada.
Houve uma pequena discussão sobre a ordem das coisas. Os urubus queriam colocar primeiro o externo, mas os ratos e as gralhas estavam empolgados com as costelas.
– Vai ser mais difícil colocar o externo com as costelas no meio do caminho – disse o primeiro urubu.
Aproximou-se um terceiro urubu e, embora as gralhas fossem em maior número, ninguém ali queria brigar com três urubus. Colocou-se primeiro o externo, depois as costelas.
O corvo se deteve um pouco na escolha das ulnas. Muitas vinham quebradas, outras distorcidas pelo estilo de vida do defunto. A maioria era simplesmente feia. Um osso tão simples não devia ser tão irritante. Por fim o corvo escolheu uma ulna para cada braço e foi analisar os crânios.
Os animais haviam acumulado centenas de crânios debaixo da castanheira. Era o osso favorito de todos. Recheado de cérebro, saborosos olhos, umas cartilagenzinhas saudáveis, línguas bojudas.
Centenas de caveiras e o corvo examinou uma a uma. Os ratos gostavam mais de maxilares pequenos, as gralhas queriam o osso zigomático afundado, os cães pediam por osso frontal pouco proeminente. Coisa séria escolher crânio. Aqueles buracos todos dizendo coisas, implorando por vida mesmo que só vida em osso; engolindo gritos sem garganta. Os crânios humanos são todos tristes, sem bico e sem focinho.
Vários dias se passaram enquanto o corvo selecionava o crânio. O resto do esqueleto estava pronto, lá em cima da castanheira. Os animais todos assistiam em silêncio a minuciosa análise do corvo, que finalmene escolheu um com órbitas menores que as outras. Dava a impressão de que o crânio apertava os olhos para enxergar melhor, encarar. Esse crânio gerou admiração nos cães, até nos urubus. Ele era ousado, não triste.
Dois urubus ergueram a caveira para o topo do esqueleto no topo da árvore. Haviam montado os ossos de forma que os braços ficaram abertos. As cabeças dos cães e das gralhas se moviam para cima e para baixo conforme os movimentos incertos do crânio que subia em asas. A própria ratazana esperava no topo da espinha cervical para receber o osso último. Rotacionou- o, encaixou-o.
Ficou perfeito.
Como o corvo havia prometido, nenhum humano vivo chegou perto daquele campo. Passavam longe da castanheira macabra, com centenas de crânios aos pés e um esqueleto de braços abertos no topo. Mais macabro
ainda era o fato de o esqueleto ter dois braços esquerdos (o corvo havia se confundido na hora de escolher os ossos). Como o corvo havia prometido, nenhum humano vivo chegou perto daquele campo. Passavam longe da castanheira macabra, com centenas de crânios aos pés e um esqueleto de braços abertos no topo. Mais macabro ainda era o fato de o esqueleto ter dois braços esquerdos (o corvo havia se confundido na hora de escolher os ossos).
Os animais, mesmo os que não haviam participado da cosntrução, fugiam para lá quando perseguidos por caçadores humanos. Ali, só a natureza podia matá-los.
– Eles têm uma entidade, não têm – perguntou a ratazana.
– Quem– disse o corvo.
– Os humanos. Eles têm uma entidade morta de braços abertos, a qual todos temem.
O corvo fez um único aceno lento com a sábia cabeça.
– Sim, ratazana, essa entidade existe. Se chama Espantalho.

Ilustrações da autora

De "A entidade humana" para "Biblioteca"