As 1001 noites - As aventuras de Simbad, o marujo
No reinado do califa Harun ar-Rachid,24 vivia em Badgá um carregador muito pobre chamado
Hindbad. Um dia, sob forte calor, Hindbad transportava uma carga muito pesada de um extremo a outro da
cidade. Cansado, parou perto de um grande palácio, de cujas janelas provinham um delicioso perfume e o
som harmonioso de instrumentos e de pássaros.
A música e o cheiro apetitoso dos mais requintados pratos levaram Hindbad a concluir que ali acontecia
um grande banquete. Querendo saber quem morava naquele lugar luxuoso, perguntou a um dos criados
que estavam na entrada do palácio como se chamava seu dono. Esta foi a resposta:
– O quê? Você mora em Bagdá e não sabe que esta é a morada de Simbad, o famoso navegante
que percorreu todos os mares iluminados pelo sol?
O carregador que, de fato, tinha ouvido falar em Simbad, sentindo inveja desse homem, disse:
– Ó poderoso criador de todas as coisas, que diferença existe entre a minha situação e a de
Simbad! Eu tenho de trabalhar como um condenado e suportar mil males todo dia! Enquanto isso,
Simbad gasta suas imensas riquezas numa vida cheia de prazeres. Que foi que ele fez para merecer tanta
felicidade? Que eu fiz para merecer um destino tão desgraçado?
O carregador estava entregue a esses pensamentos, quando um criado saiu do palácio e tomou-o pelo
braço, dizendo:
– Venha comigo! Meu senhor quer falar com você.
Hindbad quis escapar, temeroso de que o senhor do palácio quisesse castigá-lo pelas palavras que ele
tinha dito. Mas o criado não o deixou ir embora e o conduziu a uma grande sala. Ali, em volta de uma
mesa repleta de iguarias estavam sentadas muitas pessoas; no lugar de honra, via-se um homem de barbas
brancas, cercado de criados. Era Simbad.
O carregador tremia vendo aquelas pessoas e um banquete tão requintado. Simbad o chamou, fez que
se sentasse à sua direita e ele próprio o serviu daquela comida deliciosa. Terminada a refeição, Simbad
disse ao carregador:
– Ouvi o que você dizia lá fora. Não sou injusto, por isso não guardo rancor contra você. Aliás, lamento
a sua sorte. Mas você se engana em achar que eu conquistei o que tenho sem dificuldade e sem muito
esforço. Não se iluda: cheguei a esta minha situação depois de sofrer por muitos anos tudo o que de
penoso podem sofrer o corpo e a alma! Corri tantos perigos em minhas viagens pelos mares!
E passou a narrar suas aventuras. Das sete viagens de Simbad, uma das mais espantosas foi
a seguinte, contada pelo próprio marujo:
De minha família herdei bens consideráveis, cuja melhor parte dissipei na extravagância da minha
mocidade. Recobrei as luzes, porém, e, voltando a mim, reconheci que as riquezas são perecíveis, e
que em breve lhes veria o fim, consumindo-as como fazia. Pensei também estar a gastar
pessimamente, numa vida desregrada, o tempo, que é o que de mais precioso existe no mundo. Refleti
que devia ser a última e mais deplorável de todas as misérias ser pobre na velhice. Lembrei-me
destas palavras do grande Salomão, ouvidas certa vez da boca de meu pai "É menos triste estar no
túmulo do que na indigência".
Impressionado com aquelas reflexões, reuni os restos do meu patrimônio. Vendi em leilão em
pleno mercado tudo quanto possuía em móveis. Uni-me, depois, a alguns mercadores que negociavam
por mar. Consultei os que me pareceram capazes de me dar bons conselhos e resolvi, finalmente,
pôr a render o pouco dinhero que me sobrava. Tomada a resolução, rumei para Bassorá, onde
embarquei com vários mercadores num navio fretado por nossa gente.
Zarpamos, e seguimos a rota da Índa Oriental pelo golfo pérsico. A princípo, incomodou-me
o enjoo; mas recobrei a saúde imediatamente e, desde então, nunca mais o senti.
Durante a viagem, tocamos várias ilhas onde vendemos ou trocamos as nossas mercadorias. Um dia, enquanto
navegávamos, a calmaria nos dominou em frente a uma pequena ilha quase à flor da água, que se parecia
a um prado. O capitão ordenou se dobrassem as velas e permitiu se dirigissem para a terra os que
quisessem. Fiz parte dos que desembarcaram. Mas, estando nós a beber e comer, e a repousar da fadiga
do mar, a ilha estremeceu repentinamente, e nos sacudiu com força...
Do navio perceberam o estremecimento da ilha, pelo que nos gritaram que voltássemos imediatamente para
bordo, senão morreríamos, pois o que nos parecera uma ilha não passava do dorso de uma baleia. Os mais
espertos apoderaram-se da chalupa, outros lançaram-se a nado. Quanto a mim, estava ainda na ilha,
ou antes na baleia, quando ela mergulhou no mar, só me dando tempo para aguarrar um pedaço do madeira
trazido do navio para fazer fogo. Entretanto, o capitão, após acolher os que se haviam apoderado
da chalupa e alguns dos que nadavam quis valer-se de uma subtânea brisa fresca e favorável, e dando
ordem para içar as velas, tirou-me a esperança de alcançar o navio. |
|
|
Fiquei, pois, à mercê das ondas, impelido para cá e para lá. Contra elas disputei a minha vida
o resto do dia e a noite seguinte. No outro dia, já me não sobravam forças, e aguardava a morte, quando
uma vaga me lançou a uma ilha, de costa alta e escarpada. Grande teria sido o meu trabalho para
subir, se não fosse o auxílio de algumas raízes de árvores, que a sorte parecia ter conservado naquele
lugar para a minha salvação. Estendi-me sobre a terra, onde fiquei semimorto até que o sol despontasse.
Então, embora enfraquecido pela luta no mar, e por estar privado de alimento desde o dia anterior, não
deixei de me arrastar, procurando ervas comestíveis. Encontrei algumas, e tive a sorte de dar com uma fonte de excelente água, que muito contribuiu para me restabelecer. Recobradas as forças, entrei pela ilha adentro,
caminhando ao acaso, e cheguei a uma bela planície onde percebi de longe um cavalo. Para lá me encaminhei,
vacilando, entre o temor e o júbilo, pois não sabia se não ia ao encontro da minha perda em lugar de
me salvar. Notei, ao me aproximar, que se tratava de uma égua, presa a uma estaca. A sua beleza atraiu-me;
mas, estando a contemplá-la, ouvi a voz distante de um homem. Um instante depois, o homem
surgiu, veio a mim, e perguntou-me quem era. Contei-lhe a minha aventura, e ele, pegando-me pela mão,
me fez entrar numa gruta, onde se encontravam outras pessoas que se assombraram ao ver-me, como eu,
ao vê-las, me assombrei.
Comi o que me ofereceram; depois, perguntando-lhes o que faziam em lugar aparentemente tão ermo, responderam
ser palafreneiros do rei Mihrage, soberano da ilha; que todos os anos, na mesma estação, tinham
por costume trazer as éguas do rei que prendiam como eu havia visto, para que as cobrisse um cavalo
marinho saído do mar; que o cavalo marinho, depois de as cobrir, tentava devorá-las, o que eles impediam
com os seus gritos, obrigando-o a entrar novamente nas águas; que em seguida, levavam de volta as
éguas e que os cavalos nascidos se destinavam ao rei. Acrescentaram
que partiriam no dia seguinte e que, se eu tivesse chegado um dia mais tarde, teria morrido infalivelmente,
por estarem distante dos lugares habitados e me ser impossível a eles chegar sem um guia.
No dia seguinte, retomaram o caminho da capital da ilha com as éguas, e eu os acompanhei. À nossa
chegada, o rei Mihrage, a quem fui apresentado, perguntou-me quem era eu, e por que me encontrava no
seu país. Quando lhe satisfiz a curiosidade, garantiu-me que participava da minha tristeza. Ao mesmo
tempo, ordenou que cuidassem de mim, e me fornecessem tudo que eu precisava.
Como eu era mercador, freqüentei os companheiros de profissão. Procurei particularmente os estrangeiros,
tanto para saber deles notícias de Bagdá como para encontrar algum com o qual pudesse voltar, pois a
capital do rei Mihrage está situada à beira do mar, e possui um belo porto, aonde vão ter todos os dias
navios dos mais diversos pontos do mundo. Procurei também a companhia dos sábios da Índia, pois gostava
de ouvi-los, o que me não impedia, porém, de visitar o rei regularmente, e de me entreter com governadores
e pequenos reis, seus tributários, que viviam em torno dele. Faziam-me mil perguntas sobre o meu país; e
do meu lado querendo instruir-me nos costumes e nas leis dos seus países, pertuntava-lhes tudo quando
parecia merecer a minha curiosidade.
Estando um dia no porto, vi chegar um navio. Quando ancorou, começou-se imediatamente o descarregamento
das mercadorias; os mercadores a quem elas pertenciam mandavam transportá-las para armazens.
Relanceando um olhar por alguns fardos e pela escritura que explicava a quem pertenciam, li o meu nome. Após
examiná-los detidamente, não duvidei de que eram os que eu embarcara no navio em Bassorá. Reconheci o
captião mas como estava certo de que me julgava morto, acerquei-me dele e perguntei-lhe a quem pertenciam
os fardos que eu acabava de ver. "Tinha a bordo, respondeu-me ele, um mercador de Bagdá, chamado Simbad.
Um dia, estando perto de uma ilha segundo se nos afigurava, ele desembarcou com vários passageiros, mas a
suposta ilha não passava de uma baleia enorme adormecida à flor da água. Mal se sentiu aquecida pelo fogo
acendido sobre o seu dorso para cozinhar alimentos, começou a mover-se e a mergulhar. A maioria dos que lá
estavam se afogou, e entre eles o infeliz Simbad. Estes fardos lhe pertenciam, e resolvi vendê-los para,
quando encontrar um dos membros da sua família, entregar-lhe o capital e o lucro." "Capitão, disse eu naquele momento, sou o Simbad que julgais morto, e que, pelo contrário, está bem vivo, e estes fardos me pertencem..."
Quando o capitão do navio me ouviu falar assim exclamou: "Por Deus, em quem se pode confiar hoje em dia? Já
não há boa fé entre os homens! Vi morrer Simbad, com os meus próprios olhos, também os passageiros o
viram, e vós ousais dizer que sois Simbad? Que audácia! Vendo-vos, dir-se-ia que sois homem de bem;
entretanto, pronunciais horríveis falsidades, para vos apoderar de um bem que vos não pertence." "Calma,
repliquei; e escutai-me". "Pois bem, disse ele, que pretendeis dizer? Falai, que vos escuto". Contei-lhe,
então, de que maneira me havia salvado, e por que circunstâncias encontrara os palafreneiros do rei
Mihrage, que me tinham levado à corte.
As minhas palavras o convenceram de que eu não era impostor, pois gente do seu navio me reconheceu
e comigo se congratulou, testemunhando-me o prazer que sentia por rever-me. Finalmente, ele
próprio me reconheceu, e abraçando-me, disse-me: "Deus seja louvado por terdes conseguido escapar
de tão grande perigo. Não posso exprimir-vos o prazer que sinto. Eis os vossos bens, tomai-os, e fazei
deles o que quiserdes". Agradeci-lhe, louvei-lhe a honestidade e, para demostrar o meu reconhecimento,
roguei-lhe aceitasse algumas mercadorias. Mas ele recusou-se.
Escolhi o que havia de mais precioso nos meus fardos e dei-o de presente ao rei Mihrage. Como esse
príncipe sabia o que me acontecera, perguntou-me onde tinha arranjado coisas tão raras. Expliquei-lhe
a maneira pela qual as recobrara. Teve a bondade de se alegrar com a minha sorte e aceitou o meu
presente, em troca do qual me deu outros muito mais valiosos. Depois, despedi-me e embarquei no mesmo
navio. Mas, antes, troquei as mercadoreias que me restavam por outras do país. Levei comigo aloés,
sândalo, cânfora, moscada, cravo da Índia, pimenta e gengibre. Passamos por várias ilhas, e chegamos
finalmente a Bassorá, donde atingi esta cidade com o valor de cerca de cem mil cequins. Minha família
me acolheu, e eu a revi com toda a alegria. Comprei escravos de ambos
os sexos, belas terras, e mandei construir uma grande casa. Fixei-me, enfim, resolvido a esquecer os
males que me haviam afligido e gozar os prazeres da vida.
Quando terminou de contar tudo o que passara em sua vida agitada, Simbad disse a Hindbad:
– Então, meu caro amigo, já ouviu falar em alguém que tenha sofrido mais do que eu? Não
mereço uma vida agradável e tranqüila depois de tudo o que eu passei?
Hindbad, em resposta, beijou a mão de Simbad e disse:
– O senhor merece não apenas uma vida tranqüila, depois de ter passado por situações tão terríveis,
mas todos os bens que é possível imaginar, porque emprega bem as suas riquezas e é muito generoso.
Seja feliz até o fim de seus dias!
Simbad deu ao carregador cem moedas, tratando-o como amigo. Depois, pediu-lhe que abandonasse
a sua profissão e viesse ao palácio banquetear-se com ele todos os dias.
De "As aventuras de Simbad" para "Biblioteca"
Copyright©2008 valdiraguilera.net. All
Rights Reserved |
|