Valdir Aguilera
 Físico e pesquisador

 

 

As 1001 noites - Um cádi astuto

Certa vez no Cairo um cádi que cometeu tantas prevaricações e pronunciou tantos julgamentos iníquos que foi demitido de seu alto ofício e teve que viver dos recursos de sua engenhosidade.

Um dia, quando sua cabeça estava tão vazia quanto seu bolso e seu bolso tão vazio quanto seu estômago, chamou o único escravo que lhe restava e disse-lhe:

– Estou adoentado hoje e não posso sair de casa. Para nos sustentar, deves ou percorrer as ruas à procura de algum biscate ou enviar-me algum infeliz que precise de um parecer jurídico.

O escravo saiu com a intenção de molestar algum transeunte e arrastá-lo até o juiz para ser multado. Assim, mal cruzou com um cidadão pacífico carregando um cesto no ombro, tropeçou nele e enviou-o ao chão. A vítima levantou-se furiosa e avançou para castigar o agressor. Mas quando reconheceu nele o escravo do cádi, virou as costas e fugiu de encontro tão perigoso. "Todos me conhecem como conhecem meu amo," resmungou o escravo desanimado. "Devo achar outros meios."
Na primeira esquina, cruzou com um homem levando uma bandeja com um magnífico peru, recheado e guarnecido com tomates e diversas frutas. Seguiu-o e viu-o entrar numa cozinha pública e entregar a ave ao mestre do forno, dizendo que voltaria para apanhá-la uma hora mais tarde. "Esta é a minha oportunidade," decidiu o escravo. Menos de uma hora depois, entrou na cozinha pública, dizendo:
– Salve Mustafá! O mestre do forno reconheceu-o e respondeu:
– Salve Mobarak! Há muito tempo que meus carvões nada assam para teu amo. Trouxeste algo hoje?
– Nada, exceto o peru.
– Mas este não te pertence, meu irmão.
– Não fales assim, ó xeque. Eu vi esse peru sair do ovo materno, alimentei-o, matei-o, recheei-o e o enviei a ti.
– Se for assim, estou pronto a to entregar, disse o cozinheiro. Mas que direi ao homem que o trouxe?
– Acho que ele não voltará, replicou Mobarak num tom evasivo. Mas se voltar, ele deve gostar de uma boa piada. Poderás dizer-lhe que tão logo o peru foi colocado no fogo, deu um grito agudo e voou. Agora, dá-me logo aquela ave, por favor. Acho que já está bem assada.

O cozinheiro riu e entregou o peru a Mobarak, o qual correu para a casa do cádi e ajudou-o a saborear o assado.

Quando, minutos depois, o dono do peru voltou para apanhá-lo, o cozinheiro disse-lhe:

– Tão logo coloquei-o no forno, deu um grito agudo, voou para longe, e não voltou mais.

O homem não gostou nada da piada e gritou com raiva:

– Ó nada, ousas brincar nas minhas barbas?

Das palavras passaram às imprecações e das imprecações aos socos. Uma multidão se formou em volta deles.

– Eles estão brigando acerca da ressurreição de um peru recheado,–  disseram os vizinhos, a maioria dos quais apoiava o cozinheiro cuja honestidade nunca fora posta em dúvida.

Entre os espectadores, havia uma mulher grávida. Quando o cozinheiro aplicou um pontapé no seu adversário, o golpe se desviou e atingiu a mulher, que emitiu um grito igual ao de uma galinha ultrajada e abortou na hora. Seu marido, informado, correu com um cacete enorme na mão, gritando:

– Vou acabar com este cozinheiro e seu pai e seu avô! Vou eliminar toda a raça dos cozinheiros da face da Terra!

O mestre do forno, não querendo enfrentar essa fúria, fugiu, subiu ao terraço e deixou-se cair no terraço vizinho. Quis o destino que ele caísse com seu peso enorme sobre um mouro que dormia num canto. As costelas do mouro foram quebradas, e ele morreu na hora. Os outros mouros acorreram e prenderam o cozinheiro, e arrastaram-no até a casa do juiz. O dono do peru e o marido da mulher grávida juntaram-se a eles.

Armando-se de seu ar mais solene, o cádi começou por recolher depósitos dobrados de cada litigante e, apontando o dedo para o primeiro réu, o cozinheiro, perguntou:

– Que tens a dizer a respeito do peru?

Achando que era melhor aderir à tese do escravo do juiz, o cozinheiro respondeu:

– Por Alá, ó representante da justiça humana e divina, assim que coloquei a ave no forno, emitiu um grito agudo e, mesmo recheado e guarnecido, levantou vôo, foi-se e não mais voltou.

Ao ouvir essas palavras, o dono do peru gritou:

– Filho de cachorro, ousas contar tais tolices a nosso amo o cádi?
Mas o cádi repreendeu-o com indignação:

– E tu, tens a audácia, ó ímpio infiel, de duvidar de que aquele que ressuscitará todas as criaturas no dia predestinado, recolhendo-lhes os ossos dispersos pelos quatro cantos da Terra, é incapaz de devolver a vida a um simples peru que tinha ainda a totalidade de seus ossos e só lhe faltavam as plumas?

Impressionada com a argumentação do juiz, a multidão gritou:

– Glória a Alá que ressuscita os mortos!–  e pôs-se a vaiar e apupar o dono do peru até que ele foi embora, lamentando sua falta de fé.

Então, o cádi virou-se para o marido da mulher que havia abortado e perguntou-lhe:

– E tu, que tens contra este homem?

O marido expôs sua queixa, e o juiz pronunciou a seguinte sentença:

– O caso é claro. O cozinheiro causou sem dúvida o aborto com o golpe que desfechou na mulher. A Lei de Talião se aplica. Tu, o marido lesado, ganhaste a tua causa. Autorizo-te, portanto, a levar tua mulher à casa do réu e deixá-la lá até que esteja grávida outra vez. Também poderá continuar a viver com o réu e às suas custas até o sexto mês de gravidez, já que o aborto aconteceu no sexto mês da primeira gravidez. Ouvindo essa sentença, o marido declarou:

– Ó nosso amo o cádi, desisto de minha queixa. Possa Alá perdoar meu adversário.

Abordando então o caso do mouro, perguntou o cádi aos seus parentes que acusação faziam ao cozinheiro. Falaram todos ao mesmo tempo, amaldiçoando o cozinheiro, apontando para o cadáver e clamando pelo preço do sangue. Sentenciou então o juiz:

– A evidência é decisiva. a indenização é devida. Preferis que seja paga em dinheiro ou em sangue?
– Em sangue, gritaram. Sangue por sangue.
– Seja, proclamou o juiz. Levai este cozinheiro, enrolai-o na mortalha do defunto e colocai-o aos pés do minarete da mesquita do sultão Hassan. Então, o irmão da vítima subirá até o minarete e saltará de lá sobre ele, esmagando-o da mesma forma que ele esmagou a vítima... Quem de vós é o irmão do morto?

Um certo mouro, que parecia ser o líder do grupo, levantou-se e declarou:

– Ó nosso amo o cádi, retiramos a nossa queixa contra este homem. Possa Alá perdoá-lo!–  e saiu, seguido por todos os membros de sua tribo.

A multidão dispersou-se, maravilhada com a equidade, sutileza e os profundos conhecimentos jurídicos do cádi. Quando os ecos do processo atingiram os ouvidos do sultão, restaurou o cádi nas suas altas funções e demitiu o honesto homem que o havia substituído.


 

De "Um cádi astuto" para "Biblioteca"

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