As 1001 noites - Convite à paz mundial
Conta-se que um xeque venerável possuía uma bela criação de aves domésticas que produziam ovos e
frangos grandes e apetitosos. Ora, naquela capoeira havia um grande e maravilhoso galo, de voz
ressonante e plumagem vistosa que, além dos seus encantos físicos, era dotado de sabedoria e
sagacidade e conhecia as zonas sombrias do coração. Sabia também ser justo e atencioso para com suas
esposas e evitar provocar nelas ciúmes e ressentimentos. Era citado como modelo em tudo, e seu dono
chamava-o Voz-da-Aurora.
Certo dia, Voz-da-Aurora saiu a descobrir as terras que se estendiam para além da capoeira. Encantado
com o que via, foi picando os grãos de trigo ou cevada ou milho que
encontrava pelo caminho até que, levado mais longe do que planejara, achou-se num lugar selvagem que
nunca visitara e onde tudo lhe parecia estranho e hostil. Começou a preocupar-se e soltou alguns gritos
ansiosos.
Enquanto procurava o caminho da volta, viu uma raposa correndo na sua direção. Temendo por
sua vida, voltou as costas e voou com toda a força de suas asas até um galho alto de uma árvore onde a
raposa não era capaz de atingi-lo. A raposa chegou ao pé da árvore e, vendo que lhe era impossível subir
até o galo, levantou a cabeça para ele e disse-lhe:
– A paz esteja contigo, ó figura de bom augúrio, ó meu
irmão, ó companheiro encantador.
Mas Voz-da-Aurora não respondeu à saudação nem olhou na direção da raposa. A raposa não desanimou e disse-lhe:
– Ó meu prezado e bonito amigo, por que não olhas para
mim nem me saúdas quando te trago notícias maravilhosas? |
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O galo permaneceu calado e inamistoso. A raposa tornou:
– Ó meu irmão, se soubesses de que boa notícia encarregaram-me de te trazer, descerias
imediatamente para me abraçar e beijar-me na boca.
Mas o galo permaneceu indiferente, e fixava ao longe seus olhos redondos.
– Fica sabendo, meu irmão, disse de novo a raposa, que nosso senhor leão, sultão dos animais,
e nossa senhora águia, sultana das aves, acabam de reunir uma assembléia no meio de
um prado cheio de flores e de córregos, com a participação de todos os animais da Criação, tigres,
hienas, leopardos, linces, panteras, chacais, antílopes, lobos, carneiros, rolas, codornizes e demais aves e
animais. Nessa assembléia, decretaram que, de hoje em diante, a segurança, a fraternidade e a paz
reinarão em toda a extensão da terra habitada; que laços de afeto mútuo e de simpatia ligarão todas as
aves e todos os animais domésticos e selvagens, sepultando-se para sempre os antagonismos e ódios
raciais. Também proclamaram que fosse quem fosse que não aplicasse essas novas normas seria levado
diante deles para ser sumariamente julgado e condenado. Ademais, designaram-me seu único
representante para divulgar essas decisões em toda parte e para levar até eles quem estiver
desobedecendo às citadas determinações. É por isso, deleitável irmão, que me vês aqui a oferecer-te
minha amizade e as relações mais fraternas.
Mas o galo parecia nem ouvir nem se interessar. A raposa, sentindo já a carne tenra da ave sob os
dentes, insistiu:
– Meu irmão, não te dignas nem lançar um olhar sobre a representante de nossos senhores o
leão e a águia? Devo lembrar-te que, se permaneceres nesse mutismo, terei que comunicar tua conduta
ao conselho da assembléia. E receio que sejas então condenado à morte, pois nossos amos estão determinados
a concretizar a paz universal, mesmo que tenham que destruir, a serviço desse nobre ideal, a metade das
aves e dos animais.
O galo, que se tinha mantido numa altiva indiferença, esticou o pescoço e virou-o um pouco para que ele e a
raposa pudessem ver-se diretamente e disse:
– Ao contrário, minha irmã, ouvi tuas palavras com toda a atenção, e inclino-me diante de
tua qualidade de mensageira e comissária de nossa ama a águia. Meu silêncio não era rebelião, mas a
necessidade de fixar a atenção numa coisa que vejo por além desta planície e que me preocupa.
– E o que vês ao longe? exclamou a raposa. Espero que não seja nada calamitoso.
O galo esticou o pescoço um pouco mais e disse:
– Minha irmã, como não percebes o que vejo, quando Alá te concedeu a graça desses olhos penetrantes?
– Mas enfim, dize o que vês. Tua posição nesse muro te permite ver o que não vejo daqui.
O galo Voz-da-Aurora respondeu:
– Em verdade, vejo um bando de falcões correndo para cá. E vejo qualquer coisa que anda com quatro
patas, de pernas altas, de feitio longo e delgado, de cabeça fina e pontiaguda e de orelhas longas.
– Será um cão lebréu? perguntou a raposa, tremendo dos pés à cabeça.
– Não sei se é um cão lebréu, mas é certamente um cão audacioso.
Ao ouvir estas palavras, a raposa exclamou:
– Vejo-me na obrigação de despedir-me de ti, ó meu irmão.
E voltou as costas e desatou a correr.
– Espera, espera, minha irmã, espera por mim, gritou o galo. Eu desço.
– É que tu não sabes, mas eu tenho uma grande antipatia pelo cão lebréu que não é meu
amigo nem pessoa de minhas relações.
– Mas não me disseste que vinhas proclamar o decreto da paz e da amizade entre todos
os animais domésticos e selvagens?
– Sim, é verdade, mas esse cão faltou ao nosso congresso e receio que não tenha sido
informado das decisões tomadas e prossiga na sua inimizade contra mim. Que Alá te proteja até minha volta.
Tendo assim falado, a raposa desapareceu ao longe. E o galo, que escapou da morte graças a sua finura
e sagacidade, voltou feliz para sua capoeira e contou às aves sua aventura. As galinhas se regozijaram,
e os galos celebraram sua vitória com um canto sonoro.
De "Convite à paz mundial" para "Biblioteca"
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