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As 1001 noites - As aventuras do rei bastardoConta-se - mas só Alá sabe tudo - que havia certa vez três amigos, todos genealogistas de profissão, que viviam numa antiga cidade da Arábia. Dotados de sutileza, eram capazes de subtrair a carteira de um avarento sem que ele o percebesse. Reuniam-se todos os dias para planejar as trapaças que aplicariam, visando a divertir-se mais do que a lucrar. Pois seus embustes eram mais espirituosos que maldosos. Colocavam o que ganhavam numa bolsa comum e gastavam a metade em mantimentos e a outra metade na compra de haxixe, com que se embriagavam todas as noites. Sua embriaguez também nada tinha de vulgar. O haxixe aumentava, ao contrário, sua agudez mental e inspirava-lhes expedientes que faziam as delícias de quem as testemunhasse.
– Nós exercemos três profissões diferentes e estávamos disputando sobre qual delas é a melhor. Perdemos a cabeça na discussão. Daí as invectivas e as grosserias. Esquecemos da presença do sultão nosso senhor. Merecemos ser castigados. Perguntou o sultão: – Que profissões são essas? O primeiro beijou a terra entre as mãos do sultão e respondeu: – Sou genealogista de pedras finas e conheço todos os segredos das genealogias lapidares. – Por Alá, disse o sultão, tens mais o aspecto de um patife que de um sábio. Mas talvez as duas coisas não sejam incompatíveis. Em todo caso, explica me em que consiste a genealogia lapidar. – É a ciência da origem e da espécie de todas as pedras preciosas e a arte de distinguir, num simples olhar, as pedras genuínas das falsas. – Porei à prova teu saber, disse o soberano. E, dirigindo-se ao segundo genealogista, perguntou: – E tu? – Sou genealogista de cavalos. Posso ao primeiro relance saber em que tribo nasceu tal cavalo, e em que terra foi criado, e quais foram suas doenças passadas e que doenças lhe ameaçam o futuro. E sei curar qualquer doença de cavalo, por mais incurável que a tenham declarado. – Tu também me pareces mais um patife que um cientista. Porei à prova teu saber. E tu? perguntou ao terceiro amigo. – Ó rei do tempo, minha profissão é mais importante e mais difícil que as deles. Sou um genealogista de seres humanos. Olhando para um homem e ouvindo-lhe a vibração da voz, sei se ele é bastardo ou não, e quais foram seus pais e antepassados. Olhando para uma mulher, mesmo velada, adivinho-lhe a raça, a origem, a profissão e também a conduta dos pais. Todos reconhecem que sou um genealogista infalível. – Eis uma coleção surpreendente de talentos, exclamou o rei. Vou guardar-vos aqui e comprovar vossas habilidades. Se forem autênticas, sereis recompensados. Se forem meras alegações, sabereis como morrem os falsificadores. Virando-se para seu grão-vizir, pediu-lhe dar a cada um dos sábios um apartamento no palácio e uma ração diária de pão e carne, além de água à vontade.
– Ó filho de alcoviteiros! Esta pedra é um presente de um rei a outro. A luz brilha através dela, e ousas desclassificá-la. E chamou um de seus carrascos e ordenou-lhe: – Corte a cabeça deste mentiroso. Mas o grão-vizir, que era prudente e amava a justiça, implorou ao sultão, dizendo: – Ó rei do tempo, não será melhor comprovar as palavras deste homem antes de condená-lo? O rei concordou e mandou abrir o diamante. Dentro dele havia um verme! – Como o soubeste? perguntou o rei, um tanto confuso. – Tenho dedos muito sensíveis, respondeu o genealogista. O sultão mandou dobrar a sua ração.
– Ó Comandante dos Fiéis conquanto o pai deste cavalo era um grande cavalo de raça, a mãe era a fêmea de um búfalo do mar. Ao ouvir essas asserções , o rei explodiu e chamou um de seus carrascos para cortar a cabeça do homem. Mais uma vez, porém, o grão-vizir interveio com o mesmo argumento, acrescentando que, neste caso, a verificação era simples, já que todo cavalo de raça tem seu pedigree pendurado ao pescoço. O rei concordou e mandou o encarregado do cavalo exibir-lhe o pedigree. O pergaminho dizia que o potro tivera por pai um garanhão puro sangue e por mãe uma fêmea de búfalo marinho. O rei perguntou ao genealogista como chegara àquela verdade escondida com um simples olhar. Respondeu: – A coisa foi fácil, ó meu amo e senhor. Bastou-me ver os cascos do cavalo. E mostrou ao rei como eram rachados, grossos e compridos, como os dos búfalos, em vez de serem lisos, leves e redondos como os dos cavalos. O rei maravilhou-se com a ciência do homem e mandou dobrar-lhe a ração. Diante de tais provas da capacidade dos dois genealogistas, o sultão chamou o terceiro e perguntou-lhe: – Persistes na tua alegação de que podes descobrir a origem de qualquer homem ou mulher, olhando para eles - origem que só a mãe conhece e o pai geralmente ignora? Estás pronto a demonstrar tua ciência diante de nossos olhos? – Persisto nas minhas afirmações, ó rei do tempo, e estou pronto a demonstrá-las. – Neste caso, segue-me. O rei levou o genealogista à presença de sua favorita e disse-lhe:
– Não se trata disso, retrucou o rei, mas das suas origens. Que descobriste a este respeito? – A coisa é delicada, ó rei do tempo, e não sei se devo falar ou calar. – Fala, gritou o soberano. – Pela vida de nosso amo e senhor, essa dama seria a mais perfeita das criaturas se não tivesse um defeito original que prejudica suas perfeições pessoais. Ao ouvir a palavra "defeito", o rei ficou branco de raiva, sacou de sua cimitarra e saltou sobre o genealogista, gritando: – Cachorro, filho de cachorro, esta lâmina vai te ensinar a falar. Mas o grão-vizir interveio pela terceira vez, rogando ao rei que deixasse o genealogista explicar-se. O rei concordou, e o genealogista disse: – Ó rei do tempo, minha ama, a tua digna favorita, é um ideal de beleza e perfeição, mas a sua mãe foi uma dançarina pública, uma mulher livre da tribo errante dos Ghazyias, praticamente uma prostituta. O soberano quase sufocou de raiva e mandou seu grão-vizir trazer imediatamente à sua presença o pai da favorita, que era um intendente no palácio. Sob as ameaças do rei, o pai confessou a verdade, que coincidia com o que o genealogista revelara. O soberano esqueceu sua raiva e maravilhou-se com a ciência do genealogista, fumador de haxixe. – Como chegaste às tuas conclusões? perguntou-lhe. O genealogista respondeu: – Em primeiro lugar, há a minha ciência e minha intuição. Em segundo lugar, o fato de que as mulheres da raça Ghazyia têm todas, como a tua favorita, sobrancelhas muito espessas e ligadas por cima do nariz e os olhos mais negros de toda a Arábia. O rei abençoou a ciência do homem e mandou dobrar-lhe a ração. Depois, ficou acordado a noite toda, pensando na sua própria origem. "Será que sou mesmo o descendente legítimo de tantos reis?" Pela manhã, mandou chamar o genealogista e disse-lhe: – Agora, ó pai da ciência, quero ouvir-te falar da minha origem. – Só poderei falar, ó rei do tempo, retrucou imediatamente o genealogista, se me concedes a garantia da vida, pois o que me pedes dizer pode ser perigoso para mim. O soberano concedeu-lhe garantia de vida, e o genealogista, após pedir ao rei que ficassem os dois a sós, disse: – Ó rei do tempo, tu não és somente um bastardo, és um bastardo de baixa extração. Ao ouvir essas palavras terríveis, o rei empalideceu, tornou-se surdo, cego e paralizado. Quando voltou a si, disse ao genealogista: – Duras foram as tuas palavras. Assim mesmo, se forem verídicas, abdicarei de meu trono e instalar-te-ei nele, pois não serei mais digno de reinar. Mas se tuas palavras se revelarem mentirosas, mandarei cortar-te o pescoço. – É justo, disse o genealogista. O soberano correu então, espada nua na mão, ao apartamento da rainha-mãe e disse-lhe: – Conta-me a verdade ou cortar-te-ei em pedaços: sou ou não sou o filho do rei, meu pai? – Para falar sem preâmbulos nem rodeios, tu és o filho de um cozinheiro. A coisa aconteceu assim: Quando o sultão, teu antecessor, se casou comigo, copulamos segundo o costume, mas não tivemos filhos. Ele tomou uma segunda e terceira mulher com o mesmo resultado negativo. Receando ser pouco a pouco relegada, decidi salvar a minha posição e preservar o trono. Certo dia, o sultão quis comer frango recheado. Quando o cozinheiro veio apanhar o frango, examinei-o e achei-o forte e bem-feito. Fiz-lhe sinal para entrar. E houve então o que houve. Logo em seguida, plantei um punhal no seu coração e mandei duas de minhas confidentes levarem seu corpo e sepultá-lo em segredo. Nove meses depois, dia por dia, nasceste. Houve regozijos em todo o reino e, no devido tempo, herdaste o trono. Juro pelo Profeta que contei tudo que sei. Só Alá sabe mais. O rei não disse uma palavra, mas saiu dos aposentos da mãe chorando. Foi reencontrar o genealogista e disse-lhe: – Por Alá , ó boca da verdade, como descobriste que eu era o que sou? Respondeu o genealogista: – Ó meu amo e senhor, quando nós três genealogistas demonstramos nosso saber daquela maneira sensacional, mandaste dobrar a ração de cada um de nós, além de nos dar água à vontade. Pela natureza e a mesquinhez da recompensa, pensei que só poderias ser um filho de cozinheiro, descendente de cozinheiros. Os reis, filhos de reis, não recompensam com pão e carne, mas com vestes reais e tesouros de ouro. Assim raciocinando, adivinhei a tua baixa extração adulterina. Não tenho mérito nisso. Quando o genealogista acabou de falar, o sultão levantou-se e disse-lhe: – Tira a roupa. O genealogista obedeceu. O soberano, despojando-se de suas vestes e insígnias reais, revestiu-o com elas, usando as próprias mãos. Depois, fê-lo subir ao trono e beijou o chão a seus pés. Mandou então entrar o grão-vizir, os demais vizires e todos os dignitários do reino e apresentou-lhes o genealogista como seu legítimo soberano. O novo sultão mandou vir seus dois amigos e nomeou-os guardiões de sua direita e de sua esquerda. E foi um grande rei. O abdicante sultão vestiu-se de dervixe peregrino e saiu do palácio sem nada levar. Tomou o caminho das terras do Egito e fixou-se no Cairo, satisfeito em poder fazer o que quisesse, andar e parar à vontade, livre dos cuidados e cargos da realeza. Repetia: "Louvado seja Alá! Ele dá a uns o poder com seus fardos e preocupações e a outros a pobreza com o desprendimento e a alegria do coração. E talvez sejam estes os mais favorecidos."
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