Valdir Aguilera
 Físico e pesquisador

 

 

Canção feliz

Tartaruga Barros

— Acontece que às vezes eu preciso de um pouco de barulho para dar vida à minha música — protestou Carlos, o aprendiz.
— Sua música já está transbordando com cacofonia barata — replicou o mestre. — O verdadeiro brilho está no silêncio.
— Música é o oposto de silêncio — nariz torcido.
— A sua música, talvez — desprezo vazando por pálpebras meio fechadas. — Minha música desperta o mais profundo silêncio.
— Porque todo o mundo chora no final. Minha música é sobre felicidade — insistiu Carlos.
O grande compositor Eduardo Cenea colocou na mesa as partituras com a delicadeza de uma borboleta pousando em pétala de flor. As chamas tremelicaram no topo das velas.
— Se você se contenta com o tipo de felicidade que sua música inspira, não hesite em ir embora — disse Eduardo. — É em silêncio que sentimos êxtase.
A impertinência do aprendiz nascia da exaustão. Para Eduardo Cenea, música era feita de sangue e ele sangrava seus alunos. Apenas dois sobreviveram à hemorragia. Carlos foi um, que por toda a vida se viu perseguido pela alcunha de Aprendiz de Cenea, mas ele foi o único cuja música se imortalizou como a do mestre.

Ilustração da autora
Uma outra pessoa resistiu ao treinamento severo. Ela tinha queixo pequeno, bochechas cheias, olhinhos redondos brilhantes, além daqueles cabelos cor de fuinha, presos atrás das orelhinhas redondas. Um ratinho, pensou Eduardo e sorriu.
— Por que está sorrindo? — a aluna perguntou. Ouvira dizer que Eduardo Cenea era muito duro e nunca sorria.
— Tive um pensamento engraçado.
— Sobre música?
— Sobre uma coisa irrelevante. — Ele mudou de assunto — Você é minha nova pupila.
— Sim, sou Maud. Será que podemos deixar para lá as formalidades? Aqui é para ser um espaço artístico, livre de amarras bobas como sobrenomes e títulos. A não ser — ela disse depressa — que o senhor prefira ser formal.
Eduardo não se importava. Formalidade não tornava ninguém respeitável; podia-se tratar uma pessoa com a mesma formalidade que se deferiria à imperatriz e ter tanto respeito por ela quanto se tinha por uma fuinha.
— Você é mais jovem do que eu esperava — disse Maud.
Estava dentro da casa de Eduardo, despejou a bolsa e a capa numa cadeira qualquer — e mais bonito também. Bem, talvez não exatamente bonito, mas depois de tudo o que me disseram eu esperava um velho sombrio. Se seu nariz fosse um pouquinho menor e sua testa um pouco mais larga, talvez. Quem sabe se colocar o cabelo para trás, assim, — levantou na ponta dos pés e passou os dedos finos pelos cabelos grossos. — Ah, bem melhor (apesar de que prefiro negros). E seus ombros, arrume sua postura. Não, assim — empurrou gentilmente os ombros dele para trás, como se fizesse uma escultura em argila. — Agora coloque uma mão na cintura, erga o queixo. Tudo o que precisa é de uma espada, uma capa e, pronto, fica igual a um capitão. — E ia andando em volta dele como se arrumasse um arranjo de flores.
— Um capitão. Sei.
Ela deu um pulo só com os ombros. Os pés não saíram do chão, mas as mãos pularam uma ao peito, outra à garganta. Com os lobos de Sátiron, ela estava tratando o grande Mestre Cenea como se ele fosse uma peça de decoração. É que ele lembrava um móvel, todo quadrado, duro, cheio de quinas, e Maud sentiu uma vontade enorme de alisar aquelas quinas, amolecer os braços dele, amolecer nos braços dele. Mas de onde vinham essas vontades malucas? Provavelmente do mesmo lugar de onde subia o sangue que lhe esquentava as faces.
— Desculpe — ela disse. — Me deixei levar por uma ideia (tão bonita). Não quis desrespeitá-lo.
Eduardo nunca viu fenômeno igual: uma nuvem de vermelhidão subiu do pescoço de Maud, tomou as bochechas, a testa, a pontinha do nariz. Ele pegou uma partitura de cima da mesa, embora não precisasse de partitura alguma.
— A carta de seu pai não menciona o seu talento — disse Eduardo.
— Amo cantar.
— Amor não talento.
— Por isso estou aqui: para transformar paixão em talento.
— O que não garante sucesso. — Ele enrolou a partitura nas mãos.
— Não preciso de sucesso — disse Maud. — Nem de dinheiro.
Eduardo bateu o rolo de partitura contra a palma da mão esquerda. Maud era rica, filha de Ajaxiano Freire, mais bem sucedido comerciante do norte da Eslarina (talvez de toda a Eslarina). Uma ratinha mimada daquelas não aguentaria uma semana nas mãos de Eduardo Cenea.
Um ano depois Eduardo abriu a porta para uma cascata cor-de-rosa. Ele trancou depressa a tempestade lá fora, mas ali estava Maud, mais água do que mulher, inundando a casa como uma fonte de saia.
— Você não devia ter vindo — disse Eduardo. — Devia ter esperado a tempestade passar. — No entanto, que engraçado, ele respirou mais leve com ela ali no centro da sala. — Precisa se secar.
— Só tenho este vestido — disse Maud. Ria. Desbravar a tempestade da cidade até a casinha aconchegante de pedra parecia uma aventura de piratas com tesouros no final.
— Sente-se perto do fogo. — Ele colocou três toras na lareira e jogou uma toalha sobre os ombros de Maud. Ombros tão pequenos, débeis, patéticos, mas Eduardo havia aprendido a não julgá-la pela fragilidade de sua aparência.
— O que aprenderemos hoje? — ela perguntou, vermelha e risonha em seu vestido cor-de-rosa encharcado.
— O que venho tentando te ensinar há um ano — ele brandiu uma partitura sobre a cabeça. — Cantar!
— Eu sempre acerto as notas — ela disse.
— Música é mais do que apenas notas afinadas.
— Eu canto com sentimento.
— O sentimento errado! Esta música é sobre perda, tristeza, solidão. Tente de novo.
Do lado de fora, a chuva. Sem ventania ou trovoada bruta; só água, caindo e caindo, como um rio correndo de cima para baixo, transformando a casa de pedras cinzentas numa bolha de melodia quente.
Devagar a água amainou. Mesmo a garoa se calou. As nuvens se abriram num bocejo azul e Eduardo abriu a janela.
— Como cantei hoje? — Maud perguntou. O céu nu enrubesceu e ela também, quando Eduardo olhou em sua direção.
O diafragma de Maud, após um ano sob comando de Eduardo, movia-se com perfeição. A boca moldava uma acústica excelente, ela alcançava todas as notas, baixas e altas, embora sua voz tivesse nascido para as alturas. Maud gostava tanto de cantar que cada nota ultrapassava seus lábios finos encharcada em alegria. Impossível sentir a tragédia harmônica daquelas melodias quando Maud as cantava.
Eduardo passou os dedos pelos cabelos pretos.
— Você deveria ser a melhor aprendiz que eu já tive, mas faz tudo errado! — Ele disse e ergueu as duas mãos na direção de Maud, quase tocando-lhe o rosto. — É isto! Você precisa ensinar a sua voz a passar adiante o que seus olhos sentem agora.
— Como posso cantar se me sinto assim?
— Com tristeza, com angústia.
Ele voltou-se para a mesa, debruçou-se sobre as partituras, pensando em como fazê-la entender a aflição daquelas notas. Então a voz de Maud roçou em seus ouvidos e depositou ali umas poucas palavras tímidas:
— Não consigo sentir angústia quando estou com você.
— Não importa o que você sente. Minha música não é sobre você. — Ele olhou para ela e soube, pela dor nos olhos dela, que acabara de ensinar a Maud o significado de mágoa.
— É tarde — ela disse. — Vou para casa.
Maud sempre sorria para Eduardo antes de sair, como se esperasse alguma coisa dele (um olhar, talvez um beijo). Neste dia ela pegou suas coisas sem levantar os olhos e fugiu para a estrada como um animalzinho ferido.
Eduardo ficou na porta olhando ela diminuir em direção à cidade. Ele ouviu um barulho molhado e olhou surpreso para seu pé que, sem avisar, havia dado um passo em direção à estrada. Eduardo forçou o pé de volta para dentro, bateu a porta e debruçou-se sobre sua música.
As notas todas reverberavam com a angústia dos olhos de Maud.
No dia da próxima aula de Maud, Eduardo abriu a porta mas não era ela em pé na soleira. Um rapaz vestido de verde e branco entregou a Eduardo um bilhete em que a letra gorda de Maud explicava sua ausência. Estava muito doente. Eduardo amassou o papel e jogou-o fora.
O mensageiro de verde e branco apareceu novamente na aula seguinte. Abriu a boca para uma saudação, encolheu-se com a carranca de Eduardo. Entregou o bilhete, recuou depressa.
Na terceira vez, o menino empurrou o bilhete para as garras de Eduardo e fugiu para a estrada. Correu os primeiros cem metros, desejando que sua mestra ficasse boa logo. Queria nunca mais ver aquele homem assustador com cara de lobo.
De repente alguém o ultrapassou. O menino se sentiu como um passarinho na sombra de um falcão. À sua frente, deixando-o para trás, Eduardo Cenea vencia a estrada com largas passadas duras.
A primavera chegava, o frio se demorava. O norte da Eslarina é plano e maçante, nenhuma floresta ou montanha para quebrar a monotonia de terra e céu. A estrada que levava à cidade parecia uma cicatriz velha nos campos arados.
Para compensar a mesmice da natureza, Agolasa era um arco-íris de casas em cores vivas, paralelepípedos branco-amarelados, tecidos, tapetes, madeira e mármore. Arquitetura e gente de todo o Império, enfim: todos os ingredientes para o caos. Mas Agolasa não era caos. Ruas largas acomodavam todas as cores, as gentes todas falavam a mesma língua: a do comércio. E além do grande porto, mais vasto que o caos mortal, mais azul do que o infinito céu, dançava o mar, mestre de horizontes.
Nada impressionou Eduardo nesse dia. Nem o oceano, nem as especiarias perfumadas, nem o esplendor da mansão de Maud, com sua arquitetura de elegante mármore.
Ajaxiano Freire, dono de metade da frota mercante de Agolasa, recebeu pessoalmente Eduardo Cenea. Apertou sua mão, ofereceu-lhe quitutes, limonada, vinho, conversou sobre a educação musical de sua filha.
— Estamos todos impressionados com a evolução de Maud — disse Ajaxiano. — Francamente, não pensei que ela fosse ter êxito.
— Então por que mandou-a até mim?
— Você é o melhor. Eu não mandaria Maud para um instrutor mais fraco só porque não acreditava em seu talento. Além disso — acrescentou com um sorriso — eu conhecia sua reputação. Pensei, se Maud quer cantar, bem, ela terá de sangrar. Ela sobrevivou às suas lições, que continue cantando.
— Ouvi dizer que ela está doente — disse Eduardo.
— Ela esteve muito doente, mas já está convalescente. — Ajaxiano descreveu a gravidade da enfermidade.
Eduardo respirou aliviado. Não porque Maud se sentisse melhor, mas porque ela estivera gravemente doente, e sua ausência não foi culpa de Eduardo.
— Gostaria de vê-la? — perguntou Ajaxiano. — É por aqui. E, Mestre Cenea, vou celebrar meu aniversário no fim do verão. Enviarei um convite dentro de alguns meses. Seria uma honra tê-lo entre nós.
Ajaxiano levou Eduardo a uma salinha iluminada, com tapetes de cores claras, ilustrações coloridas de pássaros diversos nas paredes, flores brancas nas mesinhas de canto, Maud com as pernas estendidas no sofá, um livro no colo.
Tentou se erguer, mas Eduardo a impediu com um gesto. Ela estava magra e um pouco cinzenta, mas ficou rosa com a visita. Agradeceu-o por ter vindo.
— Caminhar me inspira — ele disse depressa. — Recebi um pedido da própria Imperatriz.
— Parabéns — disse Maud, deslumbrada.
— Ela quer uma composição sobre a Queda do Oeste.
— Uma história tocante — disse Maud.
— Um bando de lunáticos morrendo por nada?
— Eles morreram por suas crenças.
— Morreram, ponto final.
Ela pensou um pouco. Por fim perguntou:
— Você não morreria por sua música?
— Que absurdo. Se eu morrer, minha música também morre.
— Nem sempre o absurdo e a falta de esperança nos impedem de lutar. Às vezes os sentimentos são fortes demais. — Ela falou numa voz doce, de fazer cócegas na espinha.
— Eu não entendo isso — ele disse. — Espero nunca entender.
Quando Maud finalmente apareceu na casa de Eduardo, ele estava fazendo as malas.
— Vou para Tura conversar com historiadores. Espero encontrar inspiração no passado. — Ele estendeu uma pasta para ela. — Escrevi isto para você.
Ela abriu a pasta e seu rosto afogueou.
— Você escreveu uma canção para mim?
— Foi preciso. Você é uma unha encravada na minha cabeça. Cutuca e incha o cérebro. Tive de arrancá-la antes de viajar. É a primeira peça feliz que jamais escrevi. Espero que seja a última. Estude na minha ausência.
Nem mesmo a partida iminente de Eduardo abafou a felicidade de Maud. Ele havia escrito uma peça só para ela, e era uma canção feliz.
— Posso escrever para você? — ela perguntou.
— Se quiser.
— Você vai me responder?
— Se tiver tempo.
Ele respondeu a todas as cartas que Maud enviou. Ela passou os meses seguintes sonhando, escrevendo cartas e ensaiando sua canção feliz. Mas não deixou que ninguém a ouvisse.
— Cantarei para todos vocês no aniversário de meu pai — ela prometeu a amigos e família. Eduardo estaria na festa. Ela cantaria tão bem e ele sentiria tanto orgulho que... Maud enrubesceu.
O tempo passou aos tropeços: às vezes dias passavam na velocidade de um instante, outras vezes os minutos compensavam a pressa dos dias. A data do retorno de Eduardo se aproximava, e a última carta que ele enviou terminava com as mais belas palavras que um homem pode dizer a uma mulher.
Até breve.
O sol nasceu no dia em que o navio de Eduardo retornaria. Maud já esperava no porto. O sol se pôs no dia em que Eduardo não retornou. Maud continuava no porto. Outros navios trouxeram notícias de uma tempestade avassaladora.
No fim do verão Ajaxiano Freire abriu as portas de sua mansão para centenas de convidados. Mercadores de todas as nações, exploradores, artistas. Todos ouviram falar sobre as lições de canto que Maud tivera com o grande mestre desaparecido. Esperavam ansiosamente ouvir a canção que ele havia escrito a ela. A festa se aproximou do fim. Ajaxiano pediu à filha que cantasse, como havia prometido.
Maud estava determinada a honrar Eduardo com pelo menos uma música corretamente cantada. Ela ficou em pé no meio do grande saguão de mármore, cercada por flores exuberantes, olhos brilhantes, botas dançantes. A flauta começou a tocar, seguiu-a a viola, então os tambores e a harpa singela. Os ouvintes acompanharam com palmas alegres.
Maud começou a cantar e silenciou todas as mãos. Cantou sobre esperançosos sonhos, mas a voz pesava com perda e saudade. Domou os instrumentos, transformou euforia em melancolia, afogou em lágrimas o brilho de todos os olhos.
A canção terminou, mas o ritmo continuou embalado por soluços. Maud finalmente aprendeu a cantar com tristeza.
Três semanas mais tarde Maud, magra, abatida, estacou ao ver passar pela porta um homem quadrado cheio de quinas. Fechou os olhos, sacudiu a cabeça. O homem estava magro e sorria. Mesmo assim se parecia muito com Eduardo. Uma ilusão?
Ela pegou a mão que ele estendeu. A mão era sólida. Ele explicou (ela deve ter ouvido) que após o naufrágio havia conseguido chegar à terra e encontrou uma caravana, que seguiu para o norte por caminhos tortuosos. Maud agarrou as duas mãos, apalpou os calos, os dedos quadrados, concretos de Eduardo. Não se convenceu de que ele era real; não até ouvir:
— Ouvi dizer que arruinou minha música outra vez.
Maud continuou a arruinar a música de Eduardo até o fim de suas vidas.

De "Canção feliz" para "Biblioteca"