Valdir Aguilera
 Físico e pesquisador

 

 

História do racionalismo - 05
Conceitos de racionalismo

José Alves Martins

Faculdade que distingue o homem dos outros animais

Respondendo a questionamento de leitores/companheiros de Doutrina, vamos introduzir nesta seqüência de artigos um parêntese para esclarecer que, assim como são diversas as correntes filosóficas, também variam muito os conceitos de racionalismo.

De fato, contrariamente ao empirismo, corrente filosófica que valoriza a experiência no processo do conhecimento, e ao fideísmo, que valoriza a revelação religiosa "ou divina", o racionalismo designa as variadas doutrinas que submetem exclusivamente à razão (o logos, como diziam os gregos) todas as formas de conhecimento. De acordo com essas doutrinas, ele se apresenta sob diversos aspectos, ora como visão do universo que afirma o perfeito acordo entre o racional e a realidade, ora como uma ética que afirma serem as ações e as sociedades humanas racionais em seu princípio, em sua conduta e em sua finalidade. Adiante, detalharemos esses conceitos.

Tomado, porém, em seu sentido mais amplo e comum, racionalismo é o ato de pensar, raciocinar, fazer uso da razão, faculdade que distingue o homem dos outros animais que lhe são inferiores na escala evolutiva. Ainda em sentido lato, pode ser definido como a crença na razão e na evidência das demonstrações.

Do ponto de vista filosófico, eis os principais conceitos de racionalismo preconizados pelas diversas doutrinas:

• Método de observar as coisas baseado exclusivamente na razão, considerada como única autoridade quanto à maneira de pensar e agir e como fundamento de todo conhecimento possível; estabelece, desse modo, o primado dessa faculdade sobre o sentimento, a vontade e as demais faculdades humanas, uma vez que somente ela, a razão, é capaz de propiciar a adequada percepção e explicação da realidade.

• Doutrina que afirma nada existir que não tenha uma razão de ser, de tal modo que, de direito, nada existe que não seja inteligível.

• Teoria defendida pelo platonismo, o eleatismo e o cartesianismo (filosofia de Descartes) que se fundamenta na suposição de que a investigação da verdade feita sob a orientação do pensamento puro ultrapassaria, em muito, os dados imediatos oferecidos pelos sentidos e pela experiência, sendo estes dois últimos incapazes de nos proporcionar todos os conhecimentos; por outro lado, porém, o espírito possui, em potencial, os princípios da ciência e do saber em geral, como defendem Platão, em sua Teoria das Idéias, e Descartes, em sua tese do inatismo, ou das idéias inatas. Significa isso que o espírito é repositório de princípios ou conhecimentos a priori, ou seja, independentes da experiência e dos sentidos, e que todo conhecimento verdadeiro é manifestação desses princípios a priori, irrecusáveis e evidentes. Daí a conclusão kantiana de que, para a experiência ser possível, é preciso que o espírito disponha, realmente, de um sistema de princípios universais e necessários que organizem os dados empíricos (fornecidos pela experiência sensível).

• Posição defendida por Hegel, filósofo alemão, e outros pensadores que considera o intelecto humano capaz de atingir a plenitude da verdade objetiva ou absoluta, com base no pressuposto de que a realidade estaria organizada segundo leis, recorrências e subdivisões equivalentes e semelhantes à organização do pensamento cognitivo (relativo à percepção, ao conhecimento). Ou seja, as leis do pensamento racional são também as do objeto do conhecimento; o real é, em última análise, racional, e a razão é, portanto, capaz de conhecê-lo e de chegar à verdade sobre a natureza das coisas. Hegel sintetiza esse conceito com a famosa frase: "Tudo o que é racional é real, e tudo o que é real é racional".

• Corrente filosófica que privilegia formas argumentativas, empíricas ou dedutivas de conhecimento como meios para a compreensão da realidade, em detrimento da fé, do misticismo e da revelação religiosa. Essa linha de pensamento tem no filósofo Baruch Spinoza seu maior representante.

• Doutrina que se caracteriza por uma auto-observação crítica por parte da razão, na qual esta determina seus próprios limites e, conseqüentemente, reconhece a importância da experiência na efetivação do ato cognitivo (é o chamado racionalismo crítico, defendido por Kant).

• Movimento filosófico-cultural, denominado Iluminismo, que predominou no século XVIII, também conhecido como Século das Luzes. Iniciado na Inglaterra, esse esplêndido movimento intelectual teve seu apogeu na França, onde foi liderado por Voltaire, Rousseau, Montesquieu, Diderot e outros pensadores e enciclopedistas franceses. O racionalismo iluminista caracterizou-se pela confiança na razão, no progresso e na ciência, e pelo incentivo à liberdade de pensamento. O ideal do Iluminismo era levar esses valores a prevalecer e triunfar sobre o mito, a crendice, o "sobrenatural", o misticismo, a fé, o dogma, o fanatismo, a intolerância...

Esta série de artigos que venho publicando sob o título História do racionalismo pretende focalizar o desenvolvimento da filosofia, da ciência e do livre-pensamento através dos milênios (tarefa ousada, começo a perceber, e que este escriba melhor desempenharia "se tanto o ajudasse engenho e arte"). Essa longa marcha racionalista, que experimentou avanços e retrocessos em seu esforço multissecular de esclarecer o ser humano e libertá-lo de toda espécie de obscurantismo, deu seus primeiros passos, como já vimos, em épocas imemoriais.

Desse movimento histórico têm resultado, inegavelmente, importantes benefícios para a humanidade, nos setores político, social, científico, espiritualista (caso do Racionalismo Cristão), literário e cultural. No entanto, para que ele se tornasse árvore robusta e frondosa e produzisse semelhantes frutos, necessário foi, realmente, que deitasse raízes em idades remotas e ainda enfrentasse os vendavais dos tempos.

(Publicado originalmente no jornal A Razão, de agosto de 2006, www.arazao.com.br)


 

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