Valdir Aguilera
 Físico e pesquisador

 

 

História do racionalismo - 09
Quem tem medo do panteísmo?

José Alves Martins

Doutrina indiana ensinava há 2 mil anos que o homem se liberta pelo conhecimento

Diz um historiador da filosofia que, assim como entre os homens são raros os verdadeiros filósofos, também entre os povos são raros os que têm inclinação natural para a filosofia. Segundo esse historiador, entre os antigos povos da Ásia tal privilégio cabe à Índia, cujo pensamento representa a primeira das quatro grandes tradições filosóficas da humanidade.

À semelhança da filosofia grega, a filosofia indiana surge da religião e da mitologia. No entanto, diferentemente daquela, que logo assume sua caraterística racional e crítica em relação à tradição mítico-religiosa, esta permanece, durante os 2 mil anos de seu desenvolvimento, à sombra dos templos religiosos, monopolizada pelos brâmanes, a classe dos sacerdotes. Tal como aconteceu, aliás, em outras civilizações da Antiguidade (Egito, Babilônia e Suméria, por exemplo), nas quais o saber era privilégio da elite sacerdotal.

A filosofia indiana nasceu por volta do ano 1000 antes de Cristo, precedendo, portanto, o pensamento grego em cerca de três séculos. É nos textos dos Upanixades (doutrina secreta) que a filosofia bramânica alcança seu máximo desenvolvimento. De acordo com essa doutrina, Brâman é o ser absoluto, a Inteligência Universal, e Atman significa tanto Alma Única e Universal como alma individual (ou seja, Força Universal e partícula dessa Força, na terminologia do Racionalismo Cristão). Atman abrange tudo e se contém em todas as almas, sendo cada alma o Atman individualizado.

A essência do homem, bem como de qualquer ser ou coisa, é atman; o ser humano e tudo o mais são uma só coisa com o Brâman. Sujeito à prisão na matéria, aos múltiplos renascimentos neste planeta ou, em termos bramânicos, à metempsicose ou transmigração das almas, o espírito (atman) retornará, finalmente, depois desse longo processo evolutivo, à Alma Suprema, fonte e pátria original de todas as almas.

Ensinam os Upanixades que a libertação do homem provém do conhecimento da imutável realidade do Brâman. (Jesus diria mil anos depois: "Só a verdade torna o homem livre.")

Observe-se o caráter racional dessa doutrina espiritualista, infelizmente restrita, na época, a poucos iniciados: o homem evolui, ou se liberta, e volta à sua fonte de origem não pela fé, mas pelo conhecimento.

Trata-se, ademais, como se pôde observar, de uma das numerosas doutrinas que os historiadores das religiões e dos sistemas filosóficos classificam como panteístas, condição abominada por grandes religiões da atualidade, quase todas do Ocidente.

De acordo com os dicionários de filosofia, as acepções do termo panteísmo sofrem algumas variações de acordo com as diversas doutrinas. Eis algumas definições:

1. doutrina segundo a qual tudo é Deus: este, a natureza, o Universo são apenas um;

2. doutrina que considera que o mundo emana de Deus necessariamente, como necessariamente emana o perfume do corpo perfumado e a luz, da sua fonte. O ser gerado existe junto com o ser gerador e dele não se separa, sendo meramente sua parte ou aspecto;

3. "Deus está acima de todas as coisas, porque só ele é; embora sendo tudo em todas, não cessa de ser tudo fora de todas." (Escoto Erígena);

4. "Deus e a natureza são a mesma coisa, mas, enquanto aquele é naturante, esta é naturata (gerada). O mundo não só é a emanação e a manifestação de Deus, mas é a sua própria realização, na ordem de todas as coisas: 'nada há de contingente nas coisas, mas tudo está determinado a existir e a operar de certo modo pela necessidade da natureza divina'." (Espinosa);

5. concepção segundo a qual todos os seres se identificam com Deus. Este é, assim, um ser imanente ao mundo, à natureza, e não um ser exterior e transcendente;

6 - doutrina que afirma que toda alma ou espírito é uma parte ou parcela de Deus, da mesma essência que ele, portanto.

O assunto sempre foi muito polêmico, com a acusação de que o panteísmo seria uma espécie de ateísmo, ao negar a transcendência e a pessoalidade de Deus.

Assim, por exemplo, consideram-se panteístas: o homem pré-histórico, por sua crença animista; os brâmanes, como já se viu; Hermes Trimegisto e os sacerdotes do antigo Egito; os grandes filósofos gregos; Jesus ("Vós sois deuses"); importantes pensadores da Era Moderna, tais como Giordano Bruno, Espinosa, Leibniz, Hegel, entre muitos outros; e, enfim, o Racionalismo Cristão.

No entanto, não são panteístas (e condenam os que o são) as religiões que se dizem cristãs, incluindo o espiritismo kardecista.

(Publicado originalmente no jornal A Razão, de dezembro de 2006, www.arazao.com.br)


 

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