História do racionalismo - 10
Jainismo, filosofia atomista na Antiguidade
José Alves Martins
Uma doutrina panteísta que a teologia cristã considera ateísta
As doutrinas conhecidas como budismo e jainismo incluem-se entre os sistemas heterodoxos ou grandes heresias do pensamento bramânico. São assim consideradas por estarem fora ou contra a tradição védica, ou seja, não reconhecem os Vedas como livros sagrados.
Esses dois movimentos filosófico-espiritualistas, surgidos na mesma região da Índia e quase contemporâneos, apresentam em comum uma raiz bramânica remota. Isso, porém, não impede que apresentem profundas divergências do bramanismo, principalmente aquele para uso externo, destinado à grande massa não iniciada ou esclarecida.
Entre essas divergências citem-se, por exemplo, a independência do liame de castas, o horror a todo sacrifício cruento, o repúdio aos cultos e rituais, a vontade de libertação pelo conhecimento e pela ascese e, principalmente, a não-admissão de um Deus pessoal e transcendente. Em vez disso, o jainismo e o budismo admitem que o universo é composto de Espírito e Matéria. Ou seja, estão entre as doutrinas da Antiguidade consideradas panteístas, mas que a teologia cristã teima em classificar de ateístas.
Com efeito, o Jaina Vardhamana e o Buda Gautama não são deuses, mas guias ou mestres, e não são fundadores de religiões, e sim de ordens ou irmandades destinadas a ensinar e divulgar suas doutrinas. Chegam à libertação pela meditação, raciocínio, reflexão e afirmam a absoluta independência do sábio em relação a qualquer autoridade religiosa ou "divina".
Existem, todavia, diferenças fundamentais entre essas duas filosofias. Por exemplo, o jainismo recorre a um rigoroso ascetismo, isto é, à prática da mortificação ou tortura do corpo pela fome e pela sede, para libertar o espírito da matéria. Já o budismo recorre ao conhecimento e exclui o ascetismo.
Mais do que fundador, Vardhamana foi o grande reformador do jainismo, cujas origens remontam a nove séculos antes de Cristo. Nasceu entre 549 e 539 a.C. na região de Pataliputra (hoje Patna), norte da Índia, e desencarnou nessa mesma cidade, entre 477 e 467 a.C. Seu pai era chefe de uma república aristocrática, e sua mãe, irmã do rei de Vaiçâli.
Aos 30 anos de idade, resolve, tal qual fizera Buda, abandonar o mundo e a família, inclusive o filho, distribui seus bens aos pobres e se torna asceta mendicante. Depois de enfrentar por vários anos essa vida de sacrifício, torna-se jaina (o vitorioso) e mahâvira (o grande herói).
Às quatro obrigações da ordem (não matar, não mentir, não furtar, não fornicar), acrescentou mais duas: a pobreza absoluta e a castidade, e tornou obrigatória a confissão dos pecados graves (prática que seria copiada depois pelo catolicismo). A organização social jainista difere da bramânica, pois, ao aceitar as pessoas na vida monástica, não leva em conta a casta a que pertencem.
A filosofia jainista considera dois tipos de conhecimento: um indireto, mediato, imperfeito. Outro direto, intuitivo, perfeito. Ao primeiro tipo pertencem o raciocínio e a percepção ou conhecimento sensível; ao segundo, o conhecimento daquilo que está longe no tempo e no espaço, o conhecimento do pensamento alheio e o conhecimento absoluto, a onisciência, alcançada pelo jaina, aquele que realizou a libertação espiritual.
O jainismo ensina que o universo é eterno, não-criado, auto-subsistente e composto de Espírito e Matéria, e sua concepção do mundo material é realista-atomista. Os átomos desse mundo material são indivisíveis, semelhantes e dotados de movimento, tangibilidade, sabor, odor e cor. Eles se combinam, formando agregações, constituindo assim o mundo material.
Eis aí, cinco séculos antes de Cristo, uma doutrina atomista. Posteriormente, os filósofos gregos Demócrito (460-361 a.C.), Leucipo (460-370 a.C.) e Epicuro (341-270 a.C.) também formulariam suas teorias atomistas. No entanto, a redescoberta do átomo por Dalton só viria a acontecer em 1805, dois milênios e meio após o surgimento do jainismo.
O outro componente do universo, o Espírito, ensina ainda o jainismo, detém a inteligência, o conhecimento absoluto, e é o princípio de vida de toda a realidade. Essa inteligência e esse conhecimento são mais ou menos ofuscados segundo o grau hierárquico dos seres (minerais, vegetais, animais, homens), até se manifestar em toda a plenitude nas almas livres de toda matéria, que habitam "acima do universo – o domicílio das almas livres".
Corroborando o pensamento clássico indiano, a ética jainista acredita que os nossos atos, isto é, a nossa atividade mundana, são culpados e dolorosos. Assim sendo, devem ser expiados, quer na mesma vida em que foram realizados, quer nas vidas sucessivas, assim como na vida presente expiam-se as atividades mundanas de vidas anteriores, tudo de acordo com a lei do carma – o ato que deve ser expiado – e a da metempsicose (reencarnação).
Isso posto, entende-se a razão das rigorosas práticas de ascetismo adotadas pela moral jainista como solução para libertar o espírito da matéria, da reencarnação e do sofrimento, a fim de que possa entrar no nirvana – a vida verdadeira, segundo essa doutrina.
(Publicado originalmente no jornal A Razão, de janeiro de 2007, www.arazao.com.br)
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