História do racionalismo - 11
Buda, o 'ateu' que se tornou um deus
José Alves Martins
Assim como o jainismo, o budismo é uma doutrina dualista
Com o advento do budismo e do jainismo, no século VI antes de Cristo, a história humana registra um dos primeiros brados do racionalismo contra o misticismo, o 'sobrenatural', a superstição e o dogma. Cerca de sete séculos antes, já sofrera a religião um duro golpe, no Egito, durante o reinado do faraó Akhenaton, que, não obstante a ferrenha oposição dos falsos sacerdotes, aboliu em seu país os cultos politeístas e idólatras, instituindo em seu lugar o monoteísmo.
Entre os sistemas heréticos ou heterodoxos da Índia, isto é, que recusaram a autoridade 'divina' dos Vedas, a "bíblia" do bramanismo, o mais célebre é o budismo. Trata-se, na verdade, de uma filosofia, não de uma religião.
Não professando a existência de qualquer deus, o budismo é um sistema ético-filosófico-espiritualista fundado por Siddharta Sakya-Muni Gautama, nome original de Buda (iluminado, esclarecido), que, segundo várias tradições, viveu no período entre 560 e 480 antes de Cristo.
Essa doutrina parte da constatação de que o sofrimento é a condição fundamental, a única realidade da existência, e afirma que o homem pode superá-lo pondo em prática os ensinamentos budistas por meio dos quais se alcança o estado de bem-aventurança integral, o nirvana. Em outros termos, ensina como, pela conquista do mais alto conhecimento, o espírito se liberta da roda dos nascimentos (transmigração das almas, reencarnações) e atinge esse estado nirvânico.
Buda chegou à conclusão de que nada poderia aprender com os mestres das velhas religiões. Não tinha sido pela 'ciência' deles que renunciara à sua condição de príncipe, bens e família e se tornara monge mendicante. Esses mestres se consideravam os senhores do povo, trazendo-o sujeito pela superstição, feitiçaria, sacrifícios, ritual e cerimônias.
Assim sendo, Buda aconselhava seus seguidores a romper esses vínculos que os mantinham presos às religiões, confiando na própria razão, pensando por si mesmos na investigação da verdade, na busca do conhecimento e da sabedoria.
Com efeito, seu discurso batia de frente com antigas crenças e crendices. Combatendo, antes de tudo, os sacerdotes, com suas superstições, rituais e sacrifícios, afirmava que o povo não precisava deles para sua salvação. E não só combatia esses servidores dos deuses, como também não admitia a existência dos próprios deuses. Assim, embora tributária em vários pontos da especulação dos Upanixades (tratados filosóficos que fazem parte dos Vedas), o budismo dela se desvincula pela negação da divindade.
Na verdade, essa doutrina se distingue pelo seu pragmatismo. Seu fundador se recusava, sistematicamente, a especular sobre questões metafísicas e teológicas. Tudo nele convergia para a solução do problema moral. Declarava que, ao contrário dos sacerdotes, que se perdiam nesse tipo de especulação (em sua opinião, inútil e perda de tempo), ele só se ocupava com o procedimento dos homens na existência atual. Não estava interessado no 'sobrenatural' ou em divindades, e sim em mostrar aos seres humanos como deviam viver neste mundo para se libertar do ciclo de nascimentos e mortes e, por conseqüência, do sofrimento e da dor.
"O verdadeiro caminho da salvação não está em nenhum templo, em nenhuma paragem exterior, mas no interior da alma de cada um. Cerimônias, orações, oferendas, sacrifícios de nada valem", ensinava ele. Não pretendia oferecer aos seus seguidores "os direitos, os encantamentos, os poderes sacerdotais, este ou aquele credo, ou mesmo uma nova crença, nem tampouco nenhum dos deuses em que os homens tanto gostam de confiar".
"O dogmatismo religioso", dizia, "leva unicamente ao ódio e à discórdia, nunca à sabedoria e à paz." O mais seguro caminho da salvação, ou libertação espiritual, ensinava, está no amor ao semelhante, no respeito mútuo de todos os homens, raças e credos. Recomendava a seus discípulos não usar de qualquer arma para a conversão, a não ser a da linguagem persuasiva. "Se não posso convencer-te, nunca deverei condenar-te", afirmava. (Buda lançou a semente dos direitos humanos dois milênios antes de o racionalismo iluminista erguer essa bandeira perante o mundo, no século XVIII de nossa era.)
Assim como o jainismo, de que tratamos no artigo anterior, o budismo é uma doutrina dualista, ou seja, o universo se compõe de alma e matéria, não admitindo, como já se viu, o sobrenatural ou divindades, o que valeu a Buda ser classificado de ateu. De acordo com a miopia desse ponto de vista, o Racionalismo Cristão estaria também incluído entre as doutrinas ateístas, pois, para certas mentalidades religiosas, existiria, além da matéria e dos espíritos ou almas (Força Universal), um Deus personalizado, transcendente, antropomórfico (concebido à imagem do homem), não admitido, obviamente, por essa Doutrina, codificada por Luiz de Mattos.
"Não penseis", disse Buda a seus discípulos em seu momento final, "que, por ter-se ido vosso mestre, a Palavra há de morrer." No entanto, observa o historiador Henry Thomas, "se Buda pudesse prever, naquele instante, as novas feições que sua Palavra ia assumir, haveria de espantar-se, pois ele próprio, que não acreditava em divindades, ia converter-se no deus de uma nova religião".
(Publicado originalmente no jornal A Razão, de fevereiro de 2007, www.arazao.com.br)
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