História do racionalismo - 24
Prelúdios da filosofia grega - 2
José Alves Martins
Os mitos foram a teorização possível nas épocas remotas da história
Depois da poesia grega (assunto do artigo anterior), o segundo componente a que é preciso fazer referência para compreender a origem da filosofia helênica é a religião. Recorde-se, porém, que havia na Grécia antiga a religião oficial ou pública e a dos mistérios. Importante diferença entre as duas: a oficial nega a imortalidade da alma – a morte interrompe a vida. Imortais, só os deuses.
Este artigo se refere à religião pública; o da próxima edição vai focalizar a dos mistérios.
Diz um estudioso que os mitos foram a teorização possível nas épocas remotas da História, tendo eles guiado a humanidade durante milênios, e que, portanto, não podem ser considerados simples delírio da fantasia ou atestado de incompetência da razão humana; ao contrário, principalmente em se tratando do mundo helênico, em cujos mitos sente-se já presente uma das características do racionalismo – o questionamento –, que se tornará mais explícito com o desenvolvimento histórico do pensamento racional.
Pelo que se observa nas obras de Homero e de Hesíodo – principais pontos de referência das crenças próprias da religião pública dos gregos –, nada acontecia sem a intervenção dos deuses, concebidos como seres antropomórficos (em forma humana). Nesse intervencionismo das divindades residia a explicação para tudo, desde os fenômenos naturais à vida social dos homens.
Assim, por exemplo, os raios e relâmpagos eram lançados por Zeus do alto do monte Olimpo. De igual modo, a guerra e a paz, as atividades humanas, a "sorte" dos homens e das cidades achavam-se vinculadas à vontade, ao arbítrio e à ação dos deuses. Lembre-se, além disso, que Zeus era a personificação da justiça; Atena, da inteligência; Afrodite, do amor, e assim por diante.
Daí a conceituação formulada pelos estudiosos a respeito dos deuses gregos, segundo a qual estes representavam forças naturais personificadas em formas humanas idealizadas ou atributos e aspectos do homem sublimados e fixados em esplêndidas figuras antropomórficas.
Por isso esses estudiosos vêem na religião pública da Grécia uma forma de humanismo e naturalismo (alheia, portanto, à concepção sobrenaturalista das crenças de outros povos ou civilizações). Esse naturalismo religioso não exige do homem, senão que siga sua própria natureza, que honre os deuses fazendo tão somente o que está em conformidade com ela.
Já vimos que, em geral, os povos antigos divinizaram seus heróis e fundadores de religiões. Os gregos, ao invés, humanizaram seus deuses. Entre estes reinavam as mesmas paixões, rivalidades e disputas que aconteciam entre os humanos. Em suma, os deuses gregos, em sua morada olímpica, constituíam uma espécie de réplica do mundo nobre da Grécia, observa um historiador. Não eram, para a sociedade aristocrática retratada nos poemas de Homero, seres sagrados ou transcendentes, apesar de imortais, e estavam sujeitos ao destino, apesar das altas prerrogativas e poderes a eles atribuídos.
Em Hesíodo, o processo de racionalização dos deuses é ainda maior, diz, ainda, esse estudioso. Não há lugar, assim, para sentimento místico nessa religião de caráter humanista e naturalista. "Seus cultos e rituais têm mais função de congraçamento na consciência de um mesmo ideal humano."
O humanismo helênico, entendendo-se como tal essa atitude de busca e de definição de um ideal humano de vida, representa o primeiro passo do racionalismo na Grécia, lá pelo século VIII ou IX antes de Cristo, rumo à criação, mais tarde, da filosofia e da ciência.
Com efeito, observa o mesmo autor, elementos desse humanismo, que vai constituir a característica do helenismo, afloram já nas obras de Homero, que teria vivido num daqueles séculos, e nas de Hesíodo, nascido, segundo uma cronologia hipotética, cerca de 50 anos depois de Homero.
Desse modo, o racionalismo helênico deita raízes em idades remotas, germinando no solo da própria religião e dos mitos. Além da filosofia, que vai representar o desvincular-se das concepções mítico-religiosas, ele propiciará aos gregos um tipo de convivência leiga (alheia à religião) em que razão e liberdade hão de ser o fundamento da ordem social e política.
À semelhança da religião pública, a filosofia dos pensadores pré-socráticos também foi naturalista, tendência herdada, de certo modo, por filósofos posteriores, pois a referência à natureza continuou sendo uma constante na história do pensamento grego.
(Publicado originalmente no jornal A Razão, de março de 2008, www.arazao.com.br)
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