História do racionalismo - 25
Prelúdios da filosofia grega - 3
José Alves Martins
A alma está destinada a reencarnar sucessivamente para expiar a culpa original
Como vimos, existiam na Grécia antiga duas linhas de religiosidade: a oficial ou pública (tema do artigo anterior) e a dos mistérios. Esta última, desenvolvida em círculos restritos e com suas crenças e práticas específicas, era procurada por aqueles que consideravam insuficiente a religião oficial.
Entre as seitas dos mistérios foi o orfismo o que mais influiu na filosofia grega. Essa doutrina deve seu nome ao poeta mitológico Orfeu, seu suposto fundador, natural de uma região da Trácia pertencente à Grécia. Teria vivido nos tempos pré-homéricos e sua existência acha-se envolta no nevoeiro das lendas.
Enquanto a religião oficial considerava a morte o fim total do ser humano, os mistérios órficos preconizavam a imortalidade da alma, a metempsicose (reencarnação) e outros conceitos de ordem transcendente.
Para os pesquisadores modernos, portanto, o orfismo, contrapondo-se, com suas concepções espiritualistas, à religião oficial, de caráter naturalista e humanista, assume papel de relevante importância, porque introduz na civilização grega nova interpretação da existência humana.
Em linguagem condizente com a época, eis um resumo dos preceitos dessa doutrina:
Existe no homem um princípio divino, um "daimónion" (alma ou espírito), que teve de encarnar num corpo por causa duma culpa original; a alma, que preexiste ao corpo e sobrevive à morte dele, está destinada a reencarnar sucessivamente para expiar essa culpa original, purificar-se e evoluir; a prática dos ensinamentos órficos põe fim ao ciclo das reencarnações, libertando assim a alma do corpo; para quem alcançou a purificação (o iniciado nessa doutrina), há um prêmio no além, assim como há punições para quem não se purificou.
Para o orfismo, o espírito ou daimónion é uma parcela de Deus (Força Universal) e a ele haverá de voltar, como, em outras palavras, sugerem essas inscrições encontradas em sepulcros de seguidores da doutrina: "Tu, que foste submetido a sofrimentos atrozes, alegra-te: de homem, nasceste Deus"; "Feliz e bem-aventurado, serás Deus ao invés de mortal"; "De homem, nascerás Deus, pois derivas do divino".
Com os conhecimentos dessa doutrina espiritualista, observa um estudioso da filosofia helênica, o homem descobre em si o contraste desses dois princípios em constante luta: a alma e o corpo ("tumba ou lugar de expiação da alma").
Os conceitos órficos introduzidos na Grécia rompem, portanto, a tradição naturalista e humanista, impregnada de materialismo, da religião pública, que nos é apresentada nos poemas homéricos.
"O homem compreende", diz aquele pesquisador, "que algumas tendências ligadas ao corpo devem ser reprimidas, ao passo que a purificação do elemento divino em relação ao elemento corpóreo torna-se o objetivo do viver".
Uma coisa deve-se ter em mente, acrescenta o mesmo autor: sem o orfismo não se explicaria grande parte da filosofia antiga, como as doutrinas de Pitágoras, Heráclito, Empédocles e Platão, bem como toda a tradição proveniente desse grande mestre.
Lembre-se ainda que, não tendo os gregos antigos livros "sagrados" nem um sistema dogmático, não pôde subsistir na Grécia uma casta sacerdotal poderosa. Isso porque, sem a prerrogativa de guardar ou conservar dogmas e sem a exclusividade de receber oferendas e oficiar sacrifícios, o poder e a relevância dos sacerdotes no mundo helênico eram, pode-se dizer, insignificantes.
Essa inexistência, na Grécia antiga, de dogmas e de guardiões desses dogmas, observam os estudiosos, proporcionou ampla liberdade ao pensamento racional ou filosófico, que não deparou com obstáculos que teria encontrado em civilizações do antigo Oriente, "onde a livre especulação enfrentaria resistência e restrições dificilmente superáveis".
(Publicado originalmente no jornal A Razão, de abril de 2008, www.arazao.com.br)
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