História do racionalismo - 27
Prelúdios da filosofia grega - 5
José Alves Martins
Só os gregos foram capazes de elaborar consistente formulação teórica dos conhecimentos
Os ensaios de questionamento e de racionalismo que já se observam nos poemas de Homero e de Hesíodo
tinham evoluído com a nova prática política ensejada pela democracia grega. Isso propiciara ao
cidadão uma visão racional da vida em sociedade.
"Essa nova visão", diz o professor de filosofia Tiago Adão Lara, autor de Os Caminhos da Razão
no Ocidente, "levaria a gradativas mas vigorosas rupturas com a concepção mítica, proporcionando
nova abordagem do real, que se poderia chamar de abordagem científica."
Dissemos, na edição anterior, que o governo dos tiranos (governantes absolutos, mas apoiados pelo
povo, e cujo direito ao trono não era hereditário) acelerou, na Grécia do século VII antes de Cristo,
o processo de laicização (independência do Estado da influência religiosa) e que isso possibilitou
às camadas enriquecidas no comércio e na indústria, não pertencentes à classe nobre, o acesso
às magistraturas, ao conselho e à assembléia.
Deve-se a essa virada cultural o surgimento da consciência de que as instituições tinham de se
fundamentar na vontade e na determinação dos cidadãos, resultando, pois, do confronto de
forças da sociedade.
Nesse confronto, a habilidade no uso da palavra, vista pelo grego como expressão da racionalidade,
torna-se instrumento político poderoso e eficaz. Assim, "na assembléia o cidadão grego era chamado
a ser juiz entre razões diversas que se defrontavam e se aclaravam pela mediação do discurso",
observa o professor.
Era o dessacralizar-se da ordem social, ou seja, o desligamento da vontade dos deuses ou de
autoridades supostamente investidas por eles de "poder divino".
Na assembléia, segundo o estudioso, os cidadãos passavam a fazer do exercício da política
uma experiência concreta de racionalidade. Nesse espaço, igualava-os a capacidade racional
de argumentar e julgar, e perdia terreno a mentalidade mítica ou religiosa; ali, o que
importava agora era a força da racionalidade, que, no entanto, não era monopólio de ninguém.
Em decorrência desse clima cultural e do intercâmbio comercial entre a Grécia e outros países,
teve início no mundo helênico do século VI antes de Cristo a sistematização da geometria e de
outras ciências que também devem sua origem ao gênio grego.
Antes dos gregos, é verdade, egípcios e babilônios tinham acumulado uma série de observações
no campo da matemática, da astronomia, da agrimensura e da medicina. Tais conhecimentos foram
transmitidos à Grécia ao acentuarem-se as atividades comerciais das cidades jônicas (colônias gregas)
com esses povos. Só os gregos, porém, foram capazes de elaborar uma consistente formulação
teórica desses conhecimentos, fazendo deles um saber organizado e racionalmente crítico.
"Era o nascer da ciência", observa ainda aquele autor.
"O que entendemos por ciência", diz ele, "ao nos referirmos a esse período da história
do mundo grego, é o sistema organizado e explícito de conhecimentos, em oposição a uma
simples posse de conhecimentos esparsos ou amontoados acriticamente (como acontecia nas
civilizações acima mencionadas). Tratava-se, pois, de teoria elaborada, no intuito de
controlar a experiência espontânea. São os gregos que, por primeiro, fazem isso."
A maneira de interpretar a existência, as coisas, os fatos, o mundo, o Universo sofreu
variação radical. Agora, diferentemente da tradição mítica, o sentido atribuído a essas
realidades tem de submeter-se a uma condição básica: a regra da logicidade.
O cidadão grego esclarecido tinha agora a consciência explícita da primazia da razão
sobre os sentidos, a fantasia e o mito. Como diz o professor, o homem se conscientizara
do caráter racional do seu ser e da elevação da razão, de suas leis, suas exigências e
sua dinâmica como critério absoluto da verdade.
O surgimento da filosofia seria então o corolário, a conseqüência natural desse clima
cultural impregnado de racionalismo que passou a dominar e caracterizar a civilização
grega a partir do século VII antes de Cristo.
(Publicado originalmente no jornal A Razão, de junho de 2008, www.arazao.com.br)
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