Valdir Aguilera
 Físico e pesquisador

 

 

História do racionalismo - 30
A verdade dentro de um poço

José Alves Martins

Muito do que se fala sobre Tales de Mileto é lenda; ainda assim, vale lembrar a vida dele

Existem muitas lendas sobre Tales de Mileto. Mesmo assim, por se tratar de um dos marcos importantes da história do racionalismo, resolvemos dedicar a maior parte deste espaço à vida do filósofo, deixando sua filosofia para outro artigo.

Tales de Mileto, que teria sido, no dizer de Cícero, o mais sábio dos Sete Sábios da Grécia, foi também, como vimos, o iniciador do pensamento racional e científico, proporcionando assim ao mundo grego a honra de ser o berço da filosofia.

O pioneirismo filosófico de Tales é confirmado principalmente pelo fato de ter sido o primeiro a afirmar a existência de um princípio originário único, causa de todas as coisas. Compreender a importância histórica de tal proposição – na verdade, a primeira proposta filosófica da civilização ocidental – é entender a grande revolução que marcou o nascimento da filosofia.

O nível de racionalidade e o espírito científico revelados por esse primeiro filósofo podem ser demonstrados pelo fato de que ele havia pesquisado os fenômenos do céu a ponto de predizer com precisão um eclipse solar, com o que granjeou muita fama e admiração entre seus compatriotas. Tal eclipse, calculam os astrônomos, teria sido o de 585 antes de Cristo, o mesmo que, aterrorizando dois exércitos em luta, pôs fim ao combate.

Graças à previsão desse eclipse feita por Tales, foi possível situá-lo cronologicamente, ou seja, ficamos sabendo que ele estava ativo na década de 580 a.C. Com base em outros escassos dados, os estudiosos calculam que Tales provavelmente tenha vivido nas últimas décadas do século VII a.C e na primeira metade do século VI a.C.

Precursor também na área da engenharia civil, realizou a proeza, para a época, de desviar o curso do Rio Hilas a fim de que o rei Creso pudesse passar com seu exército.

A tradição atribui a Tales vários teoremas geométricos. Diz também que ele viajou pelo Egito, de onde teria levado para a Grécia a ciência da geometria. Conta-se ainda que sabia calcular a distância de um navio no mar por meio de observações feitas em dois pontos situados em terra, bem como a altura de uma pirâmide pelo comprimento de sua sombra.

Conta Aristóteles que Tales, cansado de ser censurado por seus críticos, segundo os quais a pobreza em que vivia demonstrava que sua filosofia não servia para nada, resolveu, finalmente, provar a utilidade de seu saber na vida prática. De acordo com a tradição, ele previu, pelo conhecimento que tinha das estrelas, que iria haver uma grande colheita de azeitonas no ano seguinte. Então, conseguiu, com pouco dinheiro, alugar todas as prensas de azeitonas de Quio e de Mileto a preços baixíssimos, por ser inverno, época em que não havia procura por elas. Quando chegou a estação da colheita e todos as queriam ao mesmo tempo, ele as sublocou pelo preço que quis, amealhando grande fortuna. Assim, diz a tradição, mostrou a seus críticos e ao mundo que os filósofos, se quiserem, podem enriquecer facilmente, mas que sua ambição era de outra natureza.

No seguinte e curioso caso, citado por Platão, este conta que, em certa ocasião, Tales contemplava o céu noturno, observando as estrelas sem prestar atenção no terreno em que pisava, e acabou caindo em um poço.

Uma serva de Tales, testemunha do tombo, espalhou a história, e o povo passou a zombar do filósofo, que se preocupava em observar e estudar as estrelas, mas não conseguia ver o que estava ao redor, a seus pés.

Foi precisamente porque Tales desprezava o terra-a-terra das pequenas almas para dedicar-se ao pensamento eminentemente especulativo que Platão o teria considerado como o primeiro dos filósofos, aquele que, antes de todos, se expôs ao risco filosófico, que Nietzsche chamará de "perigo das estrelas".

Consta que, em época posterior a essa história do tombo, tornou-se conhecido na Grécia um estranho provérbio que dizia: "A verdade está dentro de um poço", uma referência, acreditam os estudiosos, ao poço de Tales.

(Publicado originalmente no jornal A Razão, de setembro de 2008, www.arazao.com.br)


 

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