Parte de tudo em tudo
José Alves Martins
A filosofia de Anaxágoras pensa unidade e multiplicidade juntamente
A filosofia atingiu seu maior esplendor em Atenas, nos séculos V e IV antes de Cristo, com Sócrates, Platão e Aristóteles. No entanto o pensamento racional e filosófico surgira e florescera, como se sabe, no século VI a.C, nas regiões periféricas do mundo helênico, ou seja, nas colônias gregas da Jônia (Ásia Menor) e da Magna Grécia (Sicília e sul da Itália).
Esse acontecimento histórico deu-se graças à coragem intelectual dos pioneiros do racionalismo grego, naturais dessas colônias, que ousaram questionar a mentalidade arcaica, negando ou reinterpretando racionalmente a tradição, fundada nas crenças e concepções da religião e do mito. Enquanto isso, alicerçada em valores que apenas indiretamente recebiam a influência da novidade filosófica nascida naquelas regiões periféricas, a península grega (a Grécia propriamente dita) desenvolvia-se política e socialmente. Atenas, lembra um estudioso, chegou à fase áurea de sua democracia sem ter gerado um filósofo sequer. "E ainda perseguiu o primeiro que para lá se transferiu: Anaxágoras."
Nascido em Clazômenas, na Jônia, no ano 500 antes de Cristo, aproximadamente, Anaxágoras foi viver em Atenas, onde fundou a primeira escola de filosofia da cidade, para a qual levara as ideias novas que estavam sendo produzidas nas colônias. Aí, onde permaneceu por 30 anos, tornou-se amigo e confidente de Péricles, o grande líder político dos atenienses, e de Fídias, e viu, entre outras obras grandiosas, levantar-se o partenon, construído sob a supervisão desse famoso escultor.
Nem a amizade de Péricles, porém, livrou Anaxágoras do processo movido contra ele pelos tradicionalistas, que consideravam a novidade filosófica um escândalo e o acusavam de ímpio e ateu, pois, segundo afirmavam, as ideias do filósofo negavam e ofendiam os deuses cultuados em Atenas. Assim, Anaxágoras se viu forçado a se refugiar em Lâmpsaco, cidade à beira do Helesponto, nome antigo do estreito dos Dardanelos. Aí fundou outra escola e veio a morrer pelo ano de 428 a.C, quando teria 72 anos.
Mais tarde, a filosofia voltará mais uma vez ao banco dos réus em Atenas, que, por motivos semelhantes aos invocados contra Anaxágoras, condenará Sócrates à morte por envenenamento.
A descoberta das homeomerias e da inteligência cósmica ordenadora - Anaxágoras deu prosseguimento à tentativa de resolver a grande dificuldade suscitada pelo desacordo entre as ideias de Parmênides e as de Heráclito. Segundo especialistas, a filosofia de Anaxágoras se caracteriza pelo esforço de pensar unidade e multiplicidade juntamente. Em sua obra Sobre a Natureza, da qual nos chegaram alguns fragmentos, ele tenta, como já o fizera Empédocles, conciliar a ideia de um ser (o mundo material) imutável, defendida por Parmênides, com a existência de um mundo que apresenta a aparência do nascimento e da destruição. "Nada nasce nem morre, mas, sim, a partir daquilo que existe, criam-se infinitas combinações e separações de todos os elementos, explicando-se assim a pluralidade das coisas."
Para ele, pois, a "physis" (a natureza) é um fluxo dinâmico, constituído por infinitas partículas divisíveis ao infinito, que se juntam para formar os diversos corpos, teoria que já é um prelúdio do atomismo de Leucipo e Demócrito, influenciados pela doutrina do mestre de Clazômenas.
Essas partículas mínimas, eternas, infinitas, imutáveis, que, segundo Anaxágoras, constituem a realidade e explicam a natureza diversa das diversas coisas, semelhantes, de algum modo, aos elementos da química moderna, foram chamadas por Aristóteles de homeomerias (sementes das coisas). Mas parece que o próprio Anaxágoras já lhes tinha dado essa denominação.
O termo significa, na concepção de Anaxágoras, que qualquer coisa do mundo material contém necessariamente todas as múltiplas e contraditórias qualidades que se encontram no resto do universo físico, mas é definida e caracterizada por uma qualidade preponderante ou hegemônica. Como ele diz, "em cada coisa existe uma porção de cada coisa" ou, mais sucintamente, "parte de tudo em tudo".
Anaxágoras põe acima da infinita multiplicidade da natureza uma unidade soberana, a Inteligência Universal, princípio cósmico eterno e ilimitado, também chamado de Nous, Espírito, Força, Mente ou Razão, capaz de ordenar os elementos materiais (as homeomerias) que compõem o Universo. O Nous, diz ele, preside a revolução dos astros e a circulação universal, envolve e domina o cosmo, e os objetos tomaram sua forma por intermédio desse espírito modelador.
Afirma também que a matéria é incapaz de se mover por si mesma, sendo a Inteligência a causa do movimento e da pluralidade e a responsável pela separação das coisas, antes unidas num todo único. "Na origem, todas as coisas estavam juntas, formando um todo cujas partes não eram identificáveis, como o caos original da mitologia. Mas elas foram separadas pela força do Nous, que, como num turbilhão, pôs em movimento todas as coisas", diz Anaxágoras, antecipando-se, de certo modo, à teoria do Big Bang defendida pela ciência moderna.
O amor à filosofia tornou Anaxágoras indiferente aos interesses terrenos, tendo se descuidado de seu patrimônio. Costumava dizer que sua pátria era o céu, e a tarefa de sua vida, a contemplação das estrelas.
(Publicado originalmente no jornal A Razão, de fevereiro de 2010, http://arazao.com.br)
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