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Os doze trabalhos de Hércules
Monteiro Lobato |
Depois teve uma ideia melhor ainda.
– Cavalo, não, Hércules. Um centauro!... Pedrinho a nos acompanhar montado num centauro, haverá coisa mais linda? Hércules sorriu. – Os centauros são monstros indomáveis. Já lutei contra eles e sei. – Um potrinho de centauro - sugeriu Emília. A ideia abalou Hércules. Sim, um potrinho de centauro talvez fosse amansável.. Ele jamais pensara nisso nem ninguém ali na Grécia. |
Pedrinho arregalou os olhos.
– Um centauro? Eu lá agüento andar montado num desses monstros?
– Um centauro filhote, Pedrinho. Um potrinho de centauro...
O rosto do menino iluminou-se. Se era um potrinho, então podia ser
viável - e que gosto o seu, quando de
volta ao século 20 pudesse contar a todo mundo que a sua montaria lá na Grécia fora um
potrinho de
centauro! A inveja do Jojoca e dos outros. As suas entrevistas aos jornais...
– E onde encontraremos isso?
– Por aqui mesmo - respondeu
Hércules. - Eu estava contando à dadeira de ideias que
fica por estas paragens a querência dum pequeno bando de centauros. Muito provável que
haja entre eles
algum novinho...
Disse e também se sentou em outra pedra ao lado de Pedrinho, apeando
Emília e o Visconde. A ex-boneca
não cabia em si de tanta importância. A sua última ideia aumentara muito a consideração
em que o herói
já a tinha. "Dadeira de ideias", sim, e das boas... Restava descobrir em que rumo ficava
a tal
querência. O Visconde aproveitou o ensejo para mostrar a sua ciência filológica.
– Querência! - exclamou. - Gosto muito desta palavra. É como lá onde moro
os campeiros denominam os lugares onde os animais nascem e passam os primeiros anos. Ficam querendo
bem a esses lugares, e se um campeiro os leva para longe e solta-os, eles vêm correndo para ali. É uma
palavra que vem do verbo querer...
Mas Hércules não queria gramática, queria
descobrir o ponto de reunião dos centauros, e para isso ergueu-se e pôs-se a sondar os
horizontes. Seu nariz farejava. Depois disse, apontando em certa direção:
– Deve ser deste lado...
– Como sabe? - perguntou Emília.
– Saber propriamente não sei, mas sinto, tenho um palpite que é neste rumo - e apontou.
– E são bons os seus palpites, Senhor Hércules? Lá em casa a palpiteira-mor é tia
Nastácia. Outro dia teve um palpite na Vaca e jogou dois cruzeiros. Quase acertou. Deu o Touro -
pertinho...
Hércules não entendeu, porque na Grécia só havia os Jogos Olímpicos, não havia o Jogo do Bicho.
– Pois então vamos para lá - propôs Pedrinho já ansioso por ver-se montado num potro
de centauro.
Foram. A um quilômetro de distância Hércules entreparou e aspirou o ar, como faz um cachorro
perdigueiro.
– Bom - disse ele. - Estamos perto. Vou deixar vocês ocultos aqui nesta moita
para que
não me atrapalhem no laçamento do potrinho.
Mas... e laço? Como arranjar
um laço? Não havia laço por ali nem sequer cipó - e Hércules ficou sem saber como agir. Estava
acostumado a atacar centauros com suas flechas e mesmo com a clava, mas agora tinha de apanhar
um vivo - e como, sem laço? Hércules olhou para Emília com ar de quem diz: "Vamos, dê uma ideia."
Mas dessa vez quem deu a ideia foi Pedrinho
– Nada mais fácil - disse ele. - Lá nos pampas os gaúchos pegam os animais
de dois
jeitos: com laço ou com bolas...
– Que é isso de bolas? - quis saber o herói.
– Ah, é uma esperteza das boas. Eles arranjam três bolas bem rijas, aí do tamanho de
laranjas, e as prendem a uma correia de certo comprimento; depois juntam as três correias pela outra
ponta, num nó.
– Mas como é que com isso podem pegar cavalo?
– Muito simples. Eles correm atrás dos cavalos bravos e quando chegam a certa distância
giram no ar as três correias com bolas e arremessam aquilo de encontro às pernas dos animais. As bolas
vão regirando pelo ar e ao darem de encontro às pernas traseiras dos cavalos, enrolam-se - eles perdem
o equilíbrio e caem.
Hércules admirou-se muito da esperteza. Bem razoável, sim. Mas como arranjar três bolas?
Pedrinho resolveu o problema.
– Três pedras mais ou menos redondas servem - e aqui há muitas. Vou escolhê-las.
Num instante descobriu três pedras arredondadas, assim do tamanho de laranjas. Voltou correndo.
– Estas servem, e correia temos a da canastrinha da Emília.
Hércules
encarregou-o de fazer as "bolas" - e em quinze minutos Pedrinho deu conta do recado.
Ficou um jogo de bolas bem tosco, mas servia. Depois fez uma demonstração do manejo daquilo.
Regirou as bolas no ar e projetou-as de encontro a duas varas fincadas a certa distância. As
bolas bateram nas varas e enrolaram-se nelas.
– Está vendo? - disse o menino radiante. - Se em vez de varas fossem as pernas
do centaurinho na corrida, ele perdia o equilíbrio e vinha ao chão. Entendeu?
Apesar de
burrão, Hércules entendeu perfeitamente; e chegou a dizer que se saísse bem com as
bolas no caso do centaurinho, ia adotar o sistema. Além do arco e da clava, levaria também
consigo um bom jogo de bolas sempre que saísse para aventuras.
– Faça uma prova, Senhor Hércules - propôs Emília. - Aprenda a calcular bem a
força.
Hércules fez. Tomou as bolas, regirou-as no ar como vira o menino fazer e
arremessou-as de encontro às duas varas.
Mas foi um desastre. As duas varas foram arrancadas do chão e sumiram-se ao longe, arrastadas
pela violência do impacto.
– Sua força é grande demais, Senhor Hércules - disse Emília. - Tem que lançá-las
só com uma forcinha...
O herói repetiu a experiência e por fim acertou o "ponto de bala" da força.
– Ótimo! - disse ele. - Agora me vou. Fiquem aqui bem quietinhos, que não me
demorarei.
E Hércules partiu no rumo da querência dos centauros, com as bolas ao ombro.
O Visconde filosofou que o laço de laçar animais, as bolas de embolá-los, as armadilhas de
apanhá-los vivos, tudo são produtos da inteligência em sua luta contra a força bronca. A força
não tem esperteza, é burríssima, e por isso acaba sempre vencida pela esperteza da inteligência.
Emília assanhou-se toda. Esperteza e inteligência eram com ela.
– Sei disso, Visconde. Depois que domei o Quindim e agora tomei conta deste
Hércules, estou mais convencida que a verdadeira força é a cá do miolinho...
Conversaram mil coisas. O sabugo informou que a segunda aventura de Hércules ia
ser o pega com a hidra de Lerna, façanha a que eles já haviam assistido.
– Valerá a pena repetir?
– Para mim, não - disse Emília. - É coisa vista e já contada. Podemos
acompanhar o Senhor Hércules até Lerna, e lá, enquanto ele mata a Hidra, nós nos divertiremos
com qualquer coisa que houver.
E assim ficou assentado.
Uma hora passaram ali dentro da moita, projetando isto e mais aquilo. Pedrinho aproveitou
a pausa para uma soneca. Súbito, um rumor estranho. Correram para fora. Olharam. Lá longe
vinha vindo Hércules atracado a um centaurinho. Ah, bem que ele pinoteava e corcoveava, mas
que animal naqueles mundos jamais escapou das unhas do herói? Pedrinho suspirou.
– Se é bravo assim aquele potro, não sei o que será de mim... Só se eu
aplicar a peia...
Ele chamava assim uma correia atada às duas patas traseiras dos cavalos de modo a
impedi-los de disparar. A peia embaraça o livre jogo das pernas. Hércules chegou, rindo-se.
– Deu tudo certo - disse ele. - Encontrei um bando de oito centauros, com
este potrinho no meio. Fui me aproximando agachado, de modo que não me percebessem. Quando
me vi a boa distância para lançar as bolas, ergui-me de repente e volteei-as rápido no ar.
Os monstros assustaram-se e fugiram num galope louco. O potrinho, como o mais fraco, galopava
na rabeira. Eu, zás! Lancei as bolas com o mínimo de força possível. As bolas assobiaram no ar
e pegaram-no pelas pernas. O pobre animalzinho levou o maior tombo de sua vida. Rebolou pelo
chão como se estivesse virando cambalhotas. Os outros sumiram-se ao longe, enquanto eu alcançava
este antes que tivesse tempo de desembaraçar as patas. E agarrei-o. Cá está a sua montaria, Pedrinho.
– Temos que lhe aplicar a peia disse Emília.
Hércules ignorava o que fosse. Pedrinho explicou e aplicou o sistema. Apesar dos valentes
coices do potro, conseguiu pear-lhe as patas traseiras, de modo a deixá-lo sem movimentos livres.
– Pronto, Senhor Hércules! - gritou o menino depois de acabado o serviço.
Pode soltá-lo.
– E se fugir?
– Não foge, não. No primeiro tranco que der para fugir, cai por terra, do mesmo
modo que quando foi embolado.
Hércules afrouxou o braço. O centaurinho desembaraçou a cabeça e, supondo-se livre, deu um arranco para escapar no galope. Ah, quem disse? Saiu tudo exatinho como o menino previra. A peia agiu que nem de encomenda, e o potrinho rolou no chão, vencido. Ergueu-se, fez nova tentativa para escapar no galope e foi novo tombo. Terceira tentativa, terceiro tombo. E como já estivesse exausto de tanta luta, sossegou. Depois de descansar uns instantes, respirando ofegantemente, o potrinho ainda fez duas ou três tentativas de fuga mas os novos tombos que caiu fizeram-no compreender que era tudo inútil. Estava vencido...
– Pode montar - gritou Hércules. Ainda com medo,
o menino aproximou-se do centauro. Fez uma tentativa para saltar-lhe sobre o lombo mas o potro refugou,
fugiu com o corpo e Pedrinho caiu.
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Até o Visconde, sempre tão calmo e científico, se entusiasmou. Batia palmas, dançava.
Os centauros são homens e cavalos ao mesmo tempo, e como têm a parte dianteira homem, com
cabeça, peito e braços de homem, pensam e sentem como os homens. E falam.
O centaurinho, convencido de que fora domado, aquietou-se e falou. Perguntou porque lhe
faziam aquilo. Emília explicou tudo tão bem explicado e fez-lhe tais e tais promessas, que
ele não só sossegou como até chegou a sorrir.
– Pois é isso - concluiu ela radiante. - Podemos te levar lá para o sítio:
Já temos o rinoceronte e o Burro Falante e a Vaca Mocha. E vai ver o que é vida boa, meu
amor! A gente brinca de tudo, até de viagem ao céu.
Daí a pouco estavam mais camaradas
do que se tivessem nascido juntos.
Hércules não voltava a si do espanto. Que prodígios eram aquelas três criaturas do tal
século 20! Tinham ideias melhores que todas as ideias da Grécia. Resolviam problemas dos
mais complicados. Chegavam até a realizar prodígios ainda maiores que as suas façanhas.
Domesticar um potrinho de centauro!... Quem na Grécia Heróica jamais pensara nisso?
E seus olhos não se despregavam do maravilhoso quadro: Pedrinho, Emília e o Visconde
brincando com o centaurinho - brincando, como as crianças brincam de corre-corre, esconde-esconde,
chicote-queimado...
2. Em Micenas
A viagem dali para Micenas foi um regalo. Estava resolvido o problema do transporte não só de
Pedrinho como dos outros dois e da canastra. Todos e tudo no lombo daquele novo amigo conquistado
graças às excelentes ideias de Pedrinho e tão bem engambelado pelas lábias da Emília. Até o Visconde,
que nunca havia brincado por causa da sua gravidade de sábio, resolvera brincar também - e brincava
muito desajeitadamente, mas com grande prazer.
Emília cochichou para Pedrinho:
– Veja o milagre! O nosso Visconde era um verdadeiro caixão de defunto, de tão
sério - parecia até o Burro Falante, que jamais brincou em toda a sua vida. Agora está até bobo,
a fazer coisas de palhaço...
Depois de muito caminhar, avistaram ao longe uma cidade.
– Micenas! - exclamou Hércules. Lá mora o Rei Euristeu. Vamos todos juntos ao
palácio ou vou eu só?
– Todos juntos! - berrou Emília lá de cima do centauro. - Quero ver a cara
desse malvado.
– Por que malvado? - perguntou Hércules.
O bom Hércules nada sabia da terrível trama contra ele cozinhada entre os deuses do Olimpo. Fora por instigação de Hera que o Oráculo de Delfos o mandou dirigir-se para Micenas, quando, depois da sua loucura assassina, o herói pensou em castigar-se com o desterro. A razão era a seguinte. Euristeu viera ao mundo antes de Hércules, e Hera havia pedido a Zeus que concedesse ao futuro rei uma graça, qual a de "dominar a todos os seus vizinhos." Como Hércules fosse nascer logo depois nas proximidades de Micenas, tinha de ficar submetido a Euristeu, e isso por um decreto do Deus Supremo - decreto que nem esse próprio Deus Supremo podia revogar. A tramóia de Hera deu certo. Embora fosse o tremendíssimo herói que sabemos, tinha o pobre Hércules de ficar sempre submetido a Euristeu. E o rei títere vivia lhe ordenando que executasse tais e tais trabalhos, escolhidos entre os mais perigosos, para que de um momento para outro ele acabasse vencido e destruído. O primeiro trabalho de que Euristeu encarregou Hércules foi o que já vimos: ir à Nemeia e dar cabo do leão da lua. Se por acaso Hércules voltasse com vida, Euristeu o encarregaria de outro ainda mais perigoso - e assim até dar cabo dele. Tudo por instigação da ciumenta Hera... Os pica-pauzinhos sabiam disso, porque eram do século 20, mas Hércules tudo ignorava e, portanto, nada suspeitava daquela conspiração.
A entrada dos expedicionários em
Micenas foi o maior acontecimento jamais ocorrido naquela
cidade: Hércules na frente e um centaurinho muito risonho atrás, com três criaturas no lombo -
uma compreensível: um menino, embora vestido exoticamente; e duas incompreensíveis: uma miniatura
de menina, aí de três palmos de altura; e uma "aranha de cartola." Como naquele tempo não
houvesse milho, já que o milho é originário da América e só seria conhecido na Europa depois
de Cristóvão Colombo, ninguém podia adivinhar que o corpo de tal aranha não passava de um
sabugo de espiga de milho.
A notícia correu e o ajuntamento nas ruas foi se tornando cada vez maior. Nas proximidades
do palácio, os expedicionários tiveram de abrir caminho na multidão.
O Rei Euristeu ficou desapontadíssimo com a volta do herói, pois estava mais que certo
de sua morte. Se o Leão da Nemeia era invulnerável, como poderia alguém escapar-lhe das unhas?
– Sim, Majestade - disse Hércules. Matei-o, sim. Matei o Leão da Nemeia...
Euristeu sofismou.
– E que provas me dá disso? Trouxe a pele do leão?
– Eu ia trazer - respondeu Hércules - mas "eles" acharam melhor que eu a
deixasse num curtidor.
– Eles quem? - berrou o rei, mal dominando a sua cólera, filha do despeito.
– O meu oficial de gabinete, a Emília "dadeira de ideias" e o meu escudeiro Sabugosa...
O rei nada entendeu e ainda mais colérico ficou. E quase estourou quando Hércules fez a
apresentação dos três pica-pauzinhos.
– Aqui estão eles - Pedrinho, Emília e o Visconde...
Os cortesãos aproximaram-se do rei e deram-lhe chá de erva-cidreira. Euristeu
sossegou um
pouco mais.
– Mas a pele? Quero saber da pele. Faço questão de ver a pele.
– Verá, Majestade - respondeu Hércules com a maior paciência - mas só depois de
curtida. Já determinei ao meu escudeiro que fosse buscá-la no curtidor, lá perto da Nemeia,
quando estiver pronta. Coisa de pouco tempo.
Emília resolveu meter o bedelho.
– Majestade - disse espevitadamente como era seu costume - não é só a pele que
mostra que um leão foi morto as garras também...
O rei ficou na mesma. Emília continuou:
- Eu trouxe em minha canastra de viagem três unhas desse leão. E voltando-se para o Visconde: "Vá
buscar minha canastrinha."
O Visconde foi e voltou com a canastrinha às costas, bufando. Emília abriu-a, tirou as três
unhas do leão e apresentou-as ao rei.
– Unhas de leão, isto? - exclamou o estúpido soberano. -Esporas de galo velho,
isso sim. Não me enganam, não. Quero a pele.
Hércules conformou-se e prometeu
apresentar-lhe a pele dentro de alguns dias. Apesar de toda
a sua má vontade, Euristeu foi obrigado a concordar.
Deixando o palácio, tratou Hércules de acomodar-se em Micenas. Como o curtimento duma pele
leva dias, ele era forçado a ficar por ali matando o tempo. Emília teve uma ideia.
– Enquanto estamos parados, podemos fazer uma coisa: um circo de cavalinhos!
Hércules levantará pesos incríveis e entortará barras de ferro. O centaurinho poderá fazer
muita coisa, pular arcos, dar coices, além de que só sua presença já é um acontecimento.
Esta cidade nunca viu nem sombra de centauro.
Mas Pedrinho achou bobagem pensarem tal coisa. Um herói como Hércules prestar-se a exibir-se
como hércules de feira!
– O bom é irmos esperar num campo aberto. Isto de cidades não serve para
Hércules. Ele não cabe nelas, fica desajeitado, sem movimentos... Tem que hospedar-se numa
hospedaria como todo mundo. Na hora do jantar como é? Vêm umas comidinhas para a mesa, que
não lhe chegam nem para a cova dum dente. Não me saem da lembrança os carneiros assados que
ele comeu no olival. Três, Emília, três!...
– Pois vou sugerir-lhe a sua ideia, Pedrinho: irmos acampar longe da cidade,
num ponto onde haja rebanhos. E também vou lhe dizer uma coisa: que quem come com tamanha
fúria, tem que pagar. Isso de correr mundo sem dinheiro no bolso não está certo. No olival
você teve muita sorte: pagou os carneiros com o canivete - mas agora? Você não pode andar
dando tudo o que tem para pagar o que o heroísmo come.
Hércules tinha saído
para acomodar o centaurinho numa estrebaria. Pouco depois voltou. Emília
fez-lhe "gesto de subir" - ou de ser subida ao seu ombro.
Era assim que conversava com o tremendo herói, bem pertinho de seus ouvidos.
– Hércules - disse ao ver-se lá em cima. - Não podemos ficar nesta cidade.
Não há espaço para você, não há carneiros para assar, o centaurinho vai ficar triste. Melhor
irmos para um campo. Ar livre. Horizontes. Olivais. Carneirada. Rios para banho...
– Era no que eu estava pensando - respondeu Hércules. - Não me ajeito em
cidades. Nunca me ajeitei. Não posso pôr os pés na rua sem que comece a juntar-se gente.
Tenho medo de que de súbito me venha algum acesso de cólera e eu os arrase...
Outro ponto sobre que discutiram foi a conveniência de mandarem o Visconde
para o olival.
– Ele que fique lá aguardando o aprontamento da pele.
– E vai montado no centaurinho?
– Oh, não! - exclamou Emília. Por coisa nenhuma no mundo Pedrinho entregaria
o potro ao Visconde. Ele é sábio, Hércules, e os sábios são péssimos cavaleiros. Caía logo
e adeus, potro! Meioameio está muito nosso camarada, mas...
– Meioameio? - interrompeu Hércules sem entender.
– Sim, foi como batizei o potrinho. Está nosso camarada, mas de repente vem
a saudade da vida livre e bota-se.
– Mas se não vai no centauro, o escudeirinho tem de ir a pé - e a pé leva
um ano para chegar lá.
– A pé, sim - concordou Emília - a pé ele levará um ano para chegar ao
olival. Mas a pó?
Hércules não entendeu.
– A pó?
– Sim. Se em vez de ir a pé, ele for a pó de pirlimpimpim? O Visconde traz
consigo na cintura um canudo desse pó.
Conforme o tamanho da pitada, o pó leva a gente para mais perto ou mais longe - e num
instante. É zás, trás - pronto! A maior maravilha moderna é o nosso pó de pirlimpimpim.
Quer ver? - e Emília chamou pelo Visconde.
– Escute aqui, sabinho. Resolvemos que você vá esperar o curtimento da
pele lá no olival e que parta imediatamente.
– No centauro? - perguntou o Visconde.
Emília deu uma gargalhada.
– Isso é o que você quer, maroto, para ir brincando pelo caminho - mas
pensa que o Encerrabodes deixa?
– Mas se eu não for no centaurinho, não poderei trazer a pele...
– Ora não pode! Nunca vi coisa mais simples. Basta vestir a pele num
carneiro grande e esfregar uma pitada de pó de pirlimpimpim no nariz dele - o carneiro
vem chispando, com a pele de que está vestido e ainda com você montado. E aqui chegando,
Hércules come o carneiro.
O rostinho do Visconde iluminou-se. A solução
pareceu-lhe maravilhosa. Emília ainda fez várias recomendações e saiu com o Visconde a fim
de ver nas lojas um presentinho para o pastor. De volta disse a Hércules, referindo-se ao pó:
– Repare como isto chispa.
O Visconde tirou da cintura o canudinho de pó, tomou uma pitada e um,dois... TRÊS!
Desapareceu como por encanto.
3. O Visconde desgarra-se
Ninguém notou o seguinte: quando o Visconde cantou o TRÊS e ia aspirando a pitadinha de pó,
Emília, sem querer, esbarrou nele, fazendo que uns grãos de pó caíssem por terra. Coisa das
mais insignificantes, que nem Emília nem Visconde perceberam - mas, bastou para que o Visconde,
em vez de ir acordar no olival, fosse acordar em ponto muito diferente: em Serifo, um lugar
que ele nem sabia onde era, e acordou bem em cima do telhado dum palácio.
Foi isso uma grande sorte, pois se caísse numa rua seria fatalmente caçado e levado para algum
jardim zoológico. Todos ali na Grécia o achavam com muito jeito de aranha. Mas havendo, sem que
ninguém o visse, aterrissado naquele teto, estava salvo - e se aspirasse uma pitadinha mais bem
calculada iria parar no olival.
Aconteceu, porém, uma coisa extraordinária. O Visconde era um sábio, e os sábios gostam de
saber. Quis logo saber que telhado era aquele e quem morava no palácio. Algum rei?
O Visconde já de algum tempo andava transformado. Mudara muito. Perdera a casmurrice antiga,
ria-se, dizia graças - e chegou até a dançar de contentamento - coisa que deixou Emília muito
apreensiva. Pois essa mudança no Visconde estava se revelando também ali no telhado. Em vez
de tirar da cintura o canudo de pó e tomar a pitadinha que o levasse ao olival, só pensava
numa coisa: levantar uma telha, esgueirar-se para o forro da casa e lá de cima espiar o que
pudesse. Quanto à ida ao olival em busca da pele do leão, nisso nem pensou.
Visconde teve de fazer muita força para recuar uma das telhas. Suou para o conseguir. E
passando pela fresta entrou no forro do palácio. Tudo bastante escuro ali, naquele intervalo
entre as telha do telhado e o forro propriamente dito. Mesmo assim encontrou várias rachinhas,
pelas quais podia espiar o que se passasse lá dentro.
Era o palácio do Rei Polidectes, o qual se achava celebrando um banquete por motivo de seu
noivado com Hipodâmia. Nessa festa reuniam-se os principais chefes guerreiros do país e
vários heróis entre estes o grande Perseu. Estavam à mesa do banquete, muito alegres e
rumorosos, já bastante bêbados. Em dado momento Perseu perguntou ao rei que presente
desejava receber de todos eles.
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– "Cavalos!" - respondeu Polidectes.
– "Posso até presenteá-lo com a cabeça da Medusa!" - exclamou Perseu, já perturbado pelos vinhos. - Dar um cavalo é pouco para mim. Todos riram-se de tamanha basófia, porque a tal Medusa era o horror dos horrores. Mas ficaram sérios e com dó de Perseu quando o rei disse: "Pois bem. Traga-me a cabeça da Medusa, em vez dum cavalo." |
O banquete correu na maior
animação até tarde da noite e por fim começaram a dispersar-se. O
Visconde pensou lá consigo: "Perseu vai ver se traz a cabeça da Medusa e eu posso assistir a
essa façanha" - e tratou de sair para a rua. Como não houvesse iluminação de lampiões naqueles
tempos, o Visconde podia andar desembaraçadamente pela cidade, sem medo de que o descobrissem e
pusessem num museu.
Os últimos convidados iam saindo, e entre eles o herói. O Visconde tinha de acompanhá-lo
de longe, mas como, assim no escuro? Em resposta às suas dificuldades, a nuvem que tapava
a lua se esgarçou e caiu sobre a terra um lindo luar.
O Visconde pôs-se a seguir o herói. Perseu caminhava de cabeça baixa, como quem está imerso
em profunda cisma. Foi andando até sair da cidade, e encaminhou-se para uma praia ali perto.
O reino de Serifo era numa ilha.
Lá na praia sentou-se nuns arrecifes, com a cabeça entre as mãos. Num momento de entusiasmo
alcoólico fora fazer aquela bravata e agora arcava com as conseqüências: tinha de levar ao
Rei Polidectes a cabeça da Medusa... Mas como, se Medusa petrificava com o olhar quem dela
se aproximava? Tudo isto o Visconde, escondido ali atrás dele lhe ia lendo na expressão do
rosto e nas palavras que de vez em quando lhe escapavam da boca.
E estava nisso quando, de repente, surge Hermes ou Mercúrio. Hermes era o mensageiro dos
deuses, o leva-e-traz.
– Que é que o põe triste assim, Perseu? - perguntou Hermes.
O herói contou a sua desgraça.
– Num banquete a nós oferecido perguntamos a Polidectes que presentes queria
receber. "Cavalos" - foi sua resposta – eu, já toldado pelo vinho, prometi,
sabe o quê? A cabeça da Medusa...
Hermes animou-o.
– Para tudo há jeito, Perseu. Vou ajudá-lo, e farei que lá no Olimpo a deusa
Palas também o ajude. Palas é sua amiga.
E sentando-se ao lado do herói, começou a formular um plano.
– Escute. Há as Greas, também filhas de Forcis, como as Górgonas. São três:
Penfredo, Ênio e Dero, e as três só possuem um dente e um olho, dos quais se servem cada
uma por sua vez. Você tem de ir procurá-las; e no momento em que uma for passando o olho
para outra, tem de agarrá-lo, bem agarrado. Elas vão ficar na maior ânsia para que lhes
seja restituída aquela preciosidade - e então você impõe condições.
– Que condições devo impor, Hermes?
– Basta uma. Que indiquem o caminho que leva à mansão das ninfas possuidoras
dos objetos necessários para a vitória sobre a Medusa.
– Quais são esses objetos?
– A coifa de Hades que torna invisível quem a põe na cabeça; umas sandálias
de asas e um surrão.
– Para que esse surrão?
– É um surrão próprio para conduzir a cabeça da Medusa depois de cortada. Faça
tudo como digo, que irá cobrir-se de fama com um dos feitos mais prodigiosos destes tempos.
O Visconde tudo via e ouvia. Prestou muita atenção na vestimenta do mensageiro
dos deuses,
que já conhecia daquela vez em que com Pedrinho e Emília penetrou no Olimpo. Hermes usava asas
no calçado, para andar bem depressa. Mensageiro vagaroso não vale nada.
Bom. Hermes não tinha mais nada a fazer ali. Despediu-se e lá se foi, veloz como um patinador.
Perseu estava radiante. Nunca um socorro divino chegara tão no momento. E, levantando-se da
pedra, pôs-se a caminho rumo à morada das três Greas. O Visconde seguia-o rente - e teve de
fazer prodígios para acompanhá-lo. Enquanto Perseu dava uma passada o sabugo tinha de dar oito.
Por felicidade o herói não mostrava pressa nenhuma - ia caminhando vagarosamente. Afinal
chegaram. As Greas estavam na sala examinando um ponto de tricô. Enquanto uma o via com o
olho único da casa, as outras esperavam a vez, completamente cegas. Depois o tricô mudava
de mãos e o olho também e assim as três se arrumavam para enxergar.
Perseu entrou e apresentou-se - e enquanto uma o via com o olho único, as outras demonstravam
a maior sofreguidão para receber o olho e vê-lo também. "Dá cá o olho! Dá cá o olho!" diziam
as duas cegas, espichando as mãos para pegar a preciosidade.
Outra mão também espichou - e quando a que estivera usando o olho tirou-o da órbita e
estendeu-o para as irmãs, quem o apanhou foi Perseu.
O "fecha" foi tremendo. Gritaria histérica. Desmaios. Todas falavam a um tempo e ninguém
se entendia. Por fim o herói conseguiu tomar a palavra.
– Escutem, tontas! Vou restituir o olho. Para que quero este olho se tenho
dois? Está claro que vou restituí-lo - mas só se me ensinarem o caminho da mansão das ninfas...
– As que guardam os objetos necessários para a vitória sobre a Medusa?
perguntaram as três ao mesmo tempo.
– Sim - respondeu Perseu.
Elas relutaram. Acharam que era traição.
Perseu procurou convencê-las. Disse que a Medusa
era um monstro que já havia feito a desgraça de muita gente. Se ele conseguisse cortar-lhe
a cabeça, era um grande bem para o mundo.
As três Greas conferenciaram entre si, aos cochichos e por fim concordaram.
– Pois não há dúvida. Vamos revelar o caminho para a mansão de tais ninfas
e você nos restituirá o nosso olho.
– Fechado! - exclamou Perseu.
E assim foi. Elas ensinaram-lhe o
caminho e ele lhes restituiu o olho preciosíssimo.
O Visconde, atrás da porta, tudo via e ouvia.
4. A cabeça de Medusa
Nas aventuras heróicas é o mesmo que na vida comum moderna. O meio de conseguir qualquer
coisa é descobrir o jeito.
Medusa abusava do seu poder porque até então só heróis pouco espertos tinham ido combatê-la.
Atacavam-na como se atacassem uma fera qualquer - e iam ficando reduzidos a estátuas de
pedra. Com Perseu não ia ser assim, porque aprendera o jeito certo e único.
O caminho para a mansão de tais ninfas era dos mais complicados.Tornava por ali, virava
acolá, torcia à esquerda, agora à direita. Só mesmo seguindo um roteiro escrito como o
que as Greas haviam dado a Perseu.
Afinal o herói chegou e pediu as três coisas. As ninfas não opuseram a menor resistência.
Parece que tinham ordem de entregar aquilo ao primeiro que alcançasse chegar até lá.
O Visconde, sempre rente, espiando tudo, com muitas cautelas para não ser visto. Medo do
jardim zoológico...
A lua estava quase no fim de seu curso. Mais uns momentos e o sol a substituiria no céu -
coisa que para o Visconde era o diabo. Vinha daí o seu interesse em que o herói concluísse
a aventura da Górgona antes do amanhecer. E lá ia ele trotando atrás do herói já na posse
dos três preciosos objetos. Não ficava muito longe a casa ou o antro de Medusa. Anda que
anda, trota que trota, chegaram. Perseu espiou. Medusa estava dormindo despreocupadamente.
Que horrenda era!
Apesar de valoroso, o Visconde sentiu-se de pernas bambas. Teve de agarrar-se à parede. Perseu foi entrando com as maiores cautelas, apesar de ter na cabeça a coifa que o invisibilizava. Quando chegou à distância própria, tirou a faca da cintura e com um golpe de mestre decepou a cabeça do monstro. Em seguida meteu-a no surrão. Pronto! Estava realizada uma das maiores façanhas da antiguidade. O Visconde teve ensejo de ver bem como era a tal famosa cabeça da Medusa. Os olhos não viu, porque ela os tinha fechados: morrera dormindo. Mas viu-lhe os cabelos de bronze entremeados de cobras. Era um verdadeiro ninho de cobras, das quais só apareciam a cabeça e metade do corpo. As caudas ficavam inseridas no couro cabeludo, como raiz de cabelo. Horrendo, horrendo... |
E assim pensando, tirou da cintura o canudinho de pó de pirlimpimpim e mediu na palma da
mão a dose necessária para ir dali ao olival. Feito o que, aspirou-o - e pronto! Foi aterrissar
diante da casinha. O pastor guardava as ovelhas lá no pasto, e tocava a mesma flauta daquele dia.
O Visconde encaminhou-se para ele.
Quando ia chegando, o cachorro o percebeu e pôs-se, com os pelos do dorso arrepiados, a
recuar, e a rosnar na linguagem do "medo ao desconhecido", própria dos cães.
O pastorzinho olhou.
– Oh, a aranha de cartola por aqui outra vez? Que veio fazer?
– Ver se a pele do leão já está pronta. Hércules tem de apresentá-la ao rei
como prova de que, de fato, matou o leão. Do contrário o rei não acredita.
– Pronta? - exclamou o pastorzinho. - Você pensa que isto de curtir uma pele
grossa como a dos leões é coisa que se faça assim do pé para a mão? Leva tempo, meu caro.
Leva ainda mais uma semana, pelo menos.
– Uma semana? - repetiu o Visconde coçando a cabeça.
– Isso no mínimo. Pode até levar mais. Depende. Nunca curti couro de nenhum
animal da lua. É possível que sejam diferentes dos nossos aqui.
– E que fico eu fazendo toda uma semana neste olival? -perguntou o Visconde.
– Isso é com você. Poderá ajudar-me na tosa dos carneiros, que vai começar
amanhã. Poderá colher azeitonas...
O Visconde não gostou de nenhum dos dois alvitres. Ia pensar sobre o assunto.
De repente o pastorzinho olhou bem para ele e deu uma risada.
– Escute, aranha. Diz você que veio buscar a pele do leão?
– É verdade. Para isso vim.
O pastor quase morreu de tanto rir.
– Ah, ah, ah... Uma pulga de animalejo desse tamanho lá pode com aquele
couro de leão, o maior que ainda vi? Ora vá se lavar...
O Visconde explicou-lhe a ideia da Emília: costurar a pele sobre um carneiro
bem grande e dar-lhe a cheirar uma pitada do pó.
– Que pó é esse? - perguntou o pastorzinho.
O Visconde explicou pachorrentamente os maravilhosos efeitos do maravilhoso pó, mas não
conseguiu convencê-lo.
– Vá saindo com essas histórias! disse o rapaz. - Pó... Pó... Cara de pó
tem você, sua barata tonta! e, depois, se fosse verdade, então acha que me ia levando daqui
um carneiro assim sem mais nem menos? Pensa que isto aqui é a casa da sogra, onde entra
todo o mundo e todos fazem o que querem? Outro oficio.
O Visconde explicou que
tinha de ser assim, porque ou ele levava a pele do leão com um
carneiro dentro ou Hércules danava e vinha buscá-la - e o pastorzínho bem sabia que, nesse
caso, em vez de perder um carneiro ele iria perder três...
O argumento valeu. Os melhores argumentos são os que ameaçam o bolso das criaturas.
Foram ver se a pele estava no ponto. De caminho o Visconde perguntou:
– Que tanino emprega?
– Tanino? - repetiu o jovem grego, que pela primeira vez ouvia essa palavra.
– Sim, o tanino de curtume...
O pastorzinho engasgou. Ele não usava tanino nenhum para curtir couro, porque naqueles
tempos esse processo ainda não fora inventado. O Visconde explicou.
– Quando você morde certas frutas verdes, não sente uma coisa que "pega"
na boca? Pois é o tanino da fruta. À medida que ela vai amadurecendo, vai o tanino se
transformando em outras coisas; mas enquanto a fruta está verde o tanino é muito forte.
Na banana verde, por exemplo. O tanino está ali em quantidade! Pois é esse tanino a substância
que lá no mundo moderno os homens usam para curtir os couros crus, ou "verdes", como dizem
os técnicos. Os couros são mergulhados durante um ou dois meses numa solução fortíssima de
tanino, e ficam curtidos, isto é, não mais apodrecem, como o couro cru, e ainda se tornam
impermeáveis à água e macios. Mas aqui? De que modo vocês curtem couros?
Enquanto
falavam iam andando de rumo ao "curtume." O Visconde admirou-se. Era a primeira
vez que via curtir couro pelo sistema do fumeiro. Havia uma cova no chão com muita lenha
acesa, uma cova tampada de modo a canalizar a fumaça para uma abertura ou chaminé. E sobre a
chaminé estava estendida a pele do leão, esticada por varas e mantida suspensa por quatro esteios.
– Então é assim? No fumeiro?...
– Exatamente.
O pastorzinho examinou o estado da pele.
– Ainda não está no ponto - disse. "Ele" quer serviço bem feito.
– Quanto tempo vai demorar?
O pastorzinho apalpou o couro, cheirou-o, experimentou-o entre os dentes e com a ponta da
língua. Depois respondeu com a maior segurança:
– Seis dias. Em seis dias deixo isto uma beleza.
O Visconde arrenegou.
Ficar ali seis dias caçando moscas, a matar o tempo?...
Se o pastorzinho fosse de mais cultura, esse tempo de espera não queria dizer nada. Mas que
adiantava a um sábio como o Visconde conversar com um ignorante? E o Visconde pensou em
Sócrates. "Ah, se ele estivesse aqui! Até um ano eu esperaria, na prosa com esse grande filósofo,
sem perceber a passagem do tempo."
5. Meioameio
Enquanto lá no olival o Visconde procurava meios de matar o tempo, na cidade de Micenas, Hércules
acolhera muito bem o conselho de Emília e estava se preparando para a mudança.
– Sim, o campo aberto... O ar livre... Os horizontes... As carneiradas...
Esse ambiente para uma criatura excepcional como o herói, no qual tudo era imenso - as cóleras,
as lutas, o apetite, as venetas... Hércules só se sentia bem quando solto na plena e larga
natureza.
Partiram. Pedrinho na frente trotava no gracioso potro semi-humano, com Emília e a canastra
no colo.
Hércules vinha atrás, a sorrir, com os olhos no lindo quadro. Ele já estava querendo bem
àquelas criaturas do século 20. E como as admirava! A inteligência daquele menino, a
habilidade e a esperteza de Emília, a ciência do seu escudeiro saído em busca da pele
do leão... Notável, tudo notável... E Meioameio era também um encanto.
Hércules sempre vivera em luta com os centauros, já tendo abatido muitos. Mas pela primeira
vez via bem de perto e a cômodo um desses entes, e conhecia-o na intimidade - e nada
encontrou em Meioameio que justificasse o seu antigo ódio aos centauros. Sim, se eram uns
brutos, isso vinha apenas da falta de educação. Que diferença entre eles e os homens
também sem educação? E Hércules, com toda a sua burrice, "teve uma ideia", talvez a
primeira ideia de sua vida: que é a educação que faz as criaturas.
Saídos da cidade,
Hércules tomou certo rumo e foi ter a uma bela campina a duas léguas
dali. Topografia ondulante, belos trechos de floresta nas baixadas pasto rasteiro nas
mansas encostas. Um rio de águas cristalinas passava por ali.
– Que lindo ponto para uma fazenda! - exclamou Pedrinho. - Se fossem
minhas estas terras, eu erguia a casa naquele tope - e indicou certa elevação a pouca
distância do rio.
Hércules chegou até à margem e bebeu pelas mãos em cuia. Bebeu como um elefante. Pedrinho
teve a impressão da existência dentro dele de verdadeira "caixa d'água" - e para enchê-la
só mesmo nos ribeirões.
Beber e comer. Hércules tinha bebido, precisava agora comer. O seu apetite estava já de bom
tamanho. Pôs-se a sondar os longes daquela pradaria. Não tardou a sorrir: tinha visto um
rebanho de carneiros.
– Lá está o meu almoço - disse ele e voltando-se para o centaurinho: - Vá lá
e me traga três carneiros de bom ponto.
O centaurinho partiu no galope.
Emília estranhou aquela sem-cerimônia.
– Como vá lá e traga? - disse ela. Aqueles animais têm dono. Quem quer
carneiros, compra-os. Não entendo esta moda aqui na Grécia.
Hércules deu uma risada hercúlea.
– Ah, ah, ah... Comigo é assim. Quando quero, pego. Isso de comprar as
coisas com dinheiro é para os que não podem pegá-las.
– E não acontece nada?
– Claro que não - respondeu o herói. - Lá no olival, por exemplo: que
aconteceu depois que comi os três carneiros? Nada.
Pedrinho entrou na conversa.
– Sim, mas isso foi porque eu paguei os carneiros.
Hércules fez cara de surpreendido.
– Com que moeda?
– Dei em troca dos carneiros o meu canivete Rodger, afiado que nem navalha.
Hércules comoveu-se ao saber daquilo. O pobre menino sacrificara uma prenda querida para
sanar a brutalidade que ele, Hércules, havia cometido, qual a de tomar os carneiros sem
consentimento do dono. E sentiu que aquele menino já era um produto da educação que a ele,
Hércules, faltava. A ideia da educação que momentos antes havia concebido estava a
aperfeiçoar-se em seu cérebro. E Hércules disse:
– Estou achando bonito esse sistema de respeitar o que é dos outros. Bonito,
sim. Só hoje botei o pensamento no caso - e aprovo. E se ainda fosse criança como você, era
o caminho que eu ia seguir. Na idade que tenho já não posso mudar. Muito difícil...
– Quer dizer que vai continuar pegando o que quer sem dar satisfação ao dono?
– Sim.
– Por quê?
– Porque é tarde. A varinha nova, o jardineiro verga e lhe dá esta ou aquela
forma - mas que jardineiro dá forma ao tronco duma oliveira velha?
Meioameio
havia alcançado o rebanho e abatido a coices três carneiros. Os outros fugiram
por aqueles campos, tomados do maior pânico. Nada mais imprevisto que a aparição de um centaurinho.
Minutos depois Meioameio chegava com os três carneiros às costas. Jogou-os aos pés do herói.
Hércules sorriu o bom sorriso da fome que vê chegar o prato. Mas na hora de abrir os
carneiros surgiu uma dificuldade. Não havia faca e Pedrinho estava sem o seu precioso
canivete. Que fazer?
Emília salvou a situação.
– Tenho na canastrinha uma lâmina Gillette - e foi buscá-la.
Quando a apresentou a Hércules, o herói arregalou os olhos.
– Que é isto?
– Uma lâmina boa para abrir carneiros - respondeu Emília.
Hércules
tentou pegar na lâmina, mas deixou-a cair. Fina demais, delicada demais para
aquelas mãos tremendas. E veio-lhe uma risada hercúlea.
– Ah, ah, ah. Então quer você abrir os carneiros com esta coisinha
tão mimosa? Que bobagem!
Mas Pedrinho ia mostrar que não era bobagem. Apesar
da sua velha repugnância pelo
sangue, foi ele quem abriu os carneiros. Só fez isso. O resto, a tirada da pele e
das entranhas, foi serviço do centaurinho.
– Por que não trouxe quatro? - perguntou-lhe Hércules.
– A ordem foi para três - respondeu o obediente Meioameio, que também
estava com fome e esperançoso de que pelo menos um quarto de carne Hércules lhe daria.
E foi o que aconteceu. Depois de assada toda aquela carnaria, o herói mediu Meioameio
de alto a baixo e disse:
– Para você um quarto basta - e deu-lhe um quarto de carneiro. - E você,
Pedrinho? E você, Emília... Sirvam-se.
Pedrinho e Emília juntos comiam tão pouco em comparação com os seus companheiros, que
Hércules arregalou os olhos ao ver o menino tirar a sua parte.
– Só isso?
– Isto me enche o papo por um dia inteiro - e ainda sobra para encher o
papinho da Emília...
Foi um regalo aquele almoço ao ar livre, à margem do ribeirão de águas
cristalinas. Hércules
confessou jamais ter comido uma carne tão deliciosa.
– Que fizeram vocês neste carneiro que ficou tão bom? - perguntou.
– É que trouxemos da cidade uma boa dose de sal - respondeu Emília. - Nós
dos tempos modernos não comemos carne sem sal.
Hércules nunca prestava atenção a essas pequeninas coisas, e muitos bois e carneiros assados
comera sem sal nenhum. Agora estava verificando como a carne melhora com o salgamento.
Vendo aquilo, Emília suspirou:
– Ai que saudades...
– De quem, Emília?
– De tia Nastácia. Estou imaginando o maravilhoso assado que ela faria com
estes carneiros, se estivesse aqui conosco. Ah, aquilo é que é cozinheira.
Hércules interessou-se pelo assunto.
– Quem é essa dama?
– Não é dama nenhuma - respondeu Emília. - É simplesmente tia Nastácia, a
maior quituteira do mundo - e tais coisas contou das proezas culinárias da negra, que um
fio d'água começou a pingar da boca do herói e do centaurinho.
– Um dia há de conhecê-la, Senhor Hércules. Não perco a esperança de vê-lo
aparecer lá pelo Picapau Amarelo. Lembre-se de que já me prometeu.
6. A pele do leão
Lá pelo fim do sexto dia estavam sentados à beira do ribeirão, na prosa de todas as tardes,
quando subitamente um animal estranhíssimo "apareceu" a certa distância. Não veio de outro
lugar, não foi chegando como um animal comum. Apareceu! E pelo aspecto não lembrava nenhum
animal conhecido. Tinha um vago jeito de leão, por causa da juba, mas um leão desengonçado,
com as patas bambas, ou melhor, com oito patas: quatro exteriores, enormes, bambas,
verdadeiras patas de leão, e outras quatro mais delicadas e firmes como as dos carneiros.
– Que estranho monstro será aquele? - exclamou Hércules, passando a mão no arco.
Foi Emília quem adivinhou.
– Já sei! - berrou ela antes que o herói lançasse a flecha. É a pele do
leão da lua!...
Hércules não entendeu.
– Como? Que história é essa?
– Sim - respondeu Emília. - O Visconde estava atrapalhado com o problema
de trazer a pele e eu então dei essa ideia: "Você costura a pele em cima dum carneiro
dos maiores e esfrega-lhe no nariz uma dose do pirlimpimpim. - Ele vem voando e com ele
a pele." Juro que é isso - e correu na direção do estranho animal.
Exatamente. Era
um carneiro revestido duma pele curtida; e agarrado ao pelo da juba, uma
esquisita aranha: o Visconde de Sabugosa! Tinham vindo juntos os três: o carneiro, a pele
e o sabugo. Mas o Visconde ainda estava desacordado. Voltou a si nos braços da Emília.
– Coitadinho... Deve estar sofrendo do coração. Já custa a sair do desmaio
do pirlimpimpim...
Pedrinho descoseu a pele do leão e soltou o carneiro, que permaneceu
bobo e apalermado a
ponto de nem sair do lugar. Hércules aproximou-se. Tomou a pele. Examinou-a.
– Ótimo! Desta vez Euristeu vai dar-se por convencido... - e jogou a pele
sobre o ombro.
Desde aquele momento nunca mais iria o herói abandonar a pele do Leão da Nemeia. Passou
a usá-la como escudo - e de muitos golpes esse escudo o livrou, porque era invulnerável. Pedrinho
verificou esse ponto. Não conseguiu abrir nela nem sequer um furo com a ponta das setas de Hércules.
Como então o seu canivete a cortara naquele dia? Podia ser por muita coisa.Talvez a invulnerabilidade
"cochilasse" naquele momento e fosse apanhada desprevenida. O caso é que a pele "vulnerável"
do dia da morte do leão estava de novo "invulnerabilíssima".
– Bom. Tenho de voltar a Micenas para apresentar isto ao rei.
– Eu, se fosse você - disse Emília não apresentava nada. Ia chegando e esfregando
a pele na cara dele. Aquele rei antipático o que precisa é disso: uma boa esfregação de
pele nas fuças...
Hércules lá se foi com a pele ao ombro.
O Visconde viu-se imediatamente rodeado e especulado. Todos queriam saber das suas aventuras
no olival.
– Aventura no olival não tive nenhuma, mas de caminho para lá aconteceu-me a
coisa mais inesperada e prodigiosa...
– Que foi? - indagaram todos na maior ansiedade.
O Visconde gozou aquilo e não teve pressa em contar. Queria irritar-lhes ainda mais a curiosidade.
– Ah, uma coisa que nem queiram saber. Uma coisa tremenda!...
Emília, indignada, agarrou-o pelo pescoço.
– Conte já tudo, depressa, se não eu o depeno...
O Visconde contou.
– De caminho para lá caí em cima do telhado dum palácio...
– Como? Então errou no cálculo da pitada?
– No cálculo não errei, mas agora me lembro que no momento de aspirar o pó
você deu uma cotoveladinha sem querer. Bastou isso. Uns grãos de pó caíram e eu não aspirei
a pitada certa. Resultado: em vez de aterrissar no olival, aterrissei no telhado do palácio
de um rei...
– Como há reis nesta Grécia! - observou Emília. - Até parece livro de contos
da carochinha...
– Aterrissei no telhado e resolvi espiar... - e o Visconde contou tudo quanto
vira no palácio do Rei Polidectes, e foi contando, até referir-se à cabeça da Medusa.
Ao ouvir essa palavra, Pedrinho arrepiou-se, pois sabia da história.
– A cabeça da Medusa? - exclamou ele. - Pois teve Perseu a coragem de
espontaneamente oferecer ao rei a cabeça dessa Górgona, em vez de um simples cavalo como
os outros?
– Ele estava bêbedo - resolveu Emília.
– Pois ofereceu - continuou o Visconde - e contou tudo: a saída de Perseu
para fora da cidade, suas meditações lá na praia, sentado no rochedo; o aparecimento de Hermes...
Ao falar em Hermes, Emília perguntou:
– Ainda usa aquelas asinhas nos pés?
– Sim - respondeu o Visconde - e também inventou uma moda de asinhas no
capacete. Mas apareceu Hermes, sentou-se ao lado dele e...
E o Visconde contou tudo quanto já sabemos. Ao chegar ao ponto da entrada de Perseu na
casa da Medusa, descreveu com cores tão vivas a cabeça do horrendo monstro que Emília desmaiou...
– Olhe o que você fez, Visconde! - ralhou Pedrinho, amparando-a. - Emília já não é
aquela mesma de outrora, do tempo de boneca, quando não tinha nem uma isca de
coração. Virou gentinha e das que têm coração de banana...
Mas não demorou muito o
desmaio da criaturinha. Com uns borrifos d'água voltou a si.
O Visconde contou o resto, mas sem carregar muito nas cores, de medo de outro desmaio.
– E foi assim - concluiu ele - que tive a sorte de ver o que ninguém no
mundo viu. Ver, ver, ver... Ver a Medusa viva, dormindo! Ver o herói cortar-lhe a cabeça
dum só golpe, antes que ela tivesse tempo de abrir os olhos petrificadores. E vê-lo botar
aquela cabeça de cabelos de cobra dentro do surrão mágico...
Tudo isso eu vi, e ninguém no mundo viu nem verá. A minha maior glória vai ser essa...
A curiosidade em torno de tão prodigiosa aventura não se satisfez com a
narrativa do Visconde.
Emília reclamava detalhes.
– Como era a inserção dos cabelos cobras?
– Tinham a cauda enfiada no couro cabeludo.
– E moviam-se, esses cabelos cobras?
– Logo que entramos, Medusa estava dormindo e as cobras também. Mas depois
que Perseu a decapitou, as cobras acordaram, assanhadíssimas, e não pararam mais de se
mover dum lado para outro.
– Com as bocas e as línguas de fora?
– Sim. Umas boquinhas muito vermelhas e aquelas linguinhas nervosas.
– E os olhos da Medusa?
– Não pude vê-los, porque a encontrei dormindo. Mas são muito redondos.
– E petrificavam as pessoas...
– Sim, isso posso atestar. Ali pelas redondezas do antro da Medusa vi muitas
estátuas de pedra estranhíssimas, cada qual numa atitude de ataque. Uma tinha o braço erguido,
no gesto de quem vai arremessar uma lança. Outra era a dum bonito herói com o arco distendido
e a flecha apontada. Outra era de outro herói com a clava no ar. Eu não entendi aquilo. Julguei
que aquela paragem fosse algum grande parque em abandono, ainda cheio de estátuas de pedra.
Depois compreendi tudo: eram os heróis que haviam procurado destruir a Medusa e que com um
simples olhar dos seus terríveis olhos redondos ela transformara em pedra.
– Que horror! E quantas estátuas dessas viu lá? - quis saber Pedrinho.
O Visconde franziu a testa, como quem calcula mentalmente. Depois disse:
– Umas cem...
– Cem?...
– Talvez haja mais. Umas cem visíveis. Deve haver muitas outras ocultas pelo mato.
Pedrinho ficou cismativo. Estava ali uma coisa que ele queria ver: o parque de heróis
petrificados pelo tremendo olhar da Medusa...
Depois mudaram de assunto. Pedrinho perguntou:
– E como se arranjou com o pastorzinho para que cedesse sem pagamento esse
carneirão?
– Provei-lhe a maravilha que é o pó de pirlimpimpim e dei-lhe uma dose. Mas
tenho medo de que o bobinho haja desrespeitado as minhas instruções e a estas horas esteja
a umas mil léguas de lá, em um século muito distante deste.
Estavam nesse ponto de prosa, quando Hércules apontou. Vinha de volta.
Todos ficaram muito atentos, à espera das novidades.
– E então? - exclamou Pedrinho.
Hércules tinha o ar preocupado.
– Aconteceu exatamente o que eu receava - disse ele. - O rei mostrou-se
visivelmente contrariado quando verificou que a pele era mesmo de leão e duma espécie
de leão que não há na terra.
Logo, só podia ser o leão caído da lua. E então me disse:
-"Muito bem, grande herói. Vejo que é deveras valente e forte, e que há de gostar de
sair ao encontro de inimigos ainda mais fortes que o Leão de Nemeia. Ordeno, portanto,
que se apreste e vá destruir a hidra de Lerna. Esse monstro anda a arrasar aldeias, e a
fazer estragos horríveis. Informe-se de tudo e traga-me aqui as cabeças da hidra...
– E isso o preocupa, Hércules? - perguntou Emília.
– Sim, porque essa hidra tem nove cabeças, uma das quais imortal. Como um
ente mortal como eu pode vencer um imortal?
Os pica-pauzinhos já haviam
assistido a essa façanha de Hércules e pois não compartilhavam
dos receios do herói. Mas nada disseram. Seria a maior das complicações explicar-lhe a
história da primeira estada deles ali naquela mesma Grécia Heróica. E Emília disse:
– Ótimo. Pois vamos atrás dessa porcaria de hidra. Juro que Hércules vai
matá-la bem matada e limpar aqueles pântanos de Lerna de tão horrendo monstro. Mas como
essa aventura não nos interessa, apenas o acompanharemos até lá; e enquanto ele mata a cobra,
nós brincaremos de pega-pega com Meioameio.
E assim foi. Partiram dali para Lerna só fazendo pouso para dormir e comer.
Quando avistaram os pântanos, Pedrinho disse:
– Amigo Hércules, como a aventura da hidra não nos seduz, vamos acampar aqui,
e aqui ficaremos à sua espera. Vá, mate a hidra e em seguida venha ter conosco. Nós o
esperaremos com três carneiros assados.
Hércules afastou-se, muito triste de ter de deixar a companhia de seus novos e preciosos
amigos. De vez em quando voltava os olhos para trás. Da última vez que o fez pareceu-lhe que
estavam inventando um brinquedo novo.
E era verdade. Emília havia dito:
– Chega de cartola! Isto não passa dum pedaço queimado. Temos de variar. O
brinquedo de hoje vai ser a "ciranda-cirandinha" - e ensinou a Meioameio como era.
O centaurinho vivia no maior enlevo. Lá no rebanho ele era o único da sua idade, de modo
que vivia sorumbático por falta de companheiros de brinquedo. Mas ali, oh delicias! Emília,
uma louca no brinquedo, chegava até a ficar fora de si. Pedrinho não o era menos - e o Visconde,
no seu começo de loucura heróica, dera de brincar com tal espetaculosidade que chegou a dar na
vista.
– Pedrinho - cochichou Emília - não acha que o Visconde está se excedendo?
– Sim, acho que está muito mudado e que continua a mudar...
– Pois isso está me preocupando bastante - confessou Emília. - Ele também é
um heroizinho e todos os heróis passam por um período de loucura. Não viu D. Quixote?
– É verdade, sim, Emília. D. Quixote, Rolando, e até o nosso amigo Hércules,
quase todos os heróis enlouquecem. Sobre a loucura de Rolando até há aquele célebre poema
de Ariosto que vovó tem lá numa edição de luxo, com desenhos de Gustavo Doré, "Orlando Furioso."
Orlando é o nome de Rolando em italiano.
Dali a pouco estavam na ciranda-cirandinha, e quem cirandava com maior fúria era justamente o
Visconde de Sabugosa, o ex-grave e cartoludo sabinho lá do sitio. Até nem mais de cartola andava.
Com um pontapé havia jogado a velha cartolinha nos pântanos de Lerna, berrando:
– Chega de cartola! Isto não passa dum pedaço de canudo de chaminé com abas.
Por que cartola? Para que cartola? - e pôs-se a dançar uma rumba...
De "A hidra de Lerna" para "Biblioteca"
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