Valdir Aguilera
 Físico e pesquisador

 

 

Os doze trabalhos de Hércules
03 - A corça de pés de bronze

Monteiro Lobato


A Hidra de Lerna tinha fama de possuir muitas cabeças — mas quantas? As opiniões variavam de sete a cem. E o numero certo só ficou perfeitamente estabelecido depois da façanha de Hércules. Só então a Grécia soube que a hidra tinha nove cabeças, oito mortais e uma imortal.
Mas Hércules tivera receio de enfrentar a hidra sozinho, e fora em busca do seu amigo Iolau. Enquanto isso, naquele prado que marginava o pântano os picapauzinhos brincavam.

Meioameio estava numa verdadeira lua-de-mel com os seus novos amigos. Como os achava delicados! Como eram gentis e bons de sentimentos! Nada de coices, como lá entre os brutíssimos centauros, nada de violências e arbitrariedades. E Meioameio sonhava com os encantos do tal sítio de Dona Benta sobre que tanto falavam. Ah, se ele se pilhasse lá...
Mas como os brinquedos daquele dia até passassem da conta, em certo momento todos afrouxaram.
— Chega! — disse Pedrinho deixando-se cair na grama (e os outros fizeram o mesmo.) — Estou que não agüento mais...
— Eu também — ajuntou Emília.
— E eu dei tantas cambalhotas — disse o Visconde — que estou com uma dorzinha no pescoço.
Estiraram-se no chão e dali a pouco todos dormiam — exceto o Visconde. Os ameaçados de loucura começam assim: perdendo o sono.
O centaurinho também dormiu, mas despertou antes dos outros e saiu por ali a fora no galope.
Ao cair da tarde, quando depois de haver matado a hidra, Hércules reapareceu acompanhado de Iolau, só o Visconde lhe iria dar os parabéns. Pedrinho e Emília continuavam num sono de pedra. Hércules fez a apresentação:
— O Visconde de Sabugosa, meu escudeiro.
Iolau espantou-se.
— Seu escudeiro, Hércules? Uma aranha dessas...
— Pois, meu caro, é a aranha mais sabida que pode haver. Fala com a competência dos grandes mestres de Atenas. Quer ver?
E voltando-se para o Visconde:
— Vamos, amigo escudeiro, diga uma sabedoria aqui para o Iolau...
O Visconde não vacilou, e declarou em muito bom grego:
— PANTA REI, OUDEN MENEI.
— Que é isso? — perguntou Hércules, que em matéria de pensamentos filosóficos era o que no século 20 nós chamamos "uma besta."
— Estas palavras querem dizer "tudo passa, nada permanece." São palavras do grande filósofo Heráclito de Éfeso, que vai vir ao mundo no ano 576 antes de Cristo.
Iolau refranziu a testa: sinal de que não estava entendendo. Hércules explicou:
— Há aqui um embrulho de séculos para diante e para trás que eu não entendo por mais que eles me expliquem.Também vivem às voltas com um tal Cristo e um tal Sítio lá dum tal "século 20." Ouço a conversinha deles como quem ouve a música das terras exóticas. Bem pouco pesco.
— E aquela anãzinha ali? — perguntou Iolau mostrando Emília, ainda ferrada no sono.
— Ah, essa é a minha "dadeira de ideias..."
— Quê?
— Sim, é quem me dá ideias...
— E pode lá ter ideias um pingo de gente assim?
— Fique sabendo, Iolau, que dessa cabecinha brotam mais ideias do que vespas duma vespeira — e algumas excelentes! A ideia de matar o leão da lua por estrangulamento veio dela. Foi quando os conheci. Estavam trepados a uma árvore, e eu, já sem flechas em meu carcás e com uma clava reduzida a estilhaços, não sabia o que fazer, quando uma vozinha alambicada soou: "Senhor Hércules, agarre-o pelo pescoço e afogue-o" — e foi o que fiz... Chama-se Emília, e parece que é Marquesa de Rabicó, ou coisa assim. Quando estão brigados, só a tratam de Marquesa.
— E este belo menino?
— Ah, este é o meu oficial de gabinete...
— Oficial de gabinete?
— Coisa lá deles. É um companheirinho, um auxiliar: Menino excelente, tão educado que às vezes até me envergonha. Parece incrível, mas tenho aprendido muita coisa moral com esse menino. E até coisas técnicas. Ensinou-me um meio excelente de derrubar centauros na corrida — e contou minuciosamente a história da captura do centaurinho por meio das bolas.
— Pegou então um centaurinho?
— O estranho não é tê-lo pegado, é que esse centaurinho está hoje tão nosso amigo, e progride tanto em educação, que ando com remorsos de haver outrora matado tantos centauros. Eles são gente como nós, Iolau, apenas mais rústicos, mais selvagens. Mas se os trouxermos para o nosso convívio, ficarão iguaizinhos a nós mesmos — e Hércules expôs a Iolau aquela sua "ideia sobre a educação", a única que jamais brotou na cabeça bronca do herói.
— E onde está o centaurinho domesticado? — perguntou Iolau.
— Por aí. Olhe!... Lá vem ele no galope...
Realmente, Meioameio vinha na volada como quem viu qualquer coisa prodigiosa.
— Que há?
O centaurinho estava tão ofegante que mal podia falar.
— Eu... eu saí no galope por esse mundo a fora e... fui dar num bosque muito estranho. Parecia um parque abandonado, tal o número de estátuas de pedra que se erguiam em certo ponto: estátuas de heróis no ataque, uns esticando o arco, outros arremessando a lança. Compreendi tudo. Eu estava na terra das Górgonas, lá onde "ele" viu Perseu cortar a cabeça de Medusa — e ao dizer "ele" apontou para o Visconde. E então me veio a curiosidade de espiar o cadáver sem cabeça da monstra.
Iolau arregalara desmesuradamente os olhos.
— Cadáver sem cabeça? Pois cortaram a cabeça da Medusa?
— Sim — interveio o Visconde. — Assisti a tudo. Vi tudo com meus olhos. Perseu cortou aquela cabeça toda cobras e guardou-a num surrão mágico...
— Para quê?
— Para levá-la de presente ao Rei Polidectes...
O assombro de Iolau era tamanho que ele não conseguia fechar a boca. A Górgona decapitada, afinal!... Aquilo era o pior monstro da Grécia, por causa do olho petrificador.
— Continue, Meioameio — disse Hércules.
O centaurinho continuou:
— Pois é. Eu estava evidentemente nas proximidades do antro da Górgona, conforme indicavam aqueles heróis de pedra — os heróis que foram matá-la, e ela de longe, com um simples olhar, transformou em estátuas... E afinal dei com o antro. Fui entrando cautelosamente. Súbito, ah, Zeus, que horrendo quadro! Estendido no chão, o corpo sem cabeça da Medusa...
O Visconde interveio:
— Quando Perseu a decapitou ela estava na cama...
— Pois encontrei-a no chão — disse o centaurinho. — Nessas mortes assim há sempre estrebuchamento e o corpo ferido muda de lugar. Estava no chão. Eu olhava, olhava... Olhava sobretudo para o corte vermelho do pescoço. Subitamente, imaginem o que aconteceu! Aquele corte começou a mexer-se... começou a alargar-se como se qualquer coisa fosse saindo de dentro. E essa coisa afinal saiu. Era um cavalo branco... Um cavalo de asas enormes, a mais linda visão que alguém possa imaginar...
   — Pégaso! — exclamou Pedrinho, que acordara e viera juntar-se ao grupo. Bem disse vovó que o lindo Pégaso era um "produto" da Górgona...
Meioameio continuou:
— Pois vi o prodigioso cavalo de asas sair de dentro do cadáver da Medusa!... Vi com estes meus olhos e custa-me a acreditar...
— E que fez ele, depois de sair de dentro do cadáver da Medusa? — quis saber Emília, que também se aproximara.
— Fez como fazem as borboletas quando deixam o casulo: ficou uns instantes a secar as asas úmidas e a experimentar os músculos, até que por fim tentou o voo.
— E voou?
— No começo tentou só. Quem nunca voou atrapalha-se no começo. Tem que ir aos poucos. Mas tive medo de que me acontecesse qualquer coisa e disparei para cá.
Pedrinho falou da visita de Belerofonte lá ao sítio de Dona Benta.
— Que Belerofonte? — perguntou Hércules.
O menino explicou que Belerofonte era o nome do herói corintio que em breve iria conquistar e domar Pégaso, fazendo dele o seu animal de sela. Pois esse herói, montado em Pégaso, havia aparecido lá pelo sítio e ficado na casinha de Dona Benta durante vários dias. Pégaso fora posto no pasto do Burro Falante, onde também estava o Rocinante de D. Quixote. Isso no século 20 depois de Cristo.
Hércules piscou para o Iolau como quem diz: "Essa é a linguagem deles. Falam sempre nessas coisas misteriosas — "sitio, vovó", "D. Quixote", "antes e depois de Cristo..."
Súbito, um berro da Emília:
— Lá está ele!... Pégaso!... Já criou força e está se elevando no céu...
Todos olharam na direção indicada e de fato viram uma coisa, deslumbrante: Pégaso no vôo!... Suas grandes asas brancas lembravam o movimento das asas dos gaivotões do mar. Que serenidade, que majestade de voo!... Muita coisa bonita há no mundo, muita coisa bela. Mas quem não viu Pégaso voando não viu a coisa mais bela de todas. O sol batia naquela brancura de asas e tornava-as deslumbrantes...
Pégaso seguiu no seu vôo, sempre a subir, a subir em espiral, até que desapareceu atrás das nuvens. Os pica-pauzinhos, portanto, assistiram à estréia de Pégaso no céu tão azul da Grécia...

Em Micenas de novo

Levaram toda uma hora a comentar a maravilha das maravilhas. Depois Hércules falou:
— Basta. Temos agora de voltar a Micenas.
Ele trazia numa sacola as cabeças da hidra — oito, segundo disse.
— Oito, Hércules? — reclamou Emília. — E a nona?
— Ah, essa não pude trazer. Era a imortal. Tive de enterrá-la bem fundo, e colocar uma enorme pedra em cima. Continua viva, mas no seio da terra.
Emília não gostou daquilo.
— Aquele rei antipático é capaz de encrencar — disse ela. — É capaz de exigir a apresentação da nona cabeça...
— Isso não — tornou Iolau — porque Euristeu não sabe que a hidra tinha exatamente nove cabeças. A lenda corrente ora diz um número, ora diz outro: vai de sete a cem.
Nada aconteceu dali até Micenas. Volta e meia Hércules e Iolau erguiam os olhos para as nuvens, na esperança de verem Pégaso por mais uma vez — mas inutilmente.
Iolau admirava-se da transformação que se ia operando no gênio de seu amigo. Nada mais da bruteza antiga. Estava sociável, alegre, brincalhão, sempre muito atento às ideiazinhas da Emília, aquele espirro de gente. E que familiaridade tinha ela com o tremendo herói! Era "você para lá, você para cá", como se se dirigisse a Pedrinho ou ao Visconde. E o herói gostava daquilo...
Ao avistarem Micenas, Hércules disse a Pedrinho que fosse esperá-lo com os outros lá no "camping", enquanto ele entrava na cidade com Iolau para dar contas a Euristeu da segunda façanha realizada. E separaram-se. Pedrinho e o bando partiram para o "camping"; Hércules e o amigo entraram em Micenas.
A notícia do Segundo Trabalho de Hércules já havia explodido como bomba, começando a circular de boca em boca. Quando o herói foi a palácio, já o rei sabia de tudo.
Euristeu estivera carrancudo, a excogitar um novo trabalho para aquele maldito herói que de fato tinha jeito de ser invencível. E consultou um seu ministro de Estado, célebre pelas manhas e patranhas.
— Eumolpo — disse o rei — Hércules não tarda a vir procurar-me para dar conta de sua peleja com a Hidra de Lerna, mas já sei de tudo. Ele venceu-a como também venceu o Leão da Nemeia. Que terceiro trabalho posso impor-lhe?
Eumolpo segurou o queixo, a refletir. Depois sorriu.
— Achei!... — disse muito contente. Hércules venceu o leão e a hidra, monstros brutescos que só valiam pela força. Mas se o lançarmos contra a famosa Corça de Pés de Bronze?
— A Corça Cirinita?
— Sim, a linda corça de chifres de ouro e pés de bronze lá do templo de Ártemis, no Monte Cirineu. Essa corça é consagrada à deusa, de modo que Ártemis a protege. Tem grande fama, porque nada no mundo corre com maior velocidade — e não se cansa. Pode correr um ano inteiro sem parar — e tem os pés de bronze justamente para isso — para correr o tempo que quiser sem necessidade de descanso para o casco. Hércules é pesadão. Escora hidra e leões. Mas duvido que pegue uma corça tão veloz e, ainda mais, protegida pela irmã de Apolo...
Euristeu aprovara imediatamente a insidiosa ideia, de modo que estava todo amável e risonho quando Hércules apareceu.
Fingindo não saber de nada, disse logo de começo:
— Então, Héracles? Venceu a hidra também ou...
— Venci-a, sim, Majestade, e aqui trago a prova — respondeu o herói abrindo o saco e mostrando as horríveis oito cabeças do monstro. Falta uma, a nona, justamente a imortal. Essa tive de esmagá-la, queimá-la e enterrá-la bem fundo, com uma enorme pedra em cima.
— Meus parabéns, Héracles! Muito prazer me dá vê-lo de novo forte e perfeito com mais um Trabalho realizado. Tuas proezas justificam a fama que tens. Aqui em Micenas o povo só fala em Héracles, só quer saber de Héracles. E ainda ficará mais apaixonado pelo grande herói, se Héracles me trouxer aqui, vivinha, a Corça Cirinita.

Hércules empalideceu. Sabia da fama dessa corça invencível na corrida. Mas lembrando-se da sua "dadeira de ideias" e dos mais companheiros de aventuras, consolou-se lá por dentro com um "Quem sabe?" e disse ao rei:
— Perfeitamente, Majestade. Espero ter a honra de trazer, aqui, bem vivinha, a famosa veada dos pés de bronze.
Logo que Hércules saiu, Euristeu esfregou as mãos e disse ao velhaco Eumolpo: Desta vez não me escapa...
Quando o herói ia chegando ao "camping", todos lhe voaram ao encontro, encarapitados no centauro.
— Sua Majestade meteu-me agora num sério embaraço. Quer que eu traga a célebre Corça Cirinita.
— Que é isso?
— Uma corça lá dum templo de Ártemis no Monte Cirineu, mas não uma corça comum. Além de protegidíssima da deusa, tem os chifres de ouro e os pés de bronze. Quer dizer que não gasta os cascos por mais que corra — e tem fama de correr tão rápida como o corisco. Este Trabalho vai me dar mais trabalho que os outros. Que vale minha força contra a velocidade?
Todos puseram-se a refletir porque o caso realmente oferecia dificuldades e aspectos novos.
Pedrinho foi o primeiro a falar.
— Escute, Hércules. Lá no sítio de vovó eu vivo lidando com os caçadores vizinhos e deles aprendi mil coisas. Caçar essa corça deve ter relação com o que lá chamamos "caçar veado", mas com uma diferença: veado cansa na corrida e esta veadinha de pés de bronze não pode cansar. Assim sendo, minha ideia é não incluir a caçada de corça na categoria da "caça de veado", e sim na de paca...
Hércules não sabia o que era paca. Pedrinho explicou o melhor que pôde.
— E paca, Hércules, a gente caça dum modo muito diferente: esperando que ela volte para a toca...
— Mas a corça não tem toca!
— Não há ser vivo que não tenha a sua toca. Até eu, o Visconde e Emília temos a nossa — disse o menino apontando para a cabana de ramagens. — Chamo toca ao lugar certo em que o animal, quando se cansa de correr mundo, vem para descansar. Podemos primeiramente fazer uma tentativa de pegar a corça na corrida — e para isso dispomos de Meioameio. Se falhar, então recorreremos ao método da "espera na boca da toca".
Hércules achou razoável a proposta e, para caçoar com a Emília, disse:
— Este meu oficial de gabinete está me saindo melhor que a encomenda. Suas ideias até parecem superiores às da minha "dadeira de ideias..."
Emília fez focinho de pouco caso.
— Ah, ah, ah ... Você não me conhece. Lelé (e desde aquele momento passou a tratá-lo assim.) Dou ideias nas ocasiões gravíssimas, quando o perigo é grande. Nessas coisinhas sem importância da vida diária, deixo que o cérebro de Pedrinho funcione — e assim não canso o meu. Você ainda há de ver, Lelé, como são as minhas grandes ideias...
Pedrinho cochichou ao ouvido de Hércules que quando se via em grandes apuros, sem saber o que fazer, Emília lançava mão do "faz-de-conta", o que é muito fácil. Depois teve de explicar ao herói toda a técnica do faz-de-conta, que Hércules achou maravilhosa.
— E dá certo esse tal faz-de-conta?
— Está claro que dá, mas é um recurso de vencidos. A gente só deve recorrer ao faz-de-conta quando se sentir na última extremidade — na ultimíssima...
Hércules ficou a cismar naquilo.

O Monte Cirineu

No dia seguinte levantaram acampamento e lá se foram de rumo ao Monte Cirineu. Viagem linda. Em certo ponto deram com um bando de ninfas que saíam do bosque, tontas de terror, perseguidas por três sátiros.
— Lelé! — berrou Emília. — Não deixe monstros tão feios atropelarem as coitadinhas...
Hércules não disse nada. Sacou do carcás três setas e dobrando o arco, despediu uma atrás da outra — záz! zás! zás!... Os três sátiros rolaram por terra, mas embolados apenas, não mortos. As flechas não os haviam trespassado.
Hércules admirou. Quê? Pois então suas flechas já não atravessavam um sátiro?
Emília explicou, com o maior lampeirismo:
— Fui eu, Lelé, que tirei a ponta de várias flechas de seu carcás. Deixei metade com ponta, metade sem ponta.
— Para quê?
— Para isso que aconteceu. Não seria uma estúpida maldade dar cabo dos pobres sátiros? Assim, com a minha ideia das flechas sem ponta as ninfas se salvaram e eles ficaram apenas machucados.
— Acho que Emília tem razão — ajuntou Pedrinho. — Nada de mortes inúteis. Para quê?
Hércules não gostou muito daquela reinação mas resignou-se. Se fosse discutir, seria pior. Os argumentos Emílianos eram como flechas de ponta: dos que matam as objeções.
Foram ver os sátiros caídos lá adiante.
— São meioameios também! — exclamou Emília. — Corpo de homem e pernas e pés de bode — e chifres de bode na testa...
— E catingudos! — observou Pedrinho tapando o nariz. — O mesmo cheiro daquele bode lá da fazenda do Coronel Teodorico...
Os três sátiros jaziam por terra, estropiados pelos setaços de Hércules, mas sem ferida de sangue. Gemiam com a dor da machucadura.
— Olhem quem está espiando! — exclamou em certo momento o Visconde e todos viram lá na fímbria do bosque o bando de ninfas com os olhos fixos neles.
Hércules disse:
— Assim que sairmos daqui, correm todas para cá e vêm cuidar destes sátiros. As ninfas fogem dos sátiros só por coquetismo. Na realidade pelam-se por eles. Onde há sátiros há ninfas, e onde há ninfas há sempre sátiros...
E assim foi. Logo que todos se afastaram dali, as ninfas vieram na carreira ao encontro dos sátiros caídos. Depois os levaram a braços para dentro da floresta.
Continuaram a viagem. Como era agradável viajar na Grécia! Uma delícia de clima, uma delícia de paisagem. De vez em quando cruzavam-se com viandantes a pé, e havia paradas para uma prosinha.
Foi numa dessas paradas que vieram a conhecer os donos do olival, uma família composta de marido, mulher e três filhos. O vulto agigantado de Hércules assustara o homem, fazendo-o colocar-se à frente da esposa e dos filhos como para defendê-los. E ao dar com o centauro, ficou com mais medo ainda, branco que nem papel.
Pedrinho interveio:
— Somos de paz, amigo. Este é o grande Héracles que anda a realizar os seus famosos trabalhos. Já matou o Leão da Nemeia e a Hidra de Lerna... E cá o Meioameio é um grande amiguinho nosso...
— Matou o Leão da Nemeia? — repetiu o homem com assombro.
— Sim. Por que se admira?
— É que moro lá nas vizinhanças. Saímos em peregrinação a Delfos, para consulta ao Oráculo de Apolo e...
Emília interrompeu-o:
— Ah, então já sei. Moram no olival, onde há um pastorzinho com um rebanho, não é?
— Exatamente! — exclamou o homem com a fisionomia iluminada. — Como sabe disso, menininha?
— É que estivemos lá e até dormimos em sua casa.
O assombro do homem não tinha limites.
— E o Senhor Héracles também?
— Claro que sim.
— Mas... não há lá cama que lhe sirva.
— Dormiu em seis pelegos estendidos no chão.
— Bom. Só assim. E como vão os meus carneiros?
— Ótimos. Só que desapareceram quatro.
— Quatro? Como?
— O pastorzinho contará o que houve.
Hércules já estava dando sinais de fome e Pedrinho propôs que acampassem ali e Meioameio fosse incumbido de obter a bóia. Emília convidou os donos do olival a almoçarem com eles.
Meia hora depois estavam todos perfeitamente acamaradados diante de quatro carneiros sobre as brasas, e o assombro do homem não teve limites quando viu Hércules sozinho dar cabo de três. Sua esposa cochichou-lhe baixinho: "Está explicado o desaparecimento dos quatro carneiros nossos...”
Depois do almoço, Hércules gostava de tirar uma breve soneca, o que fez sem nenhuma cerimônia. Os donos do olival ficaram sentados junto dele vendo a juventude divertir-se. Meioameio estava empenhado em fazer cabriolas de todo jeito para assombro dos meninos do olival, os quais não cabiam em si de tanto gosto.
— Deixa-me montar um bocadinho? atreveu-se a dizer um deles, vendo Pedrinho encavalado no centauro.
— Venha para a garupa.
O menino foi, e boa galopada deram por aqueles campos! Quando voltaram, Hércules, já desperto, estava se espreguiçando "Ahhhh!..." um espreguiçamento hercúleo que assustou o casal.
— Bom, criançada! — gritou o herói erguendo-se. — Toca a andar. Daqui ao Monte Cirineu ainda é um bom pedaço.
Despediram-se. O homem agradeceu a Hércules a honra que lhe dera de escolher sua casa para dormir, e ofereceu-lhe os seus préstimos e os da filharada.
Separaram-se.
— Adeus! Adeus! Voltem lá. Vão passar uns dias conosco! ... — gritavam de longe os três meninos. E Pedrinho, de cima do centauro, respondia:
— E vocês apareçam pelo sítio de vovó. Está chegando o mês das tangerinas...
A última etapa do percurso foi vencida com certa lombeira. Isso de carregar tantos carneiros no bucho não torna a gente mais leve...
— Será aquele morro? — perguntou em certo ponto Emília.
Era, sim. Era aquele o Monte Cirineu e logo depois avistaram o templo de Ártemis.
— Quem é essa Ártemis? — perguntou Emília, e o sabuguinho contou:
— Ártemis é o nome duma das grandes deusas do Olimpo, filha de Zeus e irmã de Apolo. É a Diana dos romanos — a Diana Caçadora que a gente vê nos desenhos com arco na mão e carcás de flechas a tiracolo...
— E acompanhada dum cachorro ou duma veadinha —rematou Emília. Dona Benta me mostrou uma Diana assim.
— Exatamente — disse o Visconde. Mas a nossa Ártemis é uma deusa meio masculina. Não quer saber de trabalhos de mulher, tricô, bordados, cozinha. Seu gosto é a caça. Vive caçando e não tem medo de nenhum animal feroz. Voa atrás deles nas florestas e vara-os com os seus dardos.
— Que é dardo, Visconde?
— Uma pequena lança de arremessar.
— E como é então que o noivo da filha do Elias Turco escreveu aquela carta que Narizinho viu, com esta frase que me ficou na cabeça: "Teus olhos dardejam..."
— Bom — explicou o Visconde — dardejar quer dizer arremessar dardos. A palavra aí está em sentido figurado. Os turcos têm os olhos muito fortes, muito brilhantes, e os daquela turquinha parecem emitir raios de luz. O Candinho, noivo dela, achou raios parecidos com os dardos e usou a palavra "dardejar..."
Meioameio havia parado bem diante do templo — um lindo templo grego, todo colunas na frente e em cima aquele triângulo do frontão. Pedrinho apeou, desceu os outros e ficou de nariz para o ar, contemplando as esculturas em alto relevo.
O Visconde abriu o bico e disse:
— Esse alto-relevo do frontão representa a matança das Nióbidas, ou filhas da pobre Níobe.
Todos puseram-se atentos, inclusive o centaurínho. O Visconde continuou:
— Níobe, filha de Tântalo, casara-se com um grande herói tebano de nome Anfião, e tivera nove filhos, cada qual mais bonito. Mas cometeu a imprudência de orgulhar-se disso e andar se gabando de ser superior em fecundidade à mãe de Ártemis. Resultado: esta deusa que é muito vingativa, resolveu dar cabo da bela ninhada. Invadindo a casa de Níobe, matou a flechaços todas as suas filhas, enquanto o irmão de Ártemis, Apolo, fazia o mesmo a todos os filhos homens, que andavam por fora, caçando.
Essas esculturas representam a grande tragédia de Níobe...
Meioameio abria a boca sempre que o Visconde abria a sua torneirinha de ciência. Que fenômeno prodigioso! — pensava lá consigo o potro de centauro. Como dentro duma aranha daquele tamanho cabia tanta coisa! E duma vez em que perguntou a Emília a razão do fenômeno, ela respondeu:
— Porque ele é um sábio. Sábio quer dizer isso: cheio de ciência. O Visconde é um sabugo de milho que em vez de ter grãos de milho por fora, tem grãos de ciência por dentro. É só darmos corda e a caixa de música pega a tocar...
Hércules havia entrado no templo para oferecer um sacrifício à deusa. Emília teve a ideia de fazer o mesmo.
— Vamos, Pedrinho, oferecer um sacrifício a Ártemis? Aqui a moda não é rezar, é sacrificar.
— E que é sacrificar? — perguntou o menino.
Emília deu a palavra ao Visconde, o qual respondeu: "Sacrificar é oferecer um holocausto no altar de um deus. E holocausto quer dizer queimar totalmente uma vítima". Essa palavra vem de "holos", que quer dizer "todo", e "Kaio", que quer dizer "eu queimo." Para ser holocausto é preciso que haja destruição pelo fogo da vítima inteirinha..."

A corça

O Visconde fez uma preleção completa sobre os sacrifícios gregos, ou melhor, antigos, porque todos os povos da antiguidade usavam esse meio de aplacar a cólera dos deuses ou conquistar-lhes o favor. "Eles eram ingênuos" — disse o sabuguinho. "Julgavam que o fumo das carnes queimadas nos templos ia ter aos narizes dos deuses e os aplacava ou comovia." Contou que depois esse costume foi mudando. Em vez de queimar animais, queimavam plantas aromáticas ou derramavam vinho no fogo; depois passaram a depositar oferendas nos altares — costume que muito agradou aos sacerdotes, os quais, na qualidade de "espoletas" dos deuses, ficavam com as oferendas — e o Visconde foi por aí além.
Não havendo nem sequer um pombo para sacrificar à deusa (coisa aliás que Pedrinho não admitiria), a ideia da exboneca foi queimar no altar de Ártemis três fios de cabelos da cauda do centaurinho. Meioameio comoveu-se com a lembrança. Três fios de cabelos de sua cauda queimados no altar da deusa, que amor!
Hércules já ia saindo do templo — e eles, com a prosa, não puderam verificar que sacrifício o herói oferecera; e já iam entrando no templo com os três fios de cabelo sobre as duas mãos em salva da Emília, quando um "bé" soou. Um "bé" da veadinha...
— A corça! — gritou Hércules e todos se atiraram na direção do "bé", ainda a tempo de verem no ar o risco dos três pulos com que a corça venceu a distância que ia dali até o bosque próximo. Seus chifres de ouro brilharam ao sol, e quando suas patas de bronze batiam nalguma pedra do chão o som era de sino.
— Está no bosque! — exclamou Hércules. — Vamos cercá-lo de cinco lados, já que somos cinco — e colocou seus quatro companheiros em quatro pontos estratégicos, ficando ele a ocupar o quinto.
O bosque era pequeno, um simples capão de mato no meio da pradaria circundante.
— E agora — continuou — temos que ir fechando o círculo. Ela há de tentar fugir por uma das cinco direções — e quem sabe se conseguiremos agarrá-la no pulo?
E assim fizeram. Cercaram o bosque e foram apertando o círculo, mais, mais, mais, de modo que a corça, bem lá no meio do capão de mato, ou pulava fora do círculo constringente ou seria agarrada.
A corça percebeu o jogo e compreendeu o plano. Mas errou num ponto: contou só quatro perseguidores. Não incluiu entre eles o Visconde, nem sequer prestou a menor atenção nesse heroizinho. Quem, no mato, pode prestar atenção a um sabugo de milho ainda com palhinhas no pescoço e sem cartola? E como não houvesse prestado atenção no Visconde, a corça resolveu fugir justamente pelo setor do Visconde. "Eles esqueceram-se de botar alguém ali..." devia ter pensado consigo mesma. Mas não fugiu naqueles tremendos pulos que dava no limpo, visto como dentro da mata os embaraços são muitos — cipós, galhos, ramagens. Arremessou-se aos pulinhos, e num deles caiu justamente em cima do Visconde, o qual agarrou-se a uma das suas patas de bronze. A corça nem percebeu o que fora. Era como se
alguma simples maçaroca de palha houvesse enganchado em seu pé, e lá continuou nos pulinhos até ver-se em campo aberto. Aí parou e voltou a cabeça, porque sentiu que a maçaroca ainda estava presa à sua perna. Fez uns movimentos de coice e nada — a maçaroca não desgrudava. A corça, então, raivosa, firmou a pata e com os chifrinhos de ouro arrancou o Visconde e arremessou-o para trás mas sem perceber que se tratava dum ser vivo, inteligente e agente. E lá se foi pela pradaria a fora, aos pulos de vinte metros cada um. Os outros caçadores, percebendo que a corça já havia saído do bosque, trataram de reunir-se, na esperança de que um deles a houvesse agarrado.
— Olá, olá, aqui todos! — gritou Hércules e todos correram para onde ele se achava.
— Então, Pedrinho?
— Nada...
— Não saiu do seu lado, Meioameio?
— Não...
— Nem do seu, Emília?
— Não...
Que mistério aquele? A corça devia ter-se escapado por um dos cinco lados... Só então Pedrinho lembrou-se do Visconde.
— Falta o Visconde! — gritou. — Ainda nada sabemos do setor do Visconde.
Mas que fim levara o Visconde? Pesquisaram em todas as direções, e nada. Voltaram ao bosque e examinaram minuciosamente o setor que lhe tinham dado — e nada.
Pedrinho era muito hábil em descobrir coisas nas florestas, de tanto que as freqüentava lá no sítio de Dona Benta. Não tardou a perceber, pelo amassado da vegetação, que o setor de fuga da corça fora justamente aquele. E pôde acompanhar os rastros da corça até à saída para o campo. Os rastros amiudavam-se em certo ponto.
— Aqui ela parou uns instantes e pererecou. Houve qualquer coisa aqui...
Pedrinho estava certo. Fora ali que a corça arrancara com o chifre a "maçaroca" presa à sua pata de bronze.
Pedrinho continuava no exame.
— E daqui — disse ele — ela partiu no galope. Há estes rastos de pererecamento e mais nada. O próximo rasto deve estar neste rumo a vinte metros de distância — e de fato a vinte metros dali encontrou novo rasto da corça.
— Mas o Visconde, Pedrinho? — insistiu Emília. — Será que a corça o levou nos dentes? Ele é milho e as veadas são milhívoras...
— Quem procura acha — respondeu Pedrinho — e puseram-se todos a procurar o Visconde ali na macega, porque no bosque não havia o menor sinal dele.
Súbito, pá! o pezinho de Emília deu uma topada numa coisa nem dura como pedra nem mole como queijo. Ela abaixou-se para ver o que era, recuou os capinzinhos e deu um berro:
— Heureca! Achei o Visconde!... Está aqui, mas completamente morto e amarrotado.
Todos correram para lá, e de fato viram o Visconde morto e destroçado, sujo de terra, com várias palhinhas do pescoço arrancadas. Pedrinho agarrou-o e auscultou-o, para ver se o coração batia. Um riso de triunfo acendeu sua cara.
— Vivo!... Vivo, sim!... O coração está fraquinho, mas batendo. Foi um desmaio apenas. Mas que é que teria acontecido?
— Num dos pulos a corça caiu bem em cima dele e amassou-o, foi isso — disse Emília.
— Se fosse isso, tínhamos de encontrá-lo lá no bosque; no ponto em que havia ficado, e não aqui tão longe. Como veio parar aqui? Eis o mistério.
Meioameio foi no galope a um riacho perto a fim de trazer água. Que água milagrosa! Bastaram uns borrifos no rosto do Visconde para que ele abrisse os olhinhos e voltasse a si. Olhou para todos, ainda tonto e pateta. Depois disse:
— Foi com o chifre. Foi com o chifre de ouro que a malvadinha me arrancou.
— Está "variando" — cochichou Pedrinho para Emília, mas logo depois viu que não: o Visconde estava mas era contando muito certo o que havia ocorrido.
— Ela rompeu do meu lado... Vinha em cima de mim... Eu agarrei-a pelo pé e fechei os olhos. Parece que ela nem percebeu. Continuou de pulo em pulo até sair do mato, mas aqui no campo me viu agarrado ao seu pezinho de bronze e sacudiu-o no ar. Como eu não o largasse, veio com o chifre... e me arrancou dali e me jogou longe. Perdi então os sentidos.
A consternação foi geral, não só pelo que acontecera ao Visconde como pelo fato de a corça, depois de uns momentos nas unhas de um deles, ter conseguido escapar.
— Que pena, ter tomado pelo setor do Visconde, justamente o mais fraquinho do grupo! Ah, se viesse do meu lado...
Hércules mostrava-se desapontadíssimo. Perdera aquela oportunidade única, e agora? Como descobrir a corça outra vez? Naquele seu galope desapoderado, onde estaria ela naquele momento? E por mais que pensasse no caso não conseguia formular ideia nenhuma.


O plano de Pedrinho

Sentaram-se todos eles nos degraus do templo para o estudo da situação. O centaurinho propunha-se a seguir os rastos da corça, e a persegui-la no mais louco dos galopes, se acaso a encontrasse.
Pedrinho objetou que era inútil.
— Pois se de cada pulo ela vence vinte metros, como pode um cavalo alcançá-la?
Emília advertiu-o de que Meioameio não era cavalo.
— Eu disse cavalo — justificou-se o menino — porque para os efeitos da corrida ele é cavalo — e Meioameio concordou.
O problema era saber que direção tomara a corça. Os rastos, visíveis no chão até certo ponto, perdiam-se dali por diante. Ela tanto podia ter-se dirigido para norte como para sul, para leste como para oeste. E devia já estar longíssima.
— E se consultássemos o Oráculo de Delfos? — lembrou Emília.
Pedrinho não achou sem pé nem cabeça a sugestão.
— Vale a pena tentar, sim, Emília. E podemos mandar para lá o Visconde, no pó de pirlimpimpim. Num instante ele vai e volta. Como já esteve em Delfos e conhece o Oráculo, há de arranjar-se muito bem.
— Não sei — duvidou Emília. — O Visconde esteve lá apenas como "oferenda" que fizemos aos sacerdotes. Com a Pítia ele não lidou.
— Não lidou mas sabe como se deve fazer. Os sábios sabem tudo.
Hércules, que estava sem ideia nenhuma na cabeça, também aprovou a lembrança da Emília. Quem sabe? Tudo era possível naquela Grécia.
Assentado o plano, Pedrinho deu ao Visconde todas as instruções e mandou-o tomar a pitada. Hércules o havia informado com precisão da distância dali até Delfos, de modo que o Visconde não errou no cálculo do pó, indo aterrissar direitinho nos arredores da cidade.
Mas — ai! um grande transtorno o esperava. Já ia ele entrando no Templo de Delfos, quando, por azar, deu nos olhos do mesmo sacerdote a quem Pedrinho o entregara como oferenda. O sacerdote arregalou os olhos e exclamou:
— Por Apolo! Os cavalos de Diomedes me comam se esta aranha não é a mesma que me fugiu lá da Tesouraria — e zás! agarrou o Visconde pelas palhinhas do pescoço e encaminhou-se para o depósito. O pobre sabinho nem sequer esperneou. Para quê? Numa situação daquelas, nada mais inútil que o esperneamento. O sacerdote abriu o depósito e jogou-o para cima dum montão de oferendas: blocos de ouro, estatuetas preciosas, peças de seda bordada, frascos preciosos de perfumes, muito âmbar, muito marfim, incenso e mirra.
Pedrinho havia calculado que em uma hora o Visconde ia, consultava o Oráculo e voltava, mas já se haviam passado três horas e nada. Chegou por fim a hora do jantar e nada de Visconde.
Meioameio pôs-se a preparar o assado de Hércules — que nesse dia era um garrote de dez arrobas. Os outros, sentados em redor do braseiro, debatiam o estranho caso do Visconde. Que lhe poderia ter acontecido? Cada qual formulava uma hipótese — e foi Emília quem acertou. Depois de muito parafusar, disse:
— Juro que ele está guardado na Tesouraria!
— Que ideia! — exclamou Pedrinho. — Por quê?
— Com certeza um daqueles sacerdotes que o levaram para o depósito das oferendas o reconheceu — e o trancafiou de novo.
— Mas...
— Sim — continuou Emília — porque o Visconde tem o defeito de ser dessas criaturas que dão muito na vista. É exótico demais. Impossível que se apresentasse diante do Oráculo sem que os sacerdotes o reconhecessem. Quem é que vê o Visconde e depois se esquece?...
Pedrinho ficou pensativo. Quem sabe?...
— E agora, Pedrinho, nós é que temos de ir a Delfos, não só para consultar a Pitia como para salvar pela segunda vez o Visconde.
— Isso não! — gritou Pedrinho. — Ele está com um canudo de pó na cintura.
Com uma pitadinha escapa de lá ainda que mil sacerdotes o cerquem.
— Perfeitamente. Mas como o Visconde não aparece, é sinal de que os sacerdotes o "desarmaram" antes de prendê-lo no depósito.
Pedrinho não entendeu o "desarmaram". Emília explicou:
— Tomaram-lhe o misterioso canudinho da cintura.
Hércules continuava com a cabeça completamente vazia de ideias. Estava tão aborrecido com a perda do escudeiro que às vezes lhe vinham ímpetos de ir a Delfos, arrombar a golpes de clava a porta da Tesouraria e arrancar de lá o Visconde, bem nas barbas dos sacerdotes.
A refeição daquela tarde foi das mais tristes. Apesar da excelência do assado, todos o comeram por comer, com o pensamento longe dali.
Pedrinho estava com ar concentrado, piscando muito: sinal de intensa preocupação. Por fim assentou no plano proposto.
— Sim, Emília, não há remédio. Temos de ir nós dois a Delfos. Do contrário perdemos o Visconde. Ele que não aparece é que está sem o canudinho — e de que vale nesta Grécia um Visconde sem pó?
— Pois vamos — resolveu Emília. Podemos partir amanhã cedo. O Oráculo abre às dez horas.
O sono daquela noite fez "pendant" com o jantar: um sono inquieto, com pesadelos, desagradável. Até Hércules custou a pregar os olhos. Só quando os primeiros galos cantaram é que o sono o venceu. Mas a preocupação de Hércules não era apenas o caso do seu escudeiro e sim também como apanhar a corça.
Na manhã seguinte Pedrinho discutiu com Emília sobre o presente a oferecer aos sacerdotes da Pitia, porque os sacerdotes não fazem nada de graça. Com eles é ali no "quem não paga não tem." E só aceitavam boas pagas. Que poderiam os dois pica-pauzinhos oferecer aos orgulhosos sacerdotes do Oráculo de Delfos?
— A pele do leão da lua! — lembrou Emília.
— Oh, mas você pensa que Hércules vai consentir em desfazer-se dessa maravilhosa pele-escudo invulnerável? Nunca...
— Sei disso, Pedrinho, mas podemos dar um jeito.
— Que jeito?
— Deixe o caso comigo.
Minutos depois estava Emília contando a Hércules que lá no século vinte as damas usavam peles de muitos animais, inclusive uma tal raposa prateada, que era raríssima. E por causa do valor dessas peles os homens foram descobrindo os melhores meios de preservá-las, de livrá-las de bichinhos e bolor.
— Sim, porque dá dó ver uma pele rara, como por exemplo, essa sua, que é única no mundo, começar de repente a perder o pêlo até ficar aí uma pele pelada, sem valor nenhum..
— E que fazem para a conservar? — perguntou Hércules, já com medo de perder a sua preciosa pele-escudo.
— Desinfetam-nas de quando em quando — respondeu Emília — e teve de explicar o que era desinfecção, coisa desconhecida naqueles tempos. Depois falou nos vários desinfetantes de cheiro forte, e nas ervas aromáticas que envenenam com o cheiro as pequeninas traças das peles. Falou tão bem sobre aquele assunto, que Hércules acabou como ela queria: pedindo que lhe desinfetasse a pele.
Emília citou o melhor processo a usar estender a pele ao sol com uma camada de folhas de cheiro por cima. O sol fazia que o aroma das folhas se infiltrasse por entre os pelos e poros da pele, etc., etc.
Logo depois lá estava a pele do leão estendida sobre uma grande laje e totalmente coberta de folhas aromáticas.
Isso o que Hércules pensava, porque a realidade era bem outra. Sobre a laje só havia folhas e mais folhas, sem pele nenhuma embaixo. A pele do leão já estava bem enrolada e embrulhada, pronta para ir com eles a Delfos.
Hércules, coitado, não desconfiava de coisa nenhuma, mas por precaução Emília ainda disse:
— E não mexa lá, Lelé, senão estraga tudo. Quem põe as folhas em cima da pele, esse mesmo tem de tirá-las. É como se usa lá no mundo moderno.
Resolvido o caso da oferenda, só lhes restava calcular bem calculada, a pitadinha de pó — e pronto! Mestre que era em tais cálculos, Pedrinho despejou na palma da mão de Emília a quantidade exata e fez o mesmo na sua. Em seguida Um... Dois... e TRÊS!...
— Zunnn...
Instantes depois despertavam nos arredores de Delfos, a mesma cidade a que tinham ido no tempo das aventuras com o Minotauro. Recordaram-se de tudo, e até reconheceram certas caras vistas naquela ocasião.
— O Oráculo já está aberto? — perguntou Pedrinho a um passante, e como a resposta fosse afirmativa encaminharam-se para o Templo de Apolo.
Como vinham gentes de todas as cidades gregas para consultar a Pítia, mesmo àquela hora a multidão já era grande.
Pedrinho, com a pele ao ombro, dirigiu-se ao vestíbulo onde se discutiam as oferendas. Descansou o rolo no chão e disse a um dos sacerdotes:
— Pode me atender aqui mesmo num caso especial?
O sacerdote franziu a testa, curioso do que poderia ser.
— Fale, menino.
Pedrinho explicou que estavam com grande urgência; precisavam consultar a Pítia e voltar com a maior pressa.
— Há muitas pessoas na frente — respondeu o sacerdote.
— Mas se fizermos uma oferenda valiosíssima, como jamais houve outra?
— E que pode ser essa preciosidade?
— A pele do leão da lua que Hércules matou na Nemeia — e Pedrinho desenrolou diante do sacerdote atônito a maravilhosa pele, única no mundo. O sacerdote cheirou-a, apalpou-a, correu a mão pela pelagem macia. Era um grande conhecedor. Freqüentemente lidava com oferendas de peles de toda sorte de animais — mas pele como aquela jamais vira. E chamou um companheiro, e depois outro, ficando os três a cochichar.
Por fim reuniram-se em redor da pele todos os sacerdotes do templo.
Emília piscava para Pedrinho.


Segundo salvamento do Visconde

Depois de todos aqueles cochichos, o sacerdote aproximou-se de Pedrinho e declarou:
— Aceitamos a sua proposta. Será levado à presença da Pítia nestes três ou quatro minutos — e ele mesmo foi guardar na Tesouraria a preciosa pele. De caminho notou que havia uma frase escrita na parte pelada do couro. Tentou ler. Não conseguiu e deliberou lá consigo: "Depois de fechado o expediente virei decifrar isto." E trancou a pele lá dentro.
A frase escrita numa língua que ninguém do mundo antigo poderia ler, porque era uma língua futura, dizia o seguinte: “Visconde: palpitamos que você está preso ai na Tesouraria e privado do pó. Vai uma pitada num embrulhinho bem no fundo da orelha desta pele. Num momento em que o sacerdote abrir a porta, aspire o pó mas depois de bem embrulhado na pele, porque é preciso que se escapem os dois, você e a pele. Pedrinho."
De volta da Tesouraria, o sacerdote levou Pedrinho e Emília para o recinto da Pítia, que lá estava de camisolão branco diante da trípode a fumegar.
Pedrinho, que já conhecia todo aquele cerimonial, aproximou-se dela com Emília pela mão e disse:
— Desejo saber em que rumo está correndo a Corça Cirineia que o grande herói Hércules está encarregado de pegar; e também desejo saber se ela volta.
A Pítia ouviu a pergunta com a maior atenção e depois, estendendo os braços, debruçou-se sobre aquela fumaça, aspirando-a. Ficou logo em estado de embriaguez e falou: "Depois de chegar à terra dos hiperbóreos, o corisco voltará para sua deusa."
Estava terminada a consulta. O sacerdote fez ao menino gesto para que se retirasse e cedesse o lugar ao consulente seguinte.
— Que acha da resposta, Pedrinho? — perguntou Emília logo que se viu na rua.
— Não acho nada porque não sei onde é a terra dos hiperbóreos. Só o Visconde poderá me esclarecer. Temos de esperar pelo Visconde. Ele é lerdo, como todos os sábios, mas impossível que não sinta o cheiro da pele e não desconfie. E se desconfiar, está claro que vai examiná-la e dará com o meu recado escrito.
— Mas que dose de pó você calculou?
— Ah, pensei muito nisso, sim. Pus uma verdadeira pulga de pitadinha, a necessária para ele escapar de lá e cair nos subúrbios da cidade. Temos de ir esperá-lo lá na estrada grande.
E assim fizeram. Plantaram-se à beira da estrada grande, muito atentos, sempre a olhar em todas as direções a ver se de repente o Visconde e a pele aterrissavam. O lance era arriscadíssimo. Se antes do pôr do sol o Visconde não reaparecesse com a pele, tudo estava perdido: teriam então uma só coisa a fazer — voar para o sítio de Dona Benta, abandonando a aventura dos Doze Trabalhos de Hércules. Era essa a opinião de Pedrinho.
— E deixamos aqui o Meioameio? — objetou Emília quase com carinha de choro.
— Que remédio? Porque de uma coisa eu tenho certeza: se Hércules descobre que nós lhe furtamos a pele, e nos vê de novo pela frente, ah, dá-lhe uma daquelas cóleras hercúleas e ele nos achata com o pé, como achatou o caranguejo.
Emília suspirou com os olhos no sol. Que horas seriam?
— Calculo em três já passadas — disse Pedrinho. — O tempo está voando e aquele estupor do Visconde não dá sinal de si. Com certeza nem viu pele nenhuma e está estudando cientificamente alguma baratinha grega...
Parece mentira cabeluda, mas assim que acabou Pedrinho de pronunciar essas palavras, eis que uma coisa cai a poucos passos dali — plaf! Uma pele! A pele do leão. Pedrinho e Emília correram para lá. Abrem-na e dão com o Visconde dentro, ainda tonto, a passar a mão pelos olhos!
— Avé! Avé! Evohé... — berrou Emília, fazendo que vários passantes olhassem para ela e rissem.
Depois de bem voltado a si, o Visconde contou tudo quanto havia acontecido.
— Pois é — disse ele. — Assim que aterrissei, tonto ainda que eu estava, senti um agarramento. Eram as duas mãos dum sacerdote que me seguravam de jeito a não me deixar o menor movimento livre. "Estes bichos às vezes mordem", pareceu-me ouvi-lo dizer — e lá se foi comigo para a Tesouraria. Antes de me largar lá, examinou-me de alto a baixo e deu com o meu canudinho de pó atado à cintura. Tirou-o, cheirou-o sem aspirar, provou um bocadinho com a ponta da língua. "Que será isso? Talvez o alimento deste inseto. Mas como foi que da outra vez me fugiu daqui? Não compreendo..." e afinal fechou-me na Tesouraria, no meio duma montanha de preciosidades.
— E quais foram os seus pensamentos lá na Tesouraria, Visconde? — quis saber Emília.
— Eu pensei o que podia pensar: que dando por falta de mim, vocês fatalmente viriam procurar-me; e que chegando cá a Delfos, fatalmente descobririam o meu paradeiro; e que descobrindo o meu paradeiro...
— Já sei, Visconde — interrompeu Emília. — E como descobriu o nosso recado escrito na pele?
— Pelo cheiro. Mal o sacerdote largou lá a pele, senti uma forte catinga de leão no ar. "Macacos me lambam se isto que acabou de entrar não é a pele do leão da lua!" E levantando-me fui ver. Sim, era ela mesma, reconheci-a logo. E por felicidade dei com o recado, porque a pele estava enrolada com o pêlo para dentro. O resto não é preciso contar...
— O que é preciso é voltarmos incontinenti. O carro de Apolo já está bem perto da cocheira...
Sim. O relógio de parede de Dona Benta devia estar dando quatro horas lá no sítio. Pedrinho calculou duas pitadas de pó e distribuiu-as pelas duas palminhas de mãos estendidas. Depois calculou uma terceira para si. Aspiraram as três pitadas ao mesmo tempo e zuann!... foram despertar no Monte Cirineu, a poucos metros da laje.
— Emília — disse Pedrinho logo que a tontura passou — vá com o Visconde ver Hércules e entretenha-o enquanto eu coloco a pele debaixo das folhas. E quando eu der um assobio de dois dedos, pode vir.
Emília pegou o Visconde pela mão e foi correndo na direção do templo. Encontrou Hércules dormindo ao sol, feliz como um lagarto. Quando no sono o herói esquecia-se de todas as suas inquietações. Meioameio estava ausente, com certeza em busca do jantar.
Emília pegou do chão uma palhinha e fez cócegas no ouvido de Hércules. O herói deu um grande tapa em si mesmo e despertou. E ficou uns instantes apatetado ao ver diante de si o seu prodigioso escudeiro ali com a boneca.
— Então, meu caro, que foi que aconteceu? Emília tomou a palavra. Era preciso falar e falar e falar até que soasse o assobio de Pedrinho — e ela falou pelos cotovelos. Contou tudo de tudo e mais alguma coisa. E quando no fim Hércules disse: "Bom. Estou ciente. Preciso agora ir recolher a minha pele" — Emília deu uma grande risada.
— Está ciente, Lelé? Ah, como é ingênuo! Tenho muita coisa ainda a dizer e da mais alta importância, como, por exemplo...
Mas não precisou inventar mentiras: o assobio de Pedrinho havia soado.
— Que assobio é aquele?—indagou o herói.
— É de Pedrinho. Está nos chamando na laje.
Hércules rumou para lá, acompanhado da Emília. Pedrinho, de mãos na cintura, olhava muito atento para a camada de folhas.
— Posso retirar a pele? — perguntou ele logo que o herói chegou — e na voz de "sim", esparramou as folhas e suspendeu a linda pele. Hércules levou-a ao nariz. Fez uma careta.
— Extraordinário! Como é que depois de passar horas e horas ao sol sob uma camada de folhas odoríferas, esta pele só mostra a mesma catinga de sempre? Estou vendo que nas peles invulneráveis nem os cheiros penetram...

Vitória

Depois de sossegados quanto ao ponto principal, que era a restituição da pele, Pedrinho chamou o Visconde para uma consulta. Queria saber que eram os hiperbóreos."
O Visconde sabia.
— Hiperbóreos: os antigos chamavam assim aos povos do norte, das terras glaciais perto do Pólo.
— Bom — disse Pedrinho. — Então a resposta do Oráculo quer dizer que a corça vai numa carreira até perto do Pólo e só depois volta cá para este templo. A interpretação está das mais fáceis.
E pôs-se a raciocinar. Se a corça ia e voltava, nada mais inútil do que saírem dali. Em vez de correrem mundo às tontas, como cegos, sem quase nenhuma probabilidade de encontrar a corça, o cômodo, o bom, o certo, o agradável, era ficarem acampados ali até que ela voltasse.
Outra: se a corça vencia vinte metros de cada pulo, era fácil calcular aproximadamente quanto tempo levaria para ir e voltar. Eles estavam na Grécia cuja latitude é de...
— Visconde: qual a latitude da Grécia?
— A Grécia fica entre 37 e 40 graus de latitude norte.
— E as terras hiperbóreas que a Pítia falou?
— Isso é o arquipélago de Spitzberg, lá entre 76 e 80 graus de latitude. A distância daqui até lá é duns 40 graus; quer dizer que passa de 5 mil quilômetros.
Pedrinho coçou a cabeça. Cinco mil quilômetros! Que pena haver tantos quilômetros no mundo... Depois calculou a velocidade da carreira da corça, achando 200 quilômetros por hora. Mesmo assim ela levaria 52 horas para ir e voltar. Não era muito. Podiam esperar ali. Mas apesar de haver feito pouco caso no faz-de-conta da Emília, Pedrinho resolveu recorrer a ele para encurtar o prazo.
— Sim — disse para si mesmo. — Faz-de-conta que a corça volta depois de amanhã — e correu a dizer aos outros que com base em seus estudos e nos do Visconde, a corça estaria de novo ali depois de amanhã à tarde.
Hércules não duvidou. Ele já não duvidava de nada que os seus maravilhosos companheirinhos dissessem.
— E como vamos fazer para pegá-la?
— Aplicar o meu sistema de esperar a paca na toca. No caso da corça, a toca é o templo de Ártemis. Podemos esperá-la aí no campo, cada um de nós num dos pontos de passagem mais provável.
Emília já estava ali, muito atenta, de mãos na cinturinha. Ao ouvir aquilo, deu uma risada. Depois:
— Mas se o templo é a toca, por que não a esperarmos dentro da toca?
Hércules assustou-se com a ideia. Seria uma profanação, um desrespeito à vingativa Ártemis. Mas Emília não cedeu.
— Tenho um jeito que acomoda tudo — disse ela. — Armamos uma rede à entrada do templo. A entrada não é bem dentro do templo e a deusa não pode dizer nada.
Hércules ainda coçou a cabeça, indeciso, mas Pedrinho e Emília foram cuidar da rede.
— Há de haver pau de embira no capão de mato — disse o menino. — Vou ver — e correu para lá. Meia hora depois voltava com uma boa quantidade de embira excelente. Chamou os outros.
— Temos de desfiar toda esta embira e torcer uma cordinha assim da grossura dum barbante — e puseram-se ao trabalho. Hércules ajudava, segurando a ponta do cordel que os outros iam torcendo.
Meioameio mostrou-se muito hábil naquilo. Uma hora depois estavam com um novelo de cordel mais que suficiente para a rede necessária.
Pedrinho imaginou-a no formato dos sacos de filó que usam os caçadores de borboletas. Também lembrava certas armadilhas de pegar peixe.
— Tal qual um covo — dissera o Visconde.
Pronta a rede, armaram-na entre as colunas da fachada do templo, num ponto por onde a corça fatalmente passaria. Armaram-na só para experiência, porque a rede não podia ficar ali dois dias à espera da corça. Embora não fosse um templo muito freqüentado, volta e meia aparecia por lá um ou outro fiel.
Muito bem. Tudo estava perfeitamente estudado e preparado, e Hércules já sorria no antegozo da vitória.
O jantar daquela tarde foi dos mais alegres, porque estavam novamente todos reunidos e absolutamente certos da vitória. Mais umas horas e pronto! O malvado Euristeu iria ficar com a cara de asno.
O dia seguinte foi só de brincadeiras e galopadas no centauro. Mas Pedrinho notou que o Visconde estava se tornando muito "variável." Ora brincava, ora não brincava, e quando saía do brinquedo era para ficar com o olho parado. Emília cochichou para Pedrinho: "Será um grande transtorno se ele enlouquece aqui..."
— Por que há de enlouquecer, Emília? Não seja agourenta.
— É que os sintomas estão se amiudando. Durante todo o caso de Delfos o Visconde comportou-se com a maior perfeição, sem a menor loucurinha, mas hoje não está bem.
— Vovó diz que os loucos têm períodos de lucidez e loucura — lembrou o menino. — Deve ser isso.
Dormiram muito bem aquela noite todos, menos o Visconde. O sabugo passou-a de olhinhos arregalados e parados num ponto, piscando muito.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

E afinal chegou o grande dia da vitória, o dia em que tinham de apanhar viva a Corça de Pés de Bronze.
Logo pela manhã Pedrinho veio com uma boa ideia: pôr Meioameio de sentinela na estrada, com instruções para espantar qualquer visitante do templo que aparecesse.
— Fique dentro do mato da margem, escondidinho. Quando aparecer algum fiel, dê um pulo para a estrada e amedronte-o como quiser. Coices, só em caso de última necessidade.
Meioameio riu-se.
— Não vai ser preciso. Este povo tem tal pavor dos centauros, que a simples vista de um os faz correr ainda mais rápidos que a corça. Bom. Estavam sós no campo, livres de importunos, e podiam armar a rede. Pelos cálculos de Pedrinho só lá pela tarde a corça chegaria, mas precaução nunca é demais. E foi ótimo que pensasse assim, porque a corça veio três horas antes do cálculo de Pedrinho.
Eles haviam acabado o almoço e estavam deitados por ali, cochilando, sem pensamento nenhum na cabeça quando Emília, trepada a uma árvore, gritou:
— Sentido! Estou vendo um pulo a grande distância.
Pedrinho explicou a Hércules que os olhos de Emília sempre foram famosos. Certa vez chegou até a enxergar uma pulga no dragão de S. Jorge, lá na Lua. E se ela estava vendo pulos, então era mesmo a corça que vinha vindo.
O toque de "Sentido!" fez que todos se levantassem e se colocassem, bem escondidos, nos pontos que Pedrinho havia determinado. Em cima da árvore Emília continuava a ver pulos.
— É ela, sim! Vem de pulo em pulo, e vai ficando maiorzinha à medida que se aproxima. Neste um minuto está aqui.

Como custou a passar aquele último minuto de espera! Emília ainda gritou:
— Os chifres de ouro rebrilham ao sol. Ela está pulando o ribeirão...
Do ribeirão ali eram cem metros cinco pulos. E todos viram a corça dar esses cinco pulos finais e mergulhar no templo, justamente no ponto desejado: — o vão das duas colunas entre as quais fora armada a rede.
— Está no papo!... — berrou Pedrinho voando para lá.
Todos o seguiram, e lá deram com a corça na rede e Pedrinho em cima dela, tal qual no dia em que se atirou sobre a peneira do saci. Bem que a coitadinha tentara fugir, ao perceber que caíra num laço — mas seu chifre de ouro enganchou-se nas malhas da rede, o que deu a Pedrinho tempo de chegar e atirar-se. Se não fosse aquele abençoado enganchamento, o mais certo era ter a corça escapado pela segunda vez — e aí, então, nunca mais!...
Pedrinho não se esquecera de tecer com o resto das embiras uma boa corda — e lá estava ele com as mãos por dentro das malhas procurando atar a ponta dessa corda naqueles chifrinhos de ouro.
Depois disso feito, levantou-se e disse:
— Pronto! Podemos retirá-la da rede.
Vendo-se livre da rede, o animalzinho julgou-se livre de tudo mais e disparou — mas a ponta da corda estava bem segura na mão de Pedrinho, o qual a derrubou com um sacão violento. A corça ainda fez duas ou três tentativas de fuga, mas breve se deu por vencida e baixou a cabeça.
Todos a rodearam. Emília ergueu-lhe uma das patas e bateu com uma pedrinha para ver se era bronze mesmo. O som foi de sino. Depois examinou os chifres de ouro. Que belos e como ficariam bem em seu museuzinho!
— Hércules — disse ela — quero que me corte os chifres desta corça. O tal Euristeu não sabe como ela é. Fica pensando que é mocha.
Mas Hércules não a atendeu — e foi a única vez em que não atendeu a um pedido da Emília. A razão era muito clara. Se ele serrasse os chifres de ouro da corça, ficavam os tocos — e depois Euristeu iria acusá-lo de ladrão daquele ouro. Hércules era burrão, mas muito honesto.
No dia seguinte partiram para Micenas com a corça na corda. Como Pedrinho seguisse montado em Meioameio e lhe ficasse incômodo ir segurando a ponta da corda, teve a ideia de amarrá-la no rabo do centaurinho — e assim fez. A entrada dos heróis em Micenas causou sensação. Hércules na frente; depois o centauro com os pica-pauzinhos montados; e por fim, pela cordinha, a famosa Corça de Pés de Bronze e Chifres de Ouro, cuja existência era notória na Grécia inteira.
— Isto, sim, é que é um herói de verdade! — disse uma voz no meio do povo.
— Já matou o Leão da Nemeia, já liquidou a Hidra de Lerna e agora traz a corcinha do Monte Cirineu. Que trabalho poderá haver no mundo que Héracles não realize?
Quando o herói entrou no palácio de Euristeu com a corça Cirinaica nos braços, Sua Majestade, mortificado de paixão, fulminou com os olhos o pobre ministro Eumolpo que lhe sugerira aquele Trabalho.
— Salve, Majestade! — começou Hércules. — Aqui tendes a Corça de Pés de Bronze e Chifres de Ouro que vivia sob a proteção da gloriosa Ártemis — e soltou ali na sala do trono o maravilhoso animalzinho.
O despeito de Euristeu em virtude de mais essa vitória de Hércules transparecia em seus olhos. Mas procurou dominar-se e disse secamente:
— Felicito-o. Amanhã determinarei o Trabalho seguinte — e fazendo gesto de fim de audiência, desceu do trono e foi conferenciar com Eumolpo sobre o que fazer daquele invencível herói.
Depois de sair do palácio, Hércules reuniu-se aos meninos, que o esperavam na rua, e disse:
— O rei ainda não me deu nenhuma incumbência nova. Temos de esperar.
— Aqui ou no "camping"?
— Está claro que no "camping". Toca para lá.
Com que alegria voltaram ao querido acampamento lá perto do ribeirão de águas cristalinas! Com que felicidade se espalharam por ali, procurando as coisas deixadas, matando as saudades!
— Temos de melhorar nossa cabana — propôs Emília. — Nós viramos e mexemos nesta Grécia, mas a nossa verdadeira residência é aqui — e começaram a estudar a reconstrução da cabana.
— E por que — disse Pedrinho — em vez de reconstruir essa miserável choupana de palha, não havemos de fazer uma casinha como a que os Meninos Perdidos construíram para Wendy?
A ideia encantou a todos, e o resto do dia passaram na maior atividade, reunindo materiais de construção. A floresta forneceu muita coisa, e o que não havia na floresta era comprado no Armazém Faz-de-Conta que Emília abriu à beira da estrada. Lá adquiriram telhas para o telhado, e vidraças já prontas, e tábuas para o assoalho, de modo que a casinha se foi tornando uma beleza.
— Na frente quero uma fila de colunas como a do templo de Ártemis — reclamou Emília.
— Mas que é das colunas?
— Vou mandar uma dúzia lá do meu depósito — e foi com as colunas faz-de-conta do Armazém de Emília que o arquiteto Pedrinho ergueu a fachada da construção. Emília exigiu ainda, sobre as colunas, um frontão ao tipo do de todos os templos gregos, com esculturas.
— Quero no frontão um auto-relevo que represente as principais cenas da caça à corça. Esculturas de mármore.
— E quem vai esculpir isso?
— Lá no meu armazém também vendo esculturas maravilhosas — e Pedrinho construiu o frontão e colocou lá as maravilhosas esculturas vindas do Armazém da Emília.
Hércules não largava dos meninos e babava-se de gosto ao vê-los brincar. Na sua vida de herói, sempre em luta com toda sorte de monstros e guerreiros, nunca tivera tempo de prestar atenção nesses bichinhos tão interessantes chamados "crianças." E das crianças o que mais agora o interessava era o "tal de brinquedo." Parece que a única preocupação do bicho criança é brincar e brincar e brincar. E no brinquedo usam muito aquela maravilha do faz-de-conta. A gente grande não sabe o que é isso, por isso a gente grande é tão infeliz. Hércules começou a compreender que a maior maravilha do mundo é realmente o faz-de-conta — isto é, a Imaginação, o sonho.
A casinha nova já não era casa — era templo habitável. Templo por fora e casa de morada por dentro. Mas os templos têm que ser dedicados a alguém.
— Templo de que deus ou deusa, Pedrinho? — perguntou Emília depois de tudo pronto.
O menino pensou. Os deuses e deusas da Grécia andavam fartos de templos, tantos havia por lá. O melhor era dedicarem aquele templozinho à vovó, coitada, tão longe dali e com reumatismo. Emília concordou — e imediatamente viu surgir na fachada do templo um letreiro entalhado em mármore faz-de-conta: TEMPLO DE AVIA.
Emília não entendeu.
— AVIA é vovó em latim — explicou Pedrinho.
— Mas a língua aqui é a grega. Ponha aí vovó em grego.
— Era o que eu queria fazer, mas não sei e não quero dar o gosto de me informar com Hércules. Se ele descobrir que não sei nem como é vovó em grego, é bem capaz de perder a fé em toda a minha sabedoria...
Que deliciosa noite passaram na casinha nova! Hércules dormiu ao relento, como de costume, e o centaurinho também. Isso fez que a sensação de segurança dos pica-pauzinhos fosse imensa. Guardados por um semideus e por um centauro! Que mais poderiam desejar?
No dia seguinte chegou um mensageiro com um pergaminho. Hércules, que era analfabeto, pediu a Pedrinho que o lesse.
O menino desdobrou o rolo e leu o seguinte:
— Sua Majestade o Rei Euristeu, de Micenas e Tirinto, ordena ao seu súdito Héracles que siga imediatamente para Erimanto, na Psófida, a fim de descobrir o monstruoso javali que anda a assolar aquelas paragens. E como assim quer, assim manda. EUMOLPO, Primeiro-Ministro de Sua Majestade Altíssima.
Hércules arreganhou um sorriso. Se era um javali, então se tratava de massa-bruta, e de massa-bruta ele jamais teve medo. Para Hércules o perigo estava em trabalhos como o da corça, contra a qual a sua força era inútil, um trabalho que requeria muita inteligência. Se vencera com tamanha facilidade a Corça de Pés de Bronze, isso fora em virtude da colaboração de Pedrinho e dos outros.
"Sim", refletia consigo o herói. "Eles representam a Inteligência e eu só disponho da Força. Em muitos casos a Força nada vale e a Inteligência é tudo — como no da corça. Mas um javali, ah, ah, ah... São ainda mais broncos do que eu...”
Depois deu ordem aos outros já reunidos em seu redor:
— Aprontem-se que amanhã de madrugada vamos partir para o Erimanto.
Emília lembrou-se da casinha.
— E fica largada aqui este nosso amor de casinha?
— Que remédio? Mas espero que ninguém ousará pôr as mãos nela, sabendo que é nossa. Todos aqui temem os meus músculos...
E Hércules concluiu o seu pensamento com uma "piada" muito fina, a primeira e última de sua vida:
— E se alguém estragar a casinha, aplicamos o faz-de-conta e o estrago. desaparece...
Emília teve de engolir o remédio que ela tanto receitava para os outros, mas apesar disso foi lá à casinha e pregou um letreiro de papel de verdade (papel não: costas do pergaminho momentos antes recebido), o qual dizia assim:

        ESTA CASA TEM DONO. AI DE QUEM MEXER NELA!... SERÁ ESMAGADO PELO PÉ DE HÉRACLES, COM A MESMA FORÇA COM QUE ESMAGOU O CARANGUEJO...        

No dia seguinte, às quatro e meia da madrugada, partiram para o Erimanto.
 

De "A corça de pés de bronze" para "Biblioteca"

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