Valdir Aguilera
 Físico e pesquisador

 

 

As cavalariças de Augias

Monteiro Lobato

As cavalariças de Augias


— Se as cavalariças de Augias exigem um Hércules para a sua limpeza, então esse rei tem cavalos que não acabam mais.
— Sim, possui-os inúmeros e além disso é ladrão de cavalos.
— Como?
— Certa vez um tal Neleu mandou quatro excelentes animais, já vencedores em várias provas, disputar uma corrida de carros na capital do reino de Augias. Sabem o que Augias fez? Gostou muito dos cavalos, elogiou-os para o auriga...
— Que é auriga?
— Cocheiro. Elogiou-os para o auriga e com o maior cinismo lhe disse: "Pode ir embora. Estes cavalos ficam sendo meus.”
— Que patife! — exclamou Emília. Eu pregava-lhe um coice... E que fez dos cavalos?
— Pôs junto com os demais, lá na sua imensa cavalariça.
Nesse ponto da conversa Pedrinho começou a abrir na cara o sorriso de quem descobriu a pólvora.
— Já estou percebendo o negócio! disse ele. — Esse rei devia ter uma grande idéia na cabeça. Diga-me uma coisa: era fértil a terra lá onde ele morava?
— Sim. Muito fértil.
Pedrinho atrapalhou-se. Sua idéia fora que Augias estava acumulando esterco para fertilizar o reino; mas se as terras eram férteis, então, então...
— Então ele era um grande porco! — resolveu Emília e deu uma cuspidinha de nojo.
Quem estava contando aos pica-pauzinhos a história de Augias era um viandante. Em todas as aventuras pela Grécia eles encontravam, nos "momentos psicológicos", um viandante de aspecto venerável, que tudo sabia e tudo explicava. Da primeira vez ninguém desconfiou de coisa nenhuma; mas a coincidência daquele encontro em quase todas as aventuras fez que a hipótese da Emília fosse aceita: "Ele é um emissário de Palas, ou Minerva, a deusa da sabedoria; repare que aparece como por acaso nos momento que temos necessidade de saber qualquer coisa da história antiga ou da vida deste país." E Emília botou-lhe o nome de Minervino...
A réplica de Emília, achando que Augias era um grande porco, fez que o velho Minervino sorrisse; ele já estava acostumado com aqueles desbocamentos da ex-boneca.
— Não sei se o Rei Augias é isso, menininha, só sei que os seus estábulos são imensos e estão com uma camada de esterco como nunca foi vista igual no mundo.
— No mundo antigo pode ser — objetou Emília. — Lá no nosso mundo moderno "tivemos" as camadas de guano do peru, que, segundo diz o Visconde, atingiam a metros de espessura. As das cavalariças de Augias não devem ser tão espessas, pois como então podem os cavalos entrar lá? Hão de bater com a cabeça no forro...
— Não sei — disse o velho viandante — nada vi com meus próprios olhos, mas ouço falar nisso. E agora vai para lá Hércules, com ordem de Euristeu para limpar as cavalariças de Augias. Estou curioso de ver como o nosso herói se desempenhará dessa missão. Emília cuspiu de novo, com carinha de nojo e disse:
— Não vou gostar deste Quinto Trabalho de Lelé. Muito sujo... E o cheiro de tanto esterco deve ser horrível.
A palavra "cheiro" teve a propriedade de arrancar o Visconde do torpor em que se achava. O sabuguinho levantou-se e aproximou-se da Emília com os olhos muito arregalados e com o dedo no ar repetiu várias vezes a mesma palavra:
— O cheiro... O cheiro... O cheiro...
Todos julgaram que o Visconde houvesse enlouquecido de uma vez, mas não. Ele havia apenas resolvido um problema — o terrível problema que o preocupava desde a véspera: "Por que razão havia Euristeu dado aquele trabalho a Hércules?" Sim, porque isso de limpar uma cavalariça, mesmo enorme como a de Augias, não era um trabalho na altura de Hércules, já que só exigia força física e paciência. Com uma boa turma de trabalhadores armados de enxadas e pás, qualquer empreiteiro pode limpar todas as cavalariças do mundo. Mas quando Emília falou em "cheiro", a cabecinha do Visconde iluminou-se.
— Sim, o cheiro!... Sim, o mau cheiro daquilo!... Deve ser um cheiro venenoso e mortal, uma espécie de gás asfixiante!...
Euristeu lembrou-se de encarregar meu amo desse Trabalho não porque seja um Trabalho acima das forças de qualquer homem comum, mas porque as venenosas emanações do esterco revolvido vão afinal destruir meu amo...
O Visconde, como bom escudeiro, só tratava Hércules de "amo", tal qual Sancho com D. Quixote.
Ao ouvir aquele monólogo, Pedrinho bateu palmas.
— Bravos ao Sherlock! Descobriu tudo!... Sim, só pode ser isso. E que vai aconselhar ao seu amo, Visconde?
— O emprego de uma boa máscara contra gás, daquelas usadas na Grande Guerra.
— E onde arranja tal máscara?
— Você constrói uma.
— Eu?... — exclamou o menino — e pôs-se a refletir. Já tinha visto uma das tais máscaras. Não era coisa muito complicada. Acontecia, porém, que as máscaras dependem dos gases, isto é, para tal gás tal máscara. Ora, não conhecendo ele o gás das cavalariças de Augias, não podia construir uma máscara de confiança, certa, segura, havendo a possibilidade de o pobre Hércules levar a breca com máscara e tudo. O problema era mais complicado do que parecia. Por fim, cansado de pensar naquilo, disse consigo mesmo: "Na hora veremos" e mudou de assunto.
— Escute, Minervino — pediu em seguida. — Conte-nos mais histórias desse Augias.
O velho viandante contou que Augias era um dos Argonautas; e depois teve de contar a história dos Argonautas; e para contar a história dos Argonautas teve de referir-se ao Tosão de Ouro. Pedrinho, que ja ouvira falar no Tosão de Ouro, quis saber o que era. O viandante explicou:
— Um pelego de carneiro...
Foi um desapontamento. Pedrinho esperava coisa muito mais misteriosa.
— Sim — disse o viandante. — Um pelego, mas que pelego! ... Provinha do carneiro mágico que levou pelos ares Frixo e Hele...
— Quem eram esses dois? — quis saber Emília.
O viandânte coçou a cabeça, desanimado; depois disse:
— Estas histórias emendam-se de tal maneira uma na outra que não têm fim. Para explicar o caso dos argonautas tenho de ir recuando, recuando... Bom, Frixo era um herói beócio...
— Como beócio? Bobo?
— Não. Os beócios não eram bobos, eram apenas os nativos da Beócia, uma das partes da Grécia. Mas, por amor de Palas, Emília, pare com as perguntas, se não tenho que ir recuando até aos começos do mundo. Frixo, um herói beócio que juntamente com sua irmã Hele fora indicado para o sacrifício ao tempo de uma grande seca na zona, era dono de uma verdadeira preciosidade: um carneiro de velo de ouro...
— Que é velo? — quis saber Emília.
— É pelo — respondeu Minervino, já meio danado, e prosseguiu: — possuía esse carneiro de velo de ouro, que lhe fora dado por sua mãe Néfele. E foi nesse carneiro mágico que os dois irmãos fugiram momentos antes de serem levados para o altar do sacrifício. Fugiram, e ao passarem das terras da Europa para as da Ásia, Hele perdeu o equilíbrio e caiu no mar.
— Eles iam voando?
— Sim, os carneiros mágicos voam.
Caiu no mar e desde aí aquela nesga de mar passou a chamar-se Helesponto, em homenagem à pobre Hele.
O Visconde meteu o bedelhinho para dizer que nos tempos modernos o Helesponto mudara de nome, passando a chamar-se Dardanelos.
— E Frixo? Que fez? — perguntou Pedrinho.
— Frixo continuou no vôo e desceu na Cólquida, onde sacrificou o precioso carneiro num templo de Ares.
O Visconde explicou que esse Ares era o mesmo deus Marte dos romanos.
— Sacrificou o carneiro, tirando-lhe a pele, deu-a de presente a Etes, o rei da Cólquida. Etes ficou radiante, porque era uma preciosidade sem-par no mundo, e guardou-o pendurado de um velho carvalho, com um terrível dragão junto ao tronco, de sentinela.
— Quem sabe se esse dragão não é o mesmo que S. Jorge levou para a Lua? sugeriu Emília, mas Pedrinho tapou-lhe a boca: "Deixe Minervino falar."
O viandante prosseguiu:
— O caso espalhou-se imediatamente pela Grécia inteira, despertando as maiores invejas. Todos os reis gregos passaram a sonhar com o Tosão de Ouro — entre eles Pélias, o rei de Iolcos. Esse Pélias tinha um sobrinho que era herói...
— Pelo que vejo, isto de heróis nesta Grécia Antiga é uma profissão como a de capanga lá no nosso mundo moderno...
— Não atrapalhe, Emília! Continue, Minervino.
— Sim, Jasão, o tal sobrinho de Pélias, já estava com fama de herói e por isso Pélias o encarregou da grande empresa: ir à Cólquida e apoderar-se do Velo de Ouro, custasse o que custasse. Isso foi o começo da célebre expedição dos Argonautas.

Os Argonautas

— E que fizeram esses Argonautas? — quis saber Emília.
— Embarcaram no navio Argo...
— E daí lhes vem o nome de Argonautas — observou sabiamente o Visconde. — Nauta quer dizer navegador. Argonautas são os navegadores do Argo.
Minervino olhou para o Visconde com espanto. Como sabia coisas aquela aranha de cartola! Depois contou que até Héracles fazia parte desse grupo de navegadores — Hércules, Castor, Pólux, Orfeu, Telamon, Peleu, todos comandados por Jasão.
— Era um grupo de heróis dos mais luzidos e valentes — e tinha de ser assim, dadas as tremendas dificuldades da empresa. A ordem do rei a Jasão era para lhe trazerem o Velo de Ouro "custasse o que custasse."
— E como foi que eles pegaram o pelego? Como se livraram do dragão?
— Ah, a história é comprida! — respondeu o viandante. — O rei da Cólquida tinha duas filhas feiticeiras, uma de nome Circe, muito famosa, e outra de nome Medeia, que ia ficar famosíssima justamente por causa da expedição dos Argonautas. Quando o Argo, depois de muitas voltas, chegou à Cólquida, Medeia conheceu Jasão e apaixonou-se. Foi um namoro que rendeu grandes coisas. Jasão contou-lhe muito em segredo ao que vinha, isto é, que vinha roubar o Velo de Ouro. Medeia assustou-se. O dragão era de fato terrível e invencível e acabaria devorando todos os Argonautas, se por acaso o atacassem de frente. Era preciso recorrerem à astúcia. "Vou fazer uma coisa"—disse Medeia. "Sou mágica; sei de drogas para tudo e tenho uma que fará o dragão adormecer; esse dragão está guardando o velo justamente porque tem a propriedade de dormir com um olho e vigiar com outro — e então você furta o velo."
— Estou vendo — disse Emília — que nessa aventura dos Argonautas o verdadeiro herói não foi Jasão nem nenhum de seus companheiros. Foi Cupido...
— Quem é Cupido? — perguntou o viandante.
O Visconde explicou que Eros, o deus do Amor, iria chamar-se mais tarde Cupido, "porque todos estes deuses gregos de hoje vão mudar de nome; Zeus passará a ser Júpiter; Hera virará Juno; Palas passará a ser Minerva — e assim por diante. Até o meu amo Héracles passará a ser Hércules."
— Hum!... — exclamou o viandante como quem afinal compreende uma coisa. — Estou agora entendendo porque vocês o tratam de Hércules...
— Sim — disse o Visconde. — Meu amo é Héracles para vocês aqui desta Grécia Heróica. Nos nossos tempos modernos ele é Hércules, como Eros é Cupido... Continue lá a sua história.
O viandante continuou:
— Pois graças ao filtro que Medeia deu ao dragão é que o seu namorado conseguiu a pele do carneiro. O pobre dragão, pela primeira vez na vida, adormeceu com os dois olhos... Obtida a pele, o que aos Argonautas restava era fugirem dali com a maior rapidez — e lá zarpou o Argo com todas as velas soltas, levando a bordo Medeia.
— Fugiu com o namorado então?
— Fugiu e foram juntos para Iolcos, onde se casaram e ela realizou mágicas famosas.
— Conte uma — pediu Emília.
— A mais famosa de todas as mágicas de Medeia foi o "remoçamento" do velho Eson, pai de Jasão. Medeia picou o velho em pedacinhos e ferveu tudo numa grande caldeira. E do vapor fez que brotasse um Eson vivinho e moço...
— Que maravilha! — exclamou a ex-boneca. — Imagine se pilhássemos Medeia lá no sítio para picar e ferver Dona Benta e tia Nastácia... Que lindo não seria Dona Benta aí com vinte anos e tia Nastácía uma mucama toda requebrada de dezenove... E que mais houve com Medeia?
— Ah, nem queira saber!... Não houve o que ela não fizesse, inclusive dar cabo de Pélias, tio de Jasão, que havia ocupado o trono do velho Eson. Medeia usou duma engenhosa esperteza: convenceu as filhas de Pélias de que também podiam remoçar o pai por aquele processo da fervura na caldeira. As moças que o picassem e pusessem o picadinho numa caldeira; ela Medeia se encarregaria de fazê-lo renascer jovem e bonito. As bobas assim fizeram: mataram e picaram o pai e ferveram tudo na caldeira. Mas quando chegou a hora de reviver aquele picadinho, Medeia deu uma grande risada... O que ela queria era ver o Rei Pélias morto para que o seu esposo Jasão ocupasse o trono...
— Que danada! — exclamou Emília.
— E deu certo a patifaria?
— Falhou, porque antes de Jasão pegar o trono, um irmão de Pélias, de nome Acasto, pegou-o primeiro... e Medeia e o marido tiveram de fugir para Corinto. Mas se eu for contar toda a história de Medeia, não acabo mais. Era mesmo uma danada, como disse esta menininha.
— E os Argonautas? Volte à história dos Argonautas — pediu Pedrinho.
— Ah, os Argonautas ainda fizeram mais que Medeia, em suas famosas viagens do Argo. Mas não vou contar nada disso. Contei o que contei unicamente para mostrar quem eram esses famosos aventureiros, entre os quais figurava o nosso Augias, rei da Êlide — o homem do esterco.
Nesse ponto da história apareceram Hércules e Meioameio que tinham saído juntos para a caça ao almoço. Vinham vindo com um novilho — e o almoço daquele dia foi novilho ao espeto.
Hércules continuava preocupado com a incumbência que lhe dera Euristeu: limpar as cavalariças de Augias. Como fazer para a realização de semelhante coisa? E, cansado de pensar naquilo, pediu a opinião dos pica-pauzinhos.
— Que acha do meu caso, Emília? — perguntou à ex-boneca.
— Ainda não acho nada, Lelé. Estou ruminando...
— E você, escudeiro? — perguntou ao Visconde.
O sabuguinho expôs a sua teoria dos gases venenosos, que fatalmente escapariam dos estábulos quando tamanha massa de esterco fosse removida — e Hércule arregalou os olhos. Achou muito propósito naquilo.
— E você, oficial? — perguntou depois a Pedrinho.
Pedrinho também estava com medo das emanações mefíticas do esterco e andava a pensar num modo de remover de longe aquele guano. Assim se evitaria a aspiração dos gases.
— Tudo depende da situação das cavalariças — respondeu o menino. Se, por exemplo, houver um rio perto, que corra em nível mais alto que o das cavalariças, há um meio...
— Qual? — perguntou o herói, ansioso.
— Desviar o curso desse rio, de modo que ele jorre para dentro dos estábulos e leve para longe a estercaria toda...
O rosto de Hércules iluminou-se. Estava ali uma idéia realmente maravilhosa. Sim, jogando um rio para cima do esterco o caso se resolvia perfeitamente. E mais uma vez o herói assombrou-se da extraordinária inteligência daquele pica-pauzinho. Mas tinha que ver. Tinha que falar com Augias, obter dele autorização para a limpeza e depois examinar os arredores a fim de descobrir um rio de nível mais alto. E a debaterem o assunto lá prosseguiram na viagem rumo à Élide, depois de comido inteirinho o novilho assado.
Na manhã do outro dia entraram nas terras de Augias. Já de longe viram o seu palácio, e mais adiante as tais cavalariças. Oh, eram imensas! Davam para conter mais de mil cavalos. Pelos campos vizinhos pastava uma cavalhada solta que não tinha fim. Não havia dúvida: aquele Augias devia ser o maior ladrão de cavalos da Grécia Heróica.

O Rei Augias

Chegados à capital, Hércules mandou que os pica-pauzinhos o esperassem em certo ponto fora da cidade e foi sozinho falar com o rei. Encontrou-o examinando um novo lote de lindos cavalos recebidos naquele momento.
— Majestade — disse Hércules reverentemente — aqui estou em trânsito e desejava fazer uma visita às famosas cavalariças de que tanto se fala na Grécia inteira.
Augias tinha orgulho de suas cavalariças e gostava de mostrá-las aos visitantes. "Pois não" — respondeu — e foi ele mesmo mostrá-las a Hércules.
Imensas! Davam para abrigar mais de mil, talvez dois mil cavalos, e Hércules notou que a camada de esterco era não só espessíssima como dura como um chão de terra batida. E abordou o assunto:
— Majestade, porque não faz nestas cavalariças uma limpeza em regra? Tanto esterco assim acumulado não pode fazer bem aos animais.
— Sim, já pensei — mas limpá-las como? Meus homens têm medo de mexer nisso — medo de envenenamento. E noto que meus cavalos já andam a ressentir-se. Tenho de limpá-las, sim, mas como?
Hércules correu os olhos pelas redondezas e perguntou como quem não quer:
— Majestade, não há aqui por perto algum rio?
O rei estranhou a pergunta, mas respondeu que sim — que passavam ali por perto dois rios, o Alfeu e o Peneu. Hércules então animou-se e disse:
— Pois, Majestade, proponho-me a limpar completamente estas cavalariças, sob uma condição...
— Qual?
— Pagar-me o serviço com dez por cento da cavalhada.
Augias segurou a barba e ficou pensando — ficou pensando num meio de tratar o serviço por aquele preço e depois passar a perna no herói. E piscando o olho respondeu:
— Pois aceito o negócio. Você me limpa as cavalariças e em pagamento recebe a décima parte dos meus animais.
Hércules, porém, sabia que os reis não são criaturas merecedoras de muita confiança e exigiu uma testemunha para maior garantia do contrato. E como estivesse presente o jovem Fileu, filho de Augias, pediu-lhe que testemunhasse o ajuste. Fileu concordou. Ficou como testemunha e fiador do pai.
— Pois muito bem — disse Hércules. — Amanhã começarei o serviço — e, despedindo-se de Augias, voltou para o lugar onde havia deixado os pica-pauzinhos.
— Pronto! — disse a Pedrinho. — Já contratei o serviço da limpeza e amanhã tenho de meter mãos à obra.
— E indagou da existência do rio?
— Sim, existem dois, o Alfeu e o Peneu.
— De nível mais alto que as cavalariças?
— Imagino que sim, mas não sei. Temos que verificar isso — e de ordem ao escudeiro Sabugosa para tirar a limpo aquele ponto.
O Visconde era um sábio que sabia tudo, inclusive medir o nível dum lugar em relação a outro, como fazem os engenheiros. Pediu a Pedrinho que o pusesse sobre o lombo de Meioameio e lá se foi no galope. Uma hora depois voltava com boas notícias.
— Fiz os cálculos necessários — disse ele — e meu amo pode ficar certo de que os dois rios correm três metros acima do nível das cavalariças.
— Como o verificou? — quis saber o herói.
— Por meio de cálculos geométricos e trigonométricos —respondeu o sabugo científico, deixando o herói na mesma. O pobre Hércules nem sequer desconfiava da existência da Geometria e da Trigonometria.
— Mas — continuou o Visconde — medi o volume das águas dos rios e verifiquei que só juntando os dois poderemos ter o enxurro necessário para remover a estercaria toda.
Juntar no mesmo leito as águas dos dois rios era coisa muito simples para um "massa bruta" como Hércules, porque dependia apenas de força física. Mas... e se depois de juntas as duas águas a torrente resultante corresse noutro rumo que não no das cavalariças?
— Também estudei esse ponto — disse o Visconde. — A topografia do terreno nos favorece. Se as águas forem encaminhadas para tal e tal rumo, entrarão por uma garganta que vai despejar a jusante das cavalariças.
Hércules tonteou com aquele "jusante" de engenheiro... Mas entendeu mais ou menos. Se era assim, então estava o caso resolvido. Com as águas do Alfeu reunidas às do Peneu obtinha ele um volume torrencial com a força suficiente para arrastar toda aquela estercaria — e tratou de ir realizar o trabalho da junção das águas.
Enquanto isso, lá no palácio o Rei Augias esfregava as mãos, contentíssimo. "Se ele executar a tremenda empreitada, eu resolvo o grande problema que tanto me preocupa; mas isso de pagar o serviço com a décima parte de meus animais me parece muita coisa..." E ficou a refletir no meio de lograr o herói. Nesse momento entrou na sala do trono um intrigante de nome Lepreu, o qual disse: "Já descobri tudo, Augias. Héracles veio cá por instigação do Rei Euristeu..."
— Por instigação de Euristeu? — repetiu Augias. — Hum!... Isto tem água no bico... — e deu uma risada gostosa, como quem acaba de descobrir a solução dum problema.
— De que está a rir-se? — perguntou Lepreu.
— Uma boa idéia que me veio — disse Augias, mas calou-se, não revelou o seu pensamento.
No dia seguinte ao meio-dia já os trabalhos de escavação estavam prontos; só faltava romper uma barreira para que os dois rios se juntassem. Os pica-pauzinhos foram para junto do herói, a fim de assistirem à junção das águas. Chegada a hora, Emília contou: UM... DOIS e... três! Na voz de Três, Hércules pregou um tremendo pontapé na barreira. A terra voou longe e as águas do Alfeu e do Peneu se juntaram com grande fragor. E escachoando numa espumarada cor de terra vermelha, rolaram em torrente pela garganta que ia ter às cavalariças.
Nesse momento Pedrinho teve uma idéia de primeira ordem.
— Hércules, Hércules! — gritou ele. — Você esqueceu-se duma coisa: arrombar as paredes das cavalariças na face em que a água vai bater. Se não fizer isso, a enxurrada passa dos lados e todo o seu esforço estará perdido.
Hércules viu que era mesmo e foi voando para as cavalariças. Tinha de arrombar a parede antes que o enxurro chegasse — coisa muito simples, pois que só exigia força. Com meia dúzia de pontapés demoliu as paredes. Logo depois a torrente de lama chegou e foi enveredando pelo rombo aberto. Os cavalos presos lá dentro fugiram espavoridos, enquanto a água ia arrancando enormes placas de estercaria velha, revolvendo aquilo e arrastando tudo para longe.
Uma hora depois não havia naqueles estábulos nem cheiro da imensa porcaria acumulada. Hércules então tratou de barrar as águas reunidas e fazê-las novamente correr pelos velhos leitos do Alfeu e do Peneu.
Pronto! Estava realizado mais um dos famosos Trabalhos de Hércules: a limpeza das cavalariças de Augias. Só lhe restava agora ir ter com o rei e cobrar o preço da empreitada.
Hércules foi procurá-lo.
— Pronto, Majestade! As vossas cavalariças acham-se mais limpas que o chão deste palácio.
Augias estava contentissimo daquilo, mas como fosse um grande patife não tinha a menor idéia de cumprir o trato. E veio com a desculpa mais indecente do mundo.
— Sim — disse ele. — Reconheço que o trabalho de limpeza foi realizado de maneira perfeita, e em paga desse serviço quero ter o gosto de oferecer ao amigo Hércules um excelente cavalo de sela.
— Um cavalo de sela? — repetiu o herói, atônito. — Como isso? Nosso trato foi o pagamento do décimo da cavalhada. Augias riu-se e negou com o maior cinismo.
— Não me lembro de ter feito semelhante acordo...
Eileu, o filho de Augias, estava presente. Era um moço honesto, que não havia puxado o mau caráter do pai. Ao ouvir aquilo, adiantou-se e disse:
— Perdão, meu pai! Fui testemunha do trato. Meu pai prometeu a Héracles, em troca da limpeza das cavalariças a décima parte da cavalhada.
Augias mordeu os beiços, danado com a intervenção daquele "mau" filho, e agarrou-se a outro pretexto.
— Sim, pode ser que eu haja feito essa combinação. Minha memória às vezes falha. Mas se acaso a fiz, não sou obrigado a cumpri-la, porque o Senhor Héracles veio cá limpar as minhas cavalariças por instigação do Rei Euristeu, e portanto não me sujeito às suas sugestões. Se quer um cavalo de sela em paga do serviço, escolha-o. Se não quer, então que se ponha daqui para fora imediatamente — e você também, Fileu! Um rapaz da sua idade, filho de rei, que não sabe agir politicamente nada merece de seu pai. Ponham-se daqui para fora os dois!
Hércules teve vontade de rachar aquele rei pelo meio, mas conteve-se. Disse apenas:
— Isto não ficará assim, Majestade. Dentro de alguns dias darei a minha resposta — e retirou-se.
Quando os pica-pauzinhos souberam do infame procedimento de Augias, encheram-se da mais nobre indignação. Emília quis aplicar um golpe faz-de-conta. Hércules sossegou-os.
— Qualquer coisa que fizermos para este rei, ele lançará contra nós os seus soldados, que são muitos, e estaremos perdidos. Minha resposta vai ser outra. Vou formar um grande exército, a cuja frente virei destronar Augias e colocar no trono o meu honesto amigo Fileu. — disse apoiando a mão sobre o ombro do moço.
Se fôssemos contar a história inteira da formação do exército de Hércules teríamos, só para isso, de encher mil páginas. Diremos apenas que Hércules formou o seu exército e veio atacar o Rei Augias. O Visconde foi encarregado do serviço da Intendência militar; Pedrinho assumiu o cargo de chefe do Estado-Maior — e Emília encarregou-se da espionagem. Mas apesar de toda aquela excelente organização, a luta acabou em desastre, e isso por causa dum acidente que ninguém esperou: a súbita doença de Hércules. Antes de travar-se a batalha o herói caiu de cama com uma febre altíssima.
O seu fiel escudeiro Sabugosa teve de largar a Intendência e vir tratar do bom amo. Tomou-lhe o pulso, examinou-lhe a língua.
— Está saburrosa, sim — disse o sabuguinho. — Os sintomas são de envenenamento. Meu amo envenenou-se com os gases mefíticos das cavalariças de Augias. Até eu senti dor de cabeça naquele dia.
— E eu, uma tontura — declarou Emília.
— E eu, uma azia de estômago — declarou Pedrinho.
— E eu, um calafrio — declarou Meioameio.
— Pois é — concluiu o Visconde. Tudo isso, efeitos dos gases letais daquela infame esterqueira. Mas como estávamos muito longe, respiramos apenas um mínimo de gás. Já meu amo teve de aproximar-se para arrombar as paredes e foi então que se envenenou.
— E por que só agora se manifestaram os efeitos dos gases? — interpelou Pedrinho.
— Porque num organismo forte como o de meu amo um veneno leva semanas para agir. As defesas orgânicas dos seres hercúleos são também hercúleas.
Meioameio estava de boca aberta diante da ciência do sabuguinho.
Aquela inoportuna doença de Hércules foi um desastre, porque o exército se viu privado de seu grande chefe e foi facilmente derrotado pelas forças de Augias.
Hércules teve de fugir e ficar oculto num bosque durante toda a doença. Como se debateu no incêndio da febre! Como delirou!... E teria morrido, se não fosse o acerto das drogas que o Visconde lhe deu a beber, preparadas com ervas dali mesmo — mentruz-de-sapo, digitalis, beladona e outras.

Segunda expedição de Hércules

Doze dias durou a doença de Hércules. No décimo terceiro a febre começou a ceder e o Visconde disse:
— Meu amo está salvo!
O regozijo foi imenso. Meioameio saiu no galope pelos campos vizinhos, a corcovear, a dar coices para o ar, a espojar-se na relva, feliz como um potrinho novo. Durante os doze dias da doença do herói, Meioameio não arredara pé ali de sua cama de folhas secas.
Pedrinho foi quem ouviu as primeiras palavras de Hércules já salvo do perigo.
— Onde estou eu? — perguntou o convalescente. — Que houve? — E ao saber que o seu exército fora destroçado e ele estava oculto numa floresta, chorou de paixão. O Visconde deu-lhe um chazinho de erva-cidreira para acalmá-lo. Hércules caiu em sonolência profunda. No dia seguinte pulou da cama, já completamente bom.
— E agora? — perguntou Emília.
— Agora, figurinha, agora tenho de levantar outro exército e fazer com o Rei Augias o que fiz com a parede de sua cavalariça; mandá-lo para o beleléu com um bom pontapé.
Hércules havia aprendido com a Emília a palavra "beleléu" e volta e meia aplicava-a.
A organização do novo exército foi fácil e rápida, porque já tinham a experiência do primeiro. O Visconde voltou a dirigir o Serviço de Intendência e Pedrinho passou de chefe do Estado-Maior a Ajudante de Ordens do General Hércules.
— E que aconteceu?
— Ah, aconteceu que o exército de Augias levou a maior surra de que há memória na Grécia Antiga. Augias foi arrancado de seu trono e jogado pela janela como se fosse um caco de telha. Caiu a duzentos metros de distância, espatifando-se todo.
Depois da tremenda vitória, o herói indagou do paradeiro de seu amigo o jovem Fileu.
— Está na Dulíquia — informaram-no.
Hércules chamou Meioameio e disse:
— Vá voando à Dulíquia e traga-me cá Fileu.
— Onde é a Dulíquia? — perguntou o centaurinho.
— Não sei — berrou Hércules. — Pergunte. Vá num pé e volte noutro.
Meioameio saiu com velocidade dum vendaval. Duas horas depois voltava coberto de suor espumarento, mas com Fileu no lombo. Hércules abraçou-o e disse:
— Augias está morto e seu exército derrotado. O novo rei é você — e fincou-o no trono.
Depois disse ao escudeiro:.
— Avise aos povos da Élide que o novo rei é Fileu.
O Visconde chegou à janela, pediu a Pedrinho que o erguesse no ar, e com sua voz de milho gritou para a multidão aglomerada defronte:
— Rei morto, rei posto! Viva Sua Majestade o Rei Fileu!
— Viva! Viva! — aclamou a multidão com o maior entusiasmo, porque ninguém na Élide gostava de Augias.
E assim terminou a segunda expedição de Hércules.
— Bom. E agora? — perguntou Pedrinho depois de tudo terminado.
— Agora temos de voltar a Micenas.
Preciso dar conta a Euristeu da realização de mais este Trabalho.
Emília, que andava "por aqui" com o tal Euristeu, desabafou.
— Por que não vai lá e não faz com ele o mesmo que fez com Augias?
—Impossível, figurinha! Euristeu é protegido de Hera...
Foi nesse instante que o Visconde de Sabugosa deu o primeiro sinal positivo de loucura. Estava sentadinho por ali ouvindo a conversa dos outros, de cartola na cabeça, como sempre. Aquela cartola fazia parte do Visconde, não era como o chapéu comum dos homens que é posto na cabeça e tirado quando dentro de casa. O Visconde não tirava da cabeça a cartola nem nas igrejas. Também não cumprimentava a ninguém pelo sistema de "tirar o chapéu". Dizia só "Olá", fazendo um gestinho de adeus, ainda que o cumprimentado fosse o próprio Júpiter. Também comia e dormia de cartola na cabeça. Pois naquela tarde tudo mudou. Assim que da boca de Hércules saiu o nome da deusa Hera, o sabuguinho tirou da cabeça a cartola e jogou-a longe. Depois deu uma gargalhada histérica e resmungou: "Hera! Hera! Era uma vez uma vaca amarela que entrou por uma porta e saiu por outra. Quem quiser que conte outra..."
Todos estranharam aquilo — aqueles modos e aquelas palavras tão impróprias de um sábio. E mais ainda quando o Visconde segurou as palhinhas do pescoço, como se fossem barbas repartidas ao meio, e disse com ar satisfeito: "As armas e os barões assinalados.., barões e viscondes. Viscondes e condes de Monte Cristo. Condes de Monte Cristo e duques e marquesas, e comendadores, e coronéis e cabos-de-esquadra e eu... e eu... e eu. Bumba-meu-boi! Zubumba! Os Zombis... os Zombis... os Zombis..." e seus olhos pareciam querer saltar das órbitas.
Não havia a menor dúvida: o pobre Visconde de Sabugosa enlouquecera! Já de algum tempo vinha mostrando certos sinais de perturbação dos miolos, ma com intervalos de perfeita lucidez. Agora, porém, a incoerência de suas idéias já não deixava nenhuma dúvida. Louco... Louquíssimo...
A consternação foi geral. Hércules suspirou uma vez, e depois outra e outra. Pedrinho ficou profundamente apreensivo e Emília danou.
— Em vez de enlouquecer lá no sítio, onde temos todos os recursos, este estrepe vem enlouquecer justamente aqui, para nos atrapalhar a viagem! E para mim essa loucura é fingimento. Como sabe que todos os heróis acabam loucos, ou passam durante a vida por um período de loucura, está "bancando" o louco, para ficar igual a Hércules, a Rolando, a D. Quixote...
Pedrinho ameaçou-a de um beliscão se continuasse a fazer tão má idéia do pobre sabuguinho.
— Não há nada na vida do Visconde que justifique semelhante hipótese, Emília. O Visconde sempre foi honestíssimo, incapaz duma mentira...
— Mentiu sim — berrou Emília — naquela vez do pau-falante!
— Mentiu à força, coitadinho. Você obrigou-o a mentir. Espontaneamente o Visconde jamais mentiu nem uma isca de mentira em toda a sua existência. Para mim ele é o modelo dos sabugos.
— Mas isso não é razão para vir nos atrapalhar com uma loucura tão fora de propósito — insistiu Emília. — Quer ficar louco? Vá ficar louco na casa de sua sogra...
O Visconde não dava o menor tento ao que dele diziam. Continuava a pronunciar palavras sem nexo, quase sempre científicas: "A metempsicose tem suas raízes na Índia... A sobrevivência do mais forte... Hormônios... Fava de Santo Inácio..." isso em meio a uma série de gargalhadas histéricas e arrepiantes. Depois, ah, depois fez tal qual D. Quixote quando o famoso herói da Mancha se despediu de Sancho para ficar de retiro e penitênciana na montanha. D. Quixote despediu-se de Sancho e pôs-se a virar cambalhotas, em fraldas de camisa... Pois o Visconde fez a mesma coisa; deu uma série de cambalhotas e ficou a fazerexperiência de andar com as mãos no chão e os pés no ar...
Nesse ponto Pedrinho não reteve as lágrimas — chorou, e Hércules desviou o rosto para que não vissem a lágrima que também lhe veio. Mas Emília, nada! Nada de comover-se. Estava a rir-se ironicamente e a caçoar do pobrezinho.
— Cambalhotas mais feias nunca vi. Um verdadeiro sábio não enlouquece desse jeito tão bobo. Se não fossem as suas defesas orgânicas (Pedrinho e Hércules), eu o agarrava agora e depenava...
Ao ouvir aquele "depenava", o Visconde interrompeu as cabriolas e pôs-se a tremer como geléia. Era o antigo pavor que mesmo na demência reaparecia: o velho medo de ser "depenado" de suas pernas e seus braços. Tanto Emília o ameaçou com isso, desde os começos da vida do Visconde, que o terror ficou incrustado em seu subconsciente — e agora, na loucura, manifestava-se naquele tremor. Depois o coitadinho caiu de joelhos, começou a rezar e a fazer pelo-sinais.

O louco

— Pronto! — exclamou Emília. Agora é que está perdido de uma vez. Dona Benta diz que as loucuras religiosas são incuráveis.
O Visconde rezava num murmúrio imperceptível. Pedrinho aproximou-se para ouvir. Eram palavras incoerentes de louco varrido: "Fava de Santo Inácio... Erva de Santa Maria... Xarope de São João... Melão-de-são-caetano..."
Emília teve uma idéia.
— Esperem!... Esperem!... Já sei... Ele está nos sugerindo uma coisa: que há remédios no mundo e que se lhe derem um bom remédio talvez o curem.
Pedrinho achou razoável aquilo.
— Sim. Pode ser. Mas que remédio podemos dar ao Visconde? De medicina eu não entendo nada.
— Lelé há de entender alguma coisa. Pergunte-lhe.
Pedrinho perguntou a Hércules seentendia de remédios.
— Não, mas sei onde mora um homem que é o mais sabido em doenças e curas de toda a Grécia.
— Quem é?
— O grande Esculápio, o herói da medicina.
— E onde poderemos encontrá-lo?
— Esculápio é um filho de Apolo que foi educado pelo meu amigo Quiron, na cidade de Epidauro. Tudo quanto Quiron sabia da arte de curar, transmitiu-o ao moço — e Esculápio revelou-se um desses alunos que ficam sabendo mais que os mestres. No tempo da nossa expedição para a conquista do Pelego de Ouro, o médico do Argo era ele, e durante toda a campanha foi quem nos curou todas as feridas e males. E sei que sua ciência nunca parou de crescer. Já no tempo do Argo conseguia ressuscitar mortos...
— Ressuscitar mortos? — repetiu Pedrinho com assombro.
— Sim — reafirmou Hércules. — Diante de meus olhos ressuscitou vários companheiros, como Licurgo, Tíndaro, Glauco, e mais tarde ressuscitou Hipólito, vítima da Rainha Pedra. Podemos dar um pulo até Epidauro para uma consulta a esse semideus da medicina. Se Esculápio não curar o meu escudeiro, quem o curará?
— Sim — repetiu Pedrinho. — Para quem ressuscita gente morta, curar uma loucurinha como a do Visconde deve ser brincadeira de criança. Mas como levar o pobre Visconde? Os loucos têm que andar amarrados ou em camisas-de-força.
— Ou em gaiolas! — berrou Emília. — Na loucura de D. Quixote o remédio foi uma boa jaula.
Pedrinho não achou fora de propósito a idéia. Se levassem o Visconde solto, isso iria exigir uma vigilância permanente, diurna e noturna — coisa muito cansativa. Mas uma boa gaiola dispensava tal vigilância — e assim pensando, foi cortar varas na floresta para construir a gaiola do louco.
Que momento doloroso o em que, depois de feita a gaiola, Pedrinho agarrou o Visconde e botou-o lá dentro como se fosse um passarinho!
Até Emília se comoveu. O pobre demente ficou de pé, agarrado às varetasda gaiola, gritando: "O binômio de Newton!... O quadrado da hipotenusa!... A cabefeira de Berenice..." — tudo coisas científicas. Os verdadeiros sábios só têm uma coisa dentro de si: ciência, e mais ciência.
— Ele sempre foi assim — disse Emília. — Daquela vez lá no sítio em que ficou com "obstrução de álgebra", o Doutor Caramujo abriu-lhe a barriga e tirou um mundo de letras, sinais e coisas algébricas. Foi então que vi que os sábios têm um verdadeiro recheio de ciência nas tripas...
Outra dificuldade se apresentou: como levar até Epidauro aquela gaiola com o louquinho dentro? Meioameio opôs dificuldades. Com a gaiola no lombo ele não poderia galopar, ficaria com os movimentos embaraçados. Quem resolveu o problema foi Hércules.
— Posso levá-lo a tiracolo, como levo a minha aljava de setas — e foi o que se fez. Pedrinho arranjou uma correia e com ela amarrou a gaiolinha na aljava do herói...
A viagem até Epidauro foi muito triste. Hércules já havia criado amor ao seu escudeiro, e os outros estavam apreensivos, com medo de que o louco não agüentasse a caminhada e falecesse no caminho. Emília resmungava como negra velha, apesar das advertências e ameaças de Pedrinho.
— Hei de contar a vovó essa sua maldade, Emília. Todos aqui, até Meioameio, estamos tristíssimos com o caso do Visconde — só você, em vez de tristeza, está que é só gana... Coisa mais feia nunca vi...
— Não nasci para enfermeira — disse a diabinha. — Acho que quem ficar doente ou louco deve ir para a casa de sua sogra.
— Mas o Visconde não quis ficardoente! — berrou Pedrinho. Ficou louco sem querer, em virtude dos gases venenosos.
— Por que não tapou o nariz, como eu?
— Esquecimento, Emília. Você não ignora que os verdadeiros sábios são muito distraídos. Ele esqueceu-se de tapar o nariz.
— Pois quem se esquece de tapar o nariz numa ocasião como aquela é bem merecedor de que os outros também o esqueçam à beira duma estrada...
E assim discutindo chegaram a Epidauro.
Hércules indagou da residência de Esculápio e recebeu uma desanimadora informação. E sabem dada por quem? Pelo famoso viandante que aparecia nos momentos mais oportunos. Quem o viu primeiro foi a Emília.
— Olhem quem ressuscitou: Minervino!...
— Onde?
— Lá vem ao nosso encontro...
Nada mais certo. O misterioso viandante aproximou-se e saudou-os como a velhos camaradas.
— Então, por aqui? Que querem em Epidauro?
Hércules contou a história da loucura de seu escudeiro e disse que tinham vindo consultar o famoso Esculápio, o semideus da medicina.
O viandante suspirou.
— Ai de nós!... — disse num gemido. — O grande mestre da arte de curar já não reside entre os gregos...
— Para onde foi?
O viandante apontou para o céu.
— Zeus o transformou numa das constelações da abóbada celeste...
— Por quê?
— Ah, meu amigo, Esculápio aperfeiçoou-se demais na sua ciência, e daí lhe veio a perdição. Não se limitava a só curar os doentes, também ressuscitava os mortos. E tantas ressurreições fez, que Plutão, o deus dos infernos, inquietou-se e foi queixar-se a Zeus: "Esculápio está baixando muito a população do meu reino. A barca de Caronte, transportadora dos mortos, já não encontra passageiros." Zeus franziu a testa. "Por quê?"- perguntou. E Plutão respondeu: "Porque Esculápio anda a ressuscitar todos os que morrem." Zeus refletiu consigo que aquilo era de fato uma grande irregularidade na ordem das coisas. Se Esculápio devolvia a vida aos mortos, então estava se tornando um deus como os do Olimpo — e, cheio de ciúmes, fulminou-o com um raio. Depois, reconhecendo o grande mérito do fulminado, transformou-o numa das constelações do céu.
— Em qual delas?
— Na constelação da Serpente.
— Por que da Serpente e não do Jacaré?
— Porque o Galo, o Cão e a Serpente haviam sido consagrados ao grande Esculápio.
— Mas por que o Galo, o Cão e a Serpente e não o Rato, o Coelho e o Hipopótamo? — insistiu Emília.
O viandante calmamente explicou.
— Porque o Galo e o Cão correspondem aos simbolos da Vigilância — e os bons médicos devem estar sempre vigilantes à cabeceira dos enfermos; e a Serpente porque é o símbolo da Prudência, qualidade indispensável aos médicos de peso.
Pedrinho observou que no mundo moderno a Serpente ainda era um dos simbolos da medicina.
Hércules ficou desapontadíssimo com aquele desfecho. Já que Esculápio não existia, que fazer do seu escudeirinho louco? Emília bateu na testa: sinal de idéia de primeira ordem.
— Já achei a solução! — berrou. — Esculápio não existe, mas existe Medeia.
Levemos-lhe o Visconde. Ela pica-o em pedacinhos, ferve tudo num caldeirão e do vapor extrai um Visconde novo, moço, lindo e sem loucura nenhuma.
Os outros entreolharam-se. Não havia dúvida que era uma solução.
— Mas onde encontraremos Medeia? — perguntou Pedrinho.
— Minervino há de saber — disseEmília — e olhou para o viandante.
O velho sorriu, como quem de fato sabia do paradeiro de Medeia. E Hércules também sorriu, mas de outra coisa; da estranha coincidência de também ter sido Medeia quem o curara da sua loucura.
— Sim — disse. — Foi Medeia quem me curou da loucura em Tebas, mas ignoro onde reside hoje essa grande mágica.
— Está numa cidade da Ática, casada com o velho Rei Egeu — informou o viandante.
— Pois então vamos para lá — determinou Hércules.

No palácio de Medeia

Foi outra viagem muito penosa e triste a que fizeram em procura da grande mágica. Afinal chegaram. Medeia reconheceu o herói que anos antes ela havia curado da loucura e perguntou-lhe ao que vinha.
Hércules respondeu:
— Andamos peregrinando em procura de quem restabeleça o meu escudeiro Sabugosa.
— Que tem ele?
— Loucura. Respirou os maus gases das cavalariças de Augias e ficou desarranjadinho da cabeça.
— Pois traga-o à minha presença respondeu Medeia — e assombrou-se quando Hércules abriu a gaiolinha a tiracolo e tirou de dentro o pobre sabugo científico.
— Isto?... Então é isto o escudeiro do grande herói nacional da Grécia?...
Muito custou a Hércules convencê-la de que se fisicamente o Visconde era aquilo só, em ciência era um sábio maior que todos os sábios de Atenas — e contou-lhe diversas passagenzinhas científicas do Visconde.
Medeia olhou para Hércules com certa desconfiança, como quem está pensando: "Será que eu não o curei bem curado? Será que está novamente de miolo mole?" E só depois do testemunho dos outros, de Pedrinho, Emília e até de Meioameio, é que deliberou consertar o Visconde.
— Dê-me isso aqui — disse ela — e pegando o Visconde arrancou-lhe os braços, as perninhas e a cabeça; depois picou o tronco inteiro com uma faca.
Lançou tudo numa caldeira e acendeu o fogo. Com alguns minutos de fervura o picadinho ficou no ponto. Um vapor grosso ergueu-se da caldeira. Medeia rezou as suas palavras mágicas — e com o maior assombro todos viram surgir um Visconde de Sabugosa novinho em folha, jovem e corado, sem a menor sombra de loucura nos miolos...
— Pronto! — disse ela entregando ao herói o escudeiro consertado. — Pode levá-lo, mas em paga quero uma coisa: e cochichou-lhe ao ouvido o que desejava em pagamento da cura do Visconde.
— Oh, impossível! — respondeu o herói.
— Impossível por quê? — teimou Medeia e Hércules puxou-a de banda para um prolongado cochicho.
Emília estranhou aquela conspiração em que volta e meia os dois olhavam para ela, mas nunca veio a descobrir a causa. Fora o seguinte. Medeia, como boa feiticeira, já havia descoberto o grande "segredo mágico" de Emília, e estava, pedindo ao herói que lhe desse como pagamento da cura do Visconde "aquela criatura tão maravilhosa." Mas que "segredo mágico" era esse que interessava até a uma grande feiticeira como Medeia? Simplesmente o "faz-de-conta" como qual Emília solucionava os casos mais difíceis. A história da aplicação do "faz-de-conta" na luta entre Hércules e o Javali do Erimanto já havia chegado até aos ouvidos de Medeia.
E foi uma felicidade que Emília não viesse a saber da proposta de Medeia, pois que do contrário havia de querer ficar no palácio da grande feiticeira para picar gente e ferver o picadinho no caldeirão mágico. Só divertimentos assim encantavam realmente a diabinha.
Enquanto Hércules conversava com Medeia, Emília e Pedrinho examinavam e reexaminavam o Visconde novo. "Vire de costas" — dizia um. — "Agora vá até lá" — dizia outro. — "Dê uma carreirinha num pé só" — mandou Emília — e o Visconde saiu pulando num pé só, como o saci, coisa que nunca havia feito em sua vida.
— Ótimo! — exclamou Emília. — Medeia nos deu um Visconde mais esperto e ágil que um macaco. Resta saber se é sábio como o Visconde velho. Pergunte-lhe qualquer coisa de ciência, Pedrinho.
E o menino perguntou:
— Quantos dedos tem uma mão-de-milho?
— Cinqüenta! — respondeu o belo viscondinho, e explicou: "Mão-de-milho" é uma medida de milho ainda em espigas. Cada mão-de-milho tem 25 pares de espigas. Logo, as espigas são os dedos da mão-de-milho. E como 25 paresde espigas são 50 espigas, a mão-de-milhotem 50 dedos!...
Pedrinho abriu a boca diante da esperteza do Visconde fervido — e teve vontade de pedir a Medeia que também o fervesse a ele em sua caldeira mágica.
Imaginem que Pedrinho não sairia!
Hércules não pôde pagar a Medeia o preço da cura do Visconde, teve de ficar devendo. Despediu-se dela e retirou-se segurando Emília pela mãozinha — de medo que no último instante a terrível feiticeira a raptasse.
Nada mais tinham a fazer ali. Era tempo de voltarem a Micenas a fim de que o herói desse conta a Euristeu da execução do Quinto Trabalho.
Puseram-se a caminho, e no dia seguinte tiveram mais uma vez a preciosa companhia do tal viandante. E o estranho é que ele apareceu justamente na horinha em que Emília desejou saber a história de Circe, a irmã de Medeia...
— Que pena Minervino não estar aqui para nos contar a história da Circe! — havia dito a ex-boneca — e como por encanto
Minervino apareceu. Uma coincidência assim era para espantar qualquer criatura — mas que é que espantava os pica-pauzinhos? Em vez de arregalar os olhos, Emília disse com a maior naturalidade:
— Conte-nos, Minervino, a história da Circe, irmã de Medeia...
E o viandante contou.
— Ah, Circe foi a mais famosa feiticeira de todos os tempos. Sua história é toda um romance...
— Pois leia-nos esse romance — pediu Emília.
Minervino limpou o pigarro e falou da Ilha de Ea onde morava Circe.
— Que maravilhosa ilha!—disse ele. — O palácio da feiticeira era um puro encanto. Impossível maior luxo. E lá dentro vivia Circe uma verdadeira vida de sonho, cantando, dançando ou fazendo preciosíssimos bordados no meio de numerosos leões, tigres, lobos e outros animais selvagens...
— Que história é essa? — exclamou Emília, intrigada. — Não estou entendendo...
— Circe era possuidora de uma beleza sem-par — explicou o viandante — de modo que vivia atraindo heróis para a sua ilha. Mas assim que eles desembarcavam, ela os tocava com a sua varinha mágica e os virava no que queria leões, tigres, lobos... Quando de volta da Guerra de Tróia o navio de Ulisses aportou naquela ilha, a curiosidade de muitos companheiros do herói fez que eles fossem espiar a famosa feiticeira — e Circe zás! transformou-os em porcos.
— Em porcos? Coitados...
— Sim, em porcos. Mas um que escapou da triste sina foi contar tudo a Ulisses. Este Ulisses era o verdadeiro símbolo da habilidade humana e da astúcia. Ao saber da sorte dos companheiros, refletiu, e tratou de aconselhar-se com Hermes, de quem era protegido. Hermes deu-lhe uma planta mágica que o defenderia de todos os sortilégios de Circe e instruiu-o de tudo quanto tinha a fazer. E lá vai Ulisses, muito fresco da vida, para o palácio de Circe. E tais e tantas fez com suas histórias e manhas que acabou enfeitiçando a feiticeira. A boba ficou perdidinha de amor por ele. Ora, quem ama nada nega ao objeto amado — e Ulisses conseguiu que a feiticeira "desvirasse" os seus companheiros transformados em porcos. Voltaram a ser homens outra vez. Ulisses passou todo um ano na ilha de Ea, enlevado na beleza de Circe; e depois, com muito jeitinho, conseguiu licença para dar um pulo até à Ilha de Ítaca...
— Eu sei! — disse Pedrinho. — Ítaca era a terra desse herói, onde morava a sua fiel esposa Penélope, sempre a fazer aquele bordado que não acabava mais.
— Por que não acabava mais? — quis saber Emília.
— Porque Penélope desmanchava de noite o pedaço feito de dia.
— E para que essa bobagem?
Pedrinho danou.
— Boba é você com tantas perguntas. Não sabe então a história de Penélope, que vovó contou? Penélope era a fiel esposa de Ulisses, o qual havia ido com todos aqueles heróis de Homero para a famosa Guerra de Tróia, a qual durou dez anos. Terminada a guerra, levou Ulisses outros dez anos em viagens por mar e aventuras maravilhosas, antes de chegar à sua Ilha de Ítaca...
— E a pobre da Penélope passou todo esse têmpo a esperá-lo? Mulher mais boba nunca vi!...
— Sim — disse o viandante. — Ela era um símbolo de fidelidade conjugal.
— A boba número um é o que ela era! — berrou Emília. —Vinte anos a esperar um marido que não fazia outra coisa senão namorar todas as Circes do caminho! Ah, se fosse eu...
— Sim, Penélope esperou-o com a maior paciência —prosseguiu Minervino — e para ganhar tempo e iludir os numerosos príncipes que a cortejavam...
— Por que a cortejavam?
— Todos queriam casar-se com ela a fim de ocupar o trono de Ulisses. E ela então...
— Já sei! — interrompeu Emília. — A palerma ficou a fazer o tal bordado que não acabava mais — a tal teia de Penélope. Agora me lembro que Dona Benta nos contou isso.
Minervino quis saber quem era essa tal Dona Benta de quem volta e meia os pica-pauzinhos falavam. Emília explicou:
— Ah, meu amigo, Dona Benta é uma Circe dos tempos modernos, uma feiticeira lá da nossa Ilha do Pica-pau Amarelo...
— Também transforma heróis em animais?
— Não! Faz o contrário. Transforma animais em seres racionais e lindos de alma. A varinha de condão de Dona Benta chama-se Bondade. Foi com essa varinha que ela me transformou de boneca de pano em gente, e transformou um rinoceronte da África no Quindim e fez do Burro Falante um verdadeiro filósofo — e Emília foi inventando mil coisas sobre Dona Benta, metade verdadeiras, metade fantasias.
Pedrinho admirou-se da imaginação da ex-boneca e cochichou para o Visconde: "Ela está melhor do que nunca! Parece até que foi fervida..."
E assim, nessa prosa encantada em que se misturavam feiticeiras e deuses, heróis e bichos, invençõezinhas da Emília e mitologias de Minervino, o bando de Hércules chegou a Micenas.

O Rei Antipático

O acampamento à beira do ribeirão estava exatinho como o haviam deixado.
O viandante gostou muito do Templo de Avia e das costeletas dos carneiros "achados" pelo centaurinho. Hércules foi espadanar-se na água do ribeirão, em mais um dos seus banhos hercúleos. Hercúleos, sim, tais e tantas eram as cabriolas que ele fazia na água. Parecia um boto.
Pedrinho, espiando a canastrinha da Emília, encontrou lá dentro várias novidades muito curiosas: um pacotinho de esterco das cavalariças de Augias, um vidrinho do caldo da fervura do Visconde e até uma mentira mitológica: um pedaço da teia de Penélope.
Depois do banho, Hércules foi a Micenas falar com "o antipatia", que era como a ex-boneca chamava Euristeu. Esse rei já estava no conhecimento de tudo relativo ao Quinto Trabalho de Hércules. Como o herói demorasse a aparecer, a notícia de sua grande proeza tinha chegado na frente. Na Grécia inteira não se falava em outra coisa senão na limpeza das cavalariças de Augias e na destruição desse mau rei pelo segundo exército do herói.
Emília aproveitou o ensejo para "apertar" o misterioso viandante e forçá-lo a contar quem era.
— A mim ninguém me engana — disse a ex-boneca. — Juro que você é um mensageiro do Olimpo, uma espécie de Hermes da deusa Minerva... O viandante abriu a boca. Não podia compreender como aquela criaturinha houvesse penetrado em seu segredo. — Como sabe? — perguntou.
— Ora como sei!... Sei porque adivinho as coisas. Isso de você aparecer justamente nos "momentos psicológicos" e de saber tanta coisa da história e da lenda deste país, isso me fez desconfiar...
Minervino acabou contando tudo.
— Sim — disse ele — sou um mensageiro de Palas, e fiquem sabendo que é graças a essa deusa que vocês ainda estão vivos...
— Por quê? — exclamou Pedrinho, assustado.
— Porque Hera já sabe tudo e está danada com o auxílio que vocês vêm dando a Hércules. A verdadeira razão do herói já ter realizado cinco trabalhos sem que nada de mal lhe acontecesse, está unicamente numa coisa: na ajuda que vocês lhe têm dado. O caso do Javali do Erimanto, por exemplo, deixou Hera impressionadíssima; e com meus próprios ouvidos pilhei-a dizendo a Hermes: "É aquela feiticeirinha que me está estragando o jogo. Possui um talismã mágico, o tal "faz-de-conta", com o qual já salvou Hércules de várias situações perigosissimas." Disse e encarregou Hermes de roubar dá Emília esse talismã...
— Que coisa! — exclamou Pedrinho, assustado. — Então o Olimpo já está a incomodar-se conosco?
— Se está!... Não discutem outro assunto. Até Zeus anda interessado em vocês, mas a favor. Hera está contra e por causa disso Palas me destacou para, sob a forma de viandante, guiar vocês nos passos perígosos e ir neutralizando ou desmanchando as armadilhas de Hera. O grande empenho dessa deusa é dar cabo de Emília.
Ao ouvir semelhante coisa, Emília avermelhou de cólera e desabafou:
— Forte bisca!
O Visconde entrou no debate para adverti-la de uma coisa muito séria.
— Cuidado com a Nêmesis, Emília! — disse ele.
Só Minervino entendeu o Visconde, e lhe deu razão, dizendo:
— Sim, Nêmesis é a divindade da justiça e é também a divindade que castiga os culpados da hybris.
— Hybris? — repetiu Pedrinho.
— Hybris é o pecado da "insolência na prosperidade." Quando uma pessoa fica muito importante e começa a desprezar os outros, e a orgulhar-se muito de seus dons, comete o pecado da hybris — e lá vem Nêmesis castigá-la, abater-lhe o orgulho. Emília anda orgulhosa demais, gabando-se demais. Isso é hybris. E se é hybris, da que tome cuidado coma deusa Nêmesis!... — E não está aqui você para proteger-me contra tudo por ordem de Minerva?
— Estou, sim, mas meus poderes não são ilimitados. Se você passar da conta, que poderei fazer? Nêmesis é poderosíssima.
Emília encolheu-se, um tanto amedrontada. Momentos depois Pedrinho descobriu-a queimando umas ervas-secas em cima duma pedra. "Que é isso?" perguntou-lhe. E a diabinha: "É um altar da grande deusa Hera, à qual estou oferecendo um sacrifício de plantas aromáticas."
Pedrinho piscou para o mensageiro de Palas.
Lá no palácio de Euristeu, Hércules nem pôde falar. Assim que abriu a boca para dar conta da realização do QuintoTrabalho, "o antipatia" o interrompeu com um gesto.
— Já sei de tudo — e estou muito descontente com o desfecho desse último Trabalho. Minha ordem foi apenas para que limpasse as cavalariças de Augias, não para que o expelisse do trono. Espero que daqui por diante faça o que mando e não se exceda em façanhas não encomendadas.
— Assim será, Majestade — respondeu o herói humildemente. — E agora?
Euristeu já havia combinado com Eumolpo o novo Trabalho a impor a Hércules, um Trabalho muito mais perigoso que os cinco primeiros: a destruição das ferocíssimas aves do Lago de Estinfale.
— O novo trabalho que hei por bem impor-te, Hércules —disse com a maior solenidade Euristeu — é ires a Estinfale destruir os avejões de penas de bronze. É só — e fez gesto de fim de audiência.'
Hércules nada sabia de tais aves, mas não deixou de ficar apreensivo. Se Euristeu o mandava atacá-las, então é que não eram aves comuns. E se não eram aves comuns, então como seriam?
De volta ao acampamento, Pedrinho correu-lhe ao encontro.
— E agora, Hércules?
O herói respondeu:
— Tenho de voltar à Arcádia para destruir as aves do pântano de Estinfale...
— Que aves são essas?
— Não sei...
Hércules nada sabia de tais aves, mas Minervino devia saber. Que não sabia o misterioso mensageiro? Pedrinho foiconsultá-lo.
— Amigo, que sabe das aves do Lago Estinfale? Euristeu acaba de dar ordens a Hércules para ir destruí-las.
Minervino empalideceu.
— As aves do Lago Estinfale? Oh, sei... São aves monstruosas e invencíveis por causa do número e das penas...
— Das penas? — repetiu Pedrinho sementender.
— Sim, possuem penas de bronze, penas enormes, pesadíssimas e cortantes como facas. Essas aves só se alimentam de carne humana, dos passantes que transitam por perto do lago. De grande distância arremessam tais penas com pontaria segura — e ai do viandante por elas alcançado!... Na minha opinião este Trabalho é muitíssimo mais difícil e perigoso que os outros.
— Por quê?
— Por causa do número de aves — mais de mil. Imagine todas elas arremessando contra o herói suas venenosas penas de bronze. Basta que uma acerte...
— Mas de longe Hércules poderá matá-las com suas flechas.
Minervino sorriu.
— Hércules é um e elas são mil. Para cada flecha que o herói lance, elas lançam mil penas afiadas. De que maneira poderá ele resistir? Acho o caso muito sério e vou aconselhar Hércules a nada fazer antes que eu discuta no Olimpo o assunto. Pedrinho ficou seriamente apreensivo. Sim, aquele Trabalho era muito diferente dos outros. Até então Hércules tivera de enfrentar um inimigo único; agora tinha de enfrentar mil ao mesmo tempo. Tudo mudava de aspecto. E Pedrinho lembrou-se das formigas que apesar de tão minúsculas vencem pelo número.
Minervino deu a palavra de ordem:
— Combinemos uma coisa, vocês podem ir já para a Arcádia, mas nada façam sem ouvir-me. Vou consultar minha deusa e depois irei procurá-los.
— Onde?
— Nos arredores da cidade de Estinfale. Nada façam sem minhas instruções. Disse e afastou-se.


 

De "As cavalariças de Augias" para "Biblioteca"

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