Valdir Aguilera
 Físico e pesquisador

 

 

O touro de Creta

Monteiro Lobato


O Touro de Creta

O caso do touro de Creta foi conseqüência da briga entre um deus e um rei. Mas antes de o abordarmos, temos de ver para quem é a cartinha que o Visconde está escrevendo. Hércules havia pingado o ponto no seu sexto Trabalho e dera ordem de levantar acampamento. Enquanto Meioameio e Pedrinho cuidavam disso, Emília remexia em sua canastrinha e o Visconde "elaborava" uma carta.
– Para quem está escrevendo, Visconde? – perguntou a ex-boneca sem interromper a arrumação de seus guardados.
– Para Dona Benta – respondeu o sabuguinho.
Emília continuou a lidar com os seus bilongues ainda por uns vinte minutos – e o Visconde sempre trabalhando lá com a carta. De repente Emília desconfiou:
– Que cartinha tão comprida é essa, Visconde? – e correu para ver, O Visconde tapou-a com a cartola. Emília deu um peteleco na cartola e agarrou a carta. Não era para Dona Benta, não. Era para a Climene...
– Ah, malandro!... Escrevendo cartinha de amor, hein? – e pôs-se a ler enquanto o Visconde apanhava a cartola e a limpava com o cotovelo, muito vexado e desapontado.
Emília leu:
   "Idolatrada criança!
É com o coração despedaçado de mágoas que tomo da pena para traçar estas linhas. Tua imagem não me sai da imaginação. Em tudo te vejo, Climeninha. Olho para os olhos de Hércules e o que vejo são os teus olhos, Climeninha. Olho para aquelas florestas e o que vejo são os teus cabelos, Climeninha. Minha vida virou uma tristeza. Não acho graça em nada – nem na Emília...
Nesse ponto Emília interrompeu a leitura e encarou-o com olhinhos duros.
– Nem em mim, hein? Julga que ando fazendo graças para os estafermos acharem?... – e botou-lhe a língua. Depois continuou a ler:
"Hércules não pára, coitado. Tem agora de ir a Creta atrás dum touro hidrófobo. Hidrófobo quer dizer louco, isto é, louco propriamente não, porque "hidro" você bem sabe que é "água" no lindo idioma grego; e "phobos" é também outra linda palavra grega com significação de "horror". Hidrófobo: que tem horror à água. Mas lá no nosso mundo o povo ignorante chama "louco" ao que é "hidrófobo".
Emília interrompeu a leitura para observar que nas cartas de amor o galã não deve dar lições de língua.
– Pedantismo deste tamanho nunca vi, Senhor Visconde. A Climene é o que lá no mundo moderno chamamos uma "burrinha do campo". Bonita, sim, de rosto, mas crassa na ignorância... Crassa, crassa... Que é crasso, Visconde? Minervino disse ontem que Hércules é de uma "ignorância crassa".
O Visconde explicou que a palavra "crasso" vem do latim "crassus" – espesso, grosso, pesado. Ignorância crassa quer dizer ignorância grossa, cascuda. Emília continuou:
– Pois a Climene é assim: um mimo de nariz, mas crassa lá por dentro – e o Senhor Visconde com essas hidrofobias!...
Nem quero ler o resto – tome a carta. E ponha um P. S. meu, assim: "Emília manda dizer que entrou por uma porta e saiu por outra." Só isso.
– Por quê? – indagou o Visconde, desnorteado. – Que quer dizer com isso?
– Nada.
– Então por que me manda escrever?
– Para equilibrar, Visconde. Conheço aquela menina; Juro que ela vai pular por cima de todas as suas hidrofobias e gostar do meu P.S. Para uma boba daquelas a gente só deve escrever bobagens.
Outra coisa: como vai mandar essa carta?
– Pelo pirlimpimpim. Esfrego uma isca de pó no nariz dela e...
Emília arregalou os olhos, como fulminada por súbita idéia. Ficou uns instantes assim. Depois berrou, no maior entusiasmo:
– Que maravilha!... Parece incrível que eu já não houvesse tido essa idéia. Assim como o pirlimpimpim transporta gente, também poderá transportar coisas. É só esfregar uma isca de pó no nariz das coisas!...
E a cabeça de Emília começou a ferver com as novas possibilidades do transporte pirlimpimpinesco que ela via diante de si. Até o pomo... Até a pena de bronze...
Sim... podia "expedi-los" para o sítio de Dona Benta por meio do pirlimpimpim e desse modo cessavam as suas preocupações ali na Grécia.
– Visconde, Visconde! – gritou ela agarrando o sabuguinho e abraçando-o. – Sabe que inventou, sem querer, uma das maiores invenções modernas? Mande a carta da Climene já, e mande dentro uma pitadinha do pó para a resposta, com explicação sobre o modo de usar... E se nós recebermos a resposta da Climene, então fica provado que o Visconde de Sabugosa é o maior inventor de todos os tempos...
O Visconde ainda não havia terminado a carta a Climene, mas teve de mandá-la assim mesmo, incompleta e sem jeito, tamanha era a ânsia de Emília em verificar a realidade da grande invenção.
Hércules lá de longe gritou:
– Estamos na hora. Toca a partir!
Mas Emília discordou.
– Não, não herói!... Impossível partirmos hoje. Estou empenhada numa experiência formidável. Corra aqui.
Hércules aproximou-se de Emília.
– Que há?
   – Há isto – e Emília explicou-lhe a idéia do Visconde, de remeter uma carta para Estinfale pelo processo do pirlimpimpim.
Hércules não entendeu.
– Como?
Emília explicou:
– O pirlimpimpim age pelo nariz. A gente aspira o pó e pronto. O Visconde teve a idéia de esfregar uma isca de pirlimpimpim no nariz da carta. Se produzir efeito, se a carta fizer fiun e sumir no espaço e chegar direitinha ao endereço, então, então, então... – e Emília nem pôde concluir, de tão comovida que estava.
– Então, quê? – indagou Hércules, com toda a sua burrice de herói nacional.
Emília encarou-o com ar de dó.
– Que crasso você é, Lelé!... Pois não percebe que se isso acontecer estará descoberto um meio maravilhoso para o transporte das coisas? Se a carta for direitinha e chegar às mãos de Climene, e se a resposta de Climene também nos vier direitinha... – e Emília nem pôde concluir. Pôs-se a chorar. Choro de emoção. Choro de Madame Curie quando viu brilhar no escuro a primeira partícula de radium.
Hércules continuava com o seu ar pasmado. Emília danou.
– Pois não vê, homem de Deus, que se o pirlimpimpim levar uma carta pode levar tudo mais, até um elefante?
Hércules arregalou os olhos. Estava começando a compreender. Depois, aplicando o caso ao seu caso, disse:
– Sim... É mesmo!... Podemos até trazer o touro de Creta com uma boa pitada de pó!...
– Pois está claro! Podemos trazer o touro, podemos trazer até a Ilha de Creta inteira, com o labirinto e tudo. E isso será a maior das revoluções de todos os tempos! Só sinto uma coisa: que a idéia tenha sido do Visconde e não minha. Eu é que merecia ter tido essa idéia...
Pedrinho aproximou-se, e ao saber da grande idéia também vibrou.
– Meu Deus! – disse ele. – Se a coisa der certo, o mundo fica sendo nosso, Emília! Não haverá o que não possamos fazer.
Meioameio, que estivera cuidando dos preparativos da viagem, aproximou-se e disse ao herói:
– Pronto. Já arrumei tudo. Podemos partir.
– A viagem está adiada – respondeu Hércules. – Temos de aguardar a experiência do Visconde.
O sabuguinho tirou da cintura o canudo de pó e derramou na palma da mão uma isca. Depois, com muitas cautelas, esfregou o pirlimpimpim no nariz da cartinha, já galantemente sobrescritada:
Exma. Senhorita Climene, gentil pastorinha residente em ESTINFALE (na Arcádia)
Assim que a carta sentiu no nariz a ação do pó, espirrou o fiunnn e desapareceu.
Todos bateram palmas, inclusive o herói. A coisa ia indo otimamente. Restava apenas que viesse a resposta – e com que ânsia esperaram a resposta da Climene! Pedrinho duvidou.
– Não vem resposta nenhuma – disse ele. – Climene não sabe escrever; ela mesma me disse. São ignorantíssimos aqueles pastores da Arcádia.
– Mas tem uma amiguinha que sabe – gritou Emília – a Cloé, filha do chefe dos pastores.

Tudo deu certo!

O resto do dia foi passando na maior inquietação. Emília não tirava os olhos do céu, na esperança de ver uma cartinha cair de súbito ali no acampamento.
E havia apostas. "Aposto que ela vai cair aqui” – dizia um. "E eu aposto que ela não cai, fica pairante no ar como folha seca ao vento", – dizia outro. A ânsia era geral, e talvez mais em Hércules do que nos outros. Estava pensando no touro. Euristeu queria o touro vivo. Ora, era muito longe a tal Creta, separada do continente pelo mar, de modo que o problema de trazer um touro de Creta até Micenas, e ainda mais um touro louco, ocupava-lhe todos os pensamentos. Se a invençãozinha do Visconde resolvesse o problema, seria ouro sobre azul... Hércules chegou até a perder a fome. Quando à tarde o centaurinho assou os três carneiros do costume, o herói só comeu dois. Pela primeira vez sobrava comida.
O carro de Apolo ia descambando no horizonte quando a resposta de Climene chegou. Chegou como uma folha seca que o vento traz. Chegou, deu várias voltas no ar e foi cair bem junto aos pés do Visconde. Todos se precipitaram. Quem a agarrou foi Emília. Coitadinha!... Estava tão trêmula de emoção que nem pôde abrir a carta.
– Abra, Pedrinho.
Pedrinho abriu. Devia ser a letra da Cloé.

"Amiguinho Visconde:
Chegou sua carta! Como fiquei contente... Cloé a leu para mim. Sinto muito suas aflições. Cloé diz que a história da "hidrofobia" está certa. Aqui tudo na mesma. As aves do lago não voltaram. O assunto de todos ainda é o mesmo: as aves de penas de bronze. Cloé vai me ajudar a fazer como você diz: esfregar o pozinho no nariz desta resposta. Não contei a ninguém este caso – só a Cloé. De medo que me tomem como feiticeira. Adeus. Muitas lembranças ao Senhor Pedrinho e ao Senhor Hércules. Tenho saudades das galopadas que dei no lombo de Meioameio. Sua criada obrigada Climene"


Que delírio!... Emília pulava, dançava, dizia palavras sem sentido. O Visconde beijava a cartinha e apertava-a de encontro ao coração. Pedrinho sonhava mil sonhos cada qual mais louco, e Hércules sorria: estava resolvido o problema do transporte do touro louco de Creta até Micenas! Só Meioameio não deu demonstrações de entusiasmo. Sua inteligência não alcançava as tremendas conseqüências que da invenção do Visconde poderiam advir para o mundo.
Hércules, já de coração sossegado, foi comer o último carneiro, completando assim a ração normal de três. Em seguida deu ordem de partida. A viagem a Creta era longa. Não convinha perderem mais tempo.
Emília propôs que em vez de partirem a pé, como das outras vezes, partissem “a pó”.
– Sim, todos aspiramos uma pitada de pirlimpimpim e num fiunnn estamos em Creta.
Hércules tonteou com a idéia. Mas seria o pó suficientemente forte para levá-lo a ele, que pesava dez arrobas?
Pedrinho contou que até tia Nastácia já tinha ido à lua "a pó". Disse que para o pirlimpimpim um peso como do herói “era canja." Mesmo assim Hércules estava irresoluto. Quem o forçou a decidir-se foi a Emília.
– Nada mais fácil do que experimentar, Lelé. Se o pó não puder com você, nós vamos "a pó" e você vai "a pé". Experimentemos.
Hércules concordou.
Pedrinho tirou da cintura o seu canudo e pôs-se a calcular as doses e a distribuir as pitadas. Para Hércules deu quatro. Depois ensinou-lhe como fazer.
– Todos temos de aspirar o pirlimpimpim ao mesmo tempo, quando eu cantar três. Vem o fiunnn e pronto.
– E se vocês forem e eu ficar? – ainda objetou o herói. – Nesse caso, voltamos e seguiremos todos a pé.
Hércules aceitou essa solução. Pedrinho disse: "Pois então aprontem-se que vou cantar os números" – e começou: "Um... Dois... e Três!" Na voz de TRÊS, todos aspiraram o pó e o fiunnn soou violento.
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O primeiro a acordar em Creta foi Pedrinho. Abriu os olhos, tonto. Viu todos ali juntos, mas ainda desacordados. O segundo que abriu os olhos foi o Visconde. Os outros continuavam em estado de "choque", como dizia o sabugo.
– Será que dei pó demais? – refletiu Pedrinho e foi sacudir Emília. A ex-boneca arregalou os olhos, tontinha, tontinha. Depois Meioameio despertou. Só faltava Hércules.
O tremendo herói estava aplastado no chão, como morto. Os pica-pauzinhos o rodearam. Deram-lhe tapas no peito. De um rio perto trouxe Meioameio água nas mãos e jogou-lhe na cara. Emília espetou-o em vários pontos com um espinho. Nada. Nada de Hércules acordar!
– Será que lhe dei dose forte demais? – murmurou Pedrinho já meio inquieto. – Hércules nunca aspirou este pó. Quem sabe lhe fez mal ao coração e está morto?
O Visconde encostou o ouvido ao peito de Hércules para auscultá-lo. Sentiu o bater do coração..
– Vivinho está – gritou o sabugo, – mas o seu estado de choque é dos tremendos. Tudo com Hércules é enorme: o seu apetite, a sua força física, os seus sonos... Temos de esperar.
E esperaram. Mais de duas horas passaram ali ao lado do herói, à espera de que ele voltasse a si – e nada de Hércules voltar a si. A situação ia se tornando séria. Pedrinho arrependeu-se do que tinha feito. E se Hércules morresse? Nemesis era capaz de vir justar contas com eles...
Vendo as coisas nesse pé, Emília tomou uma resolução extrema. Ajoelhou-se, de mãos postas, e pediu com todo o fervor: "Palas, deusa linda, valei-nos nesta aflição! Mandai-nos socorro pelo vosso diligente mensageiro Minervino!"
O milagre operou-se: Minervino não tardou a aparecer! E apareceu já ciente de tudo e com o remédio na mão. Curvando-se sobre o herói adormecido, derramou-lhe na boca entreaberta várias gotas de filtro mágico. Foi a conta. O herói abriu um olho. Depois abriu o outro. Depois suspirou e por fim sentou-se.
– Onde estou eu? – foram suas primeiras palavras.
– Talvez na Ilha de Creta – respondeu Pedrinho. Certeza não tenho. Não há por aqui letreiros.
Mínervino confirmou a suposição. Estavam realmente na Ilha de Creta. E enquanto Hércules voltava totalmente a si, contou que lá do Olimpo a deusa Palas havia acompanhado tudo com o maior interesse, e vendo Hércules por tanto tempo sem sentidos, lhe tinha dado ordem de vir socorrê-lo.
– Estes atletas – disse Minervino têm em geral o coração hipertrofiado, de modo que drogas que para uma criatura do comum não fazem mal, para eles são muitas vezes venenos. Vocês agiram com grande imprudência. Desse modo ainda acabam liquidando com o grande herói nacional da Grécia...
– Gotas do que, essas que lhe pingou na boca? De elixir paregórico? – quis saber o Visconde.
– Os deuses do Olimpo não revelam aos mortais o segredo de seus filtros. Palas Atena deu-me este frasco sem dizer o que continha.
Emília tirou-lhe da mão o frasco para ver se trazia rótulo. Depois cheirou. Ficou na mesma. Os filtros de Palas eram realmente impenetráveis para as criaturas humanas.
Hércules já estava completamente restabelecido, e ao saber do longo desmaio e da intervenção da deusa alegrou-se. Evidentemente, Hera tentara destruí-lo, mas fora obstada pela sua protetora – e erguendo os olhos para o céu agradeceu com um olhar a preciosa intervenção de Palas.
Depois:
– Com que então é isto aqui a Ilha de Creta?
– Sim. Estamos em Creta – respondeu Minervino.
– E o touro?
– Ainda não mugiu – disse Emília mas não tarda. Sinto uma aura de loucura no ar.
Nem bem falou, e um mugido horrendo se fez ouvir ao longe. Hércules pôs-se em pé, já de clava em punho. Seus olhos chamejaram. Seus músculos se retesaram.
Mas Pedrinho advertiu-o de que tinha de levar o touro vivo. Nada, pois, de clava nem flechas.
– Sim – disse Hércules, recordando-se. – Euristeu exige que lhe leve o touro vivo...
Puseram-se a planejar a captura do touro. Pedrinho foi de opinião que o melhor meio era laçá-lo, como lá no mundo moderno fazem os vaqueiros do sertão. Hércules não tinha prática de laço. Teve de receber lições do menino.
– Mas antes de mais nada – disse precisamos trançar um laço – e explicou como se fazem os laços. "Toma-se um couro de boi e com uma faca bem afiada vai-se cortando nele um tento sem fim...”
– Que quer dizer tento sem fim? indagou Hércules.
– Tento sem fim é uma tira que a gente corta em forma de espiral, como quando descascamos laranja. Fica uma tira compridíssima. E precisamos de quatro couros para obter quatro tentos do mesmo tamanho. Depois é só trançá-los.
– Trançar de três eu sei – gritou Emília. – De quatro, não.
Pedrinho sabia trançar de quatro, e se Meioameio lhe obtivesse quatro couros de boi ele se encarregaria de tudo: de cortar os tentos e trançá-los.
O touro mugiu outra vez ao longe.
Hércules, nervoso, apertou novamente o punho da clava.
Pedrinho pediu a Meioameio que saísse de galope e só voltasse com quatro couros de boi; e explicou:
– Couros crus. Curtidos não servem.
E couros sem buracos de berne.
Minervino ignorava o que era berne, porque na Grécia não havia semelhante praga – e ficaram a conversar sobre bernes e carrapatos enquanto o centaurinho partia a galope por aqueles campos afora.
A Ilha de Creta era "bovinífera", como disse o Visconde, isto é, abundante em bois. Tudo ali era boi. O Minotauro era um boi-homem ou um homem-boi. E para Emília até o Rei Minos tinha jeito de ser um verdadeiro "boi real".


A pega do Touro

Minervino contou a história desse rei.
– Era filho de Europa – disse ele – e sobrinho de Cadmo...
– O que inventou o alfabeto?
– Sim, Cadmo goza a fama de ter sido o criador do alfabeto. Ele e Europa eram filhos de Agenor, um rei da Fenícia. Certo dia em que a linda Europa passeava com suas amigas pelas praias da Fenícia, eis que de súbito aparece um touro de maravilhosa beleza que vinha raptá-la. E de fato a raptou. Esse touro era o próprio Zeus metamorfoseado em touro.
Emília cochichou para Hércules que "metamorfose" era o mesmo que "virar" e citou um caso: "Eu, por exemplo, me metamorfoseei, da boneca de pano que era na gentinha que sou.
Minervino prosseguiu:
– O belo touro arrebata Europa lá na Fenícia e foge com ela para aqui. O Rei Minos não passa do produto desse rapto. Minos, Minos!... Um grande rei. É o legislador da ilha, foi quem a livrou dos piratas saqueadores e foi o aprisionador do Minotauro. Quando esse monstro surgiu e pôs-se a devastar a ilha, Minos incumbiu Dédalo da construção do famoso labirinto – e prendeu o Minotauro lá dentro.
Minervino ia contar mais coisas de Minos, quando Meioameio apareceu com os quatro couros encomendados. Jogou-os ao chão perto de Pedrinho. "Pronto!" Pedrinho examinou-os e achou-os ótimos. "Nem um buraquinho de berne. Vão dar uns tentos ótimos. E faca? Sem faca bem afiada, nem Hércules desdobra um couro em tentos."
– Preciso de uma faca! – berrou o menino, e todos ficaram a olhar uns para os outros. Quem salvou a situação foi a Emília.
–Faca não tenho em minha canastra, mas tenho aquela perna de tesoura que dei para o Sr. La Fontaine e ele felizmente não aceitou. Bem amoladinha, substitui qualquer faca. Veja minha perna de tesoura aí na canastra, Visconde!
Pedrinho, que era mestre em amolar, descobriu por ali uma laje bem lisa, na qual deixou a perna de tesoura afiada como navalha.
Hércules olhava, olhava. A diligência daquele menino o enchia de satisfação.
Depois começou Pedrinho a "desdobrar os couros em tentos." Suou, coitado, e teve de ser ajudado por Meioameio. Horas depois estavam prontos quatro tentos compridíssimos. Restava trançá-los – e Pedrinho "trançou de quatro" à vista de todos, para que todos aprendessem.
Hércules olhava, olhava.
Meioameio vinha revelando muita habilidade. Aprendia com rapidez incrível e desse modo confirmava aquelas idéias de Hércules sobre a educação. O dia inteiro passaram naquilo e também metade do dia seguinte. E afinal ficou pronto o laço, um formidável laço, porque Pedrinho cortara os tentos com um centímetro de largura.
– Experimente, Hércules. Veja se isto agüenta a pega de um touro.
Hércules experimentou e admirou-se da resistência daquela "corda de couro".
Estavam nisso quando sobreveio uma agitação. Gritaria ao longe. Passou um homem a correr. E depois mulheres e crianças, todas com ar espavorido.
Pedrinho correu a informar-se do que havia.
– O touro louco! O touro louco!... – era o que toda gente gritava, sem interromper a fuga. "O touro louco está devastando a nossa aldeia, destruindo nossas casas...”
– Por que o não matam? – indagou Pedrinho.
– Impossível!... – respondeu um dos homens. – Esse touro parece um raio. Investe como um corisco.
– Sabe que Héracles está aqui e veio especialmente para livrar a ilha?
Na voz de Héracles, o homem parou olhou para o menino, muito espantado. Não havia entre os helenos quem não conhecesse o grande herói – e se ele estava em Creta, razão já não havia para fugas. E o homem gritou para os outros, e num instante uma multidão inteira se reuniu em redor de Pedrinho. "Diz este menino que Héracles está aqui, vindo para pegar o touro." "Héracles? O filho de Zeus e Alcmena? Onde está ele?"
Pedrinho levou aquela multidão à presença do herói, e todos se assombraram. As caras iluminaram-se como lampiões que se acendem. Héracles ali!... Estavam salvos!...
Pedrinho tomou a palavra e disse:
– Povos de Creta! As vossas desgraças chegaram ao fim. O grande Hércules veio do continente com fim expresso de agarrar vivo esse touro que assola estas paragens. Já trançamos o laço de couro cru com que iremos laçá-lo. Interrompei a vossa fuga. Amanhã estareis reconstruindo os vossos lares. Bem sabeis que Héracles é infalível. Quem destruiu o leão da Nemeia? Ele. Quem matou a hidra de Lerna? Ele. Quem caçou o javali do Erimanto? Ele. Quem apanhou a corça de pés de bronze? Ele. Quem limpou as cavalariças de Augias? Ele. Quem afugentou do Estinfale aquelas aves antropófagas? Ele. Quem vai libertar a Ilha de Creta das devastações do touro louco? Ele...
A multidão rompeu em aplausos delirantes. Salvos! Salvos, afinal! ... Se Héracles estava ali, então nada mais tinham a temer... E as mulheres choravam e os homens dançavam num delírio de contentamento.
Súbito, no meio daquela festa, um mugido pavoroso. O monstro vinha vindo. Estabeleceu-se o pânico. As mulheres debandaram com as crianças e muitos homens fizeram o mesmo. Só os mais inteligentes ficaram ali junto de Héracles, pois estariam mil vezes mais seguros na companhia do herói invencível do que bobamente a correrem pelos campos.
Emília trepou a uma árvore. Seus olhinhos telescópicos faziam dela a mais preciosa das espias. E lá de cima "irradiava" informações.
– Estou vendo só a poeira do touro, bem longe ainda, mas nesta direção. Sim... É ele mesmo... Começo a distinguir a ponta dos chifres e agora toda a cabeça... O resto do corpo some-se dentro da nuvem de pó... Vem vindo do nosso lado... Quando encontra uma casinha, investe contra ela e com uma chifrada manda-a para o beleléu...
  
Pedrinho já havia entregue a Hércules o laço e dava-lhe as últimas instruções sobre o melhor modo de manejar a laçada. "Você dá várias voltas no ar, por cima da cabeça, e só arremessa quando o touro chegar a uns trinta passos de distância. A laçada tem que cair certinha sobre os chifres, isto é, tem que abarcar os chifres. E então você puxa com toda força – cerra a laçada. O resto – como ensinei: Você dá uma volta do laço num tronco de árvore e segura firme a ponta – e vai puxando, vai puxando, até forçar o touro a encostar os chifres no tronco.”
Pedrinho era mestre naquilo. Não faltava nunca aos rodeios anuais das fazendas vizinhas do sítio de Dona Benta e, escondido da vovó medrosa, aprendera a laçar garrotes, já bem taludos e até potros de um ano. Hércules, porém, nunca havia laçado coisa nenhuma, de modo que se sentia bastante atrapalhado e com medo de falhar. Que fiasco, se ali diante daquele povo ele erra o golpe e o touro escapa!
Emília continuava a "espicar", e agora "espicava" como um speaker de rádio quando a bola vai se aproximando do gol.
– Vem vindo... Vejo-lhe o corpo inteiro... Que touro, meu Deus!... Bate longe o Beethoven do Coronel Teodorico... Tem pêlo de zebu Guzerate... Encontrou um cupim... O cupim voou pelos ares... Chegou!... É hora, Lelé!... Drible e jogue o laço.
Hércules já estava girando no ar a laçada, à espera de que Pedrinho desse o sinal. Pedrinho deu o sinal:
– Agora!...
Hércules arremessou o laço, mas errou... A laçada colheu o touro pelas ancas, indo pegar um toco de pau que havia por ali. Sobreveio o pânico. Toda aquela gente debandou. Uns treparam na árvore de Emília. Outros sumiram-se no galope. Hércules largou do laço e apanhou a clava. Ia receber o touro em luta peito a peito. Ia fazer asneira – estragar tudo. Pedrinho interveio a tempo.
– Não, Hércules! Nada de clavas. Eu laço esse bicho – e veloz como um raio tomou o laço, deu a laçada e pôs-se a girá-la no ar.
Na fúria em que vinha, o touro varou por ali sem alcançar o herói, que se desviara agilmente, como fazem os toureiros na arena. O touro enganado e mais furioso ainda fez meia-volta e investiu novamente, mas dessa vez o arremesso da laçada colheu-o pelos chifres. Estava seguro. Pedrinho jogou a ponta do laço para Hércules e voou para cima da árvore de Emília. Hércules deu uma volta no tronco e fez como Pedrinho lhe havia ensinado. Desviava-se das marradas do touro e ia estirando o laço, de modo que o touro fosse ficando cada vez mais peado, mais próximo do tronco. E assim, encurta que encurta, breve o touro se viu com a testa colada ao tronco, isto é, com o tronco entalado entre seus chifres.
– Hurra! Hurra!... – berrou Emília. – Viva Pedrinho! Viva Hércules!...
O touro bufava, babava, urrava, fazia os mais tremendos esforços para arrancar-se dali – inutilmente. O laço de quatro tentos que Pedrinho trançara era dos que touro nenhum rebenta, e estava agüentando firme. O touro, afinal, exausto do esforço, aquietou-se.
– Já não tuge nem muge – berrou Emília. – Hurra! Hurra!...
Os cretenses que haviam fugido começaram a voltar, e logo ali em torno da árvore grande multidão se formou. Uns queriam linchar o touro. Outros diziam-lhe os mais feios nomes. Hércules interpôs-se.
– Não. Respeitemos o vencido. Tenho ordens para levá-lo a Micenas.
Uma dificuldade surgiu. Os que estavam empencados na árvore tinham medo de descer com aquele touro lá embaixo. Mas Emília deu o exemplo: atirou-se para os braços de Hércules. Os outros fizeram o mesmo. A alegria era imensa.
Todos falavam. Cada qual dizia uma asneira maior.
Hércules devia estar vexado, porque afinal de contas o herói da festa fora Pedrinho, não ele. Mas seu coração era generoso demais para dar abrigo a sentimentos inferiores. Em vez de sentir ciúmes, pegou o pequeno nos braços e disse:
– Eu queria ter um filho como você, Pedrinho! – e beijou-o.
Emília não se conteve: chorou de emoção; e até o Visconde, que era milho fervido, enxugou sua lagrimazinha...


O rastreamento

Depois que o povo se dispersou, Hércules disse:
– Muito bem. A primeira parte deste Trabalho está concluída. Temos agora cuidar do estômago e descansar... Amanhã partiremos para Micenas.
Meioameio saiu no galope do costume para prear os três carneiros, enquanto Emília ficou de cochichos com Minervino. Pedia-lhe qualquer coisa. Que coisa? O frasquinho vazio do filtro de Palas. Para quê? Para enchê-lo com a baba do touro louco. Seu museu lá no sítio ia enriquecer-se tremendamente com as maravilhas que lhe estavam a render os Trabalhos de Hércules.
Depois do jantar Pedrinho lembrou que o touro também tinha estômago. Era preciso alimentá-lo – e Meioameio foi arrancar uma grande braçada de capim, que jogou ao pé da árvore. Hércules deu uma folgazinha no laço para que o touro vencido pudesse comer.
Que noite foi aquela, passada sob as estrelas da ilha do Rei Minos, empanturrados de carneiro assado e glória! Não houve sonhos. Só sono e dos mais pesados. Sono tão pesado que ninguém percebeu nada do que se passou.
– Passou-se então qualquer coisa durante a noite?
– Sim. Quando lá no Olimpo a implacável Juno viu que o touro de Creta estava vencido e Hércules continuava incólume, a cólera lhe estufou o papo. E chamando um ratinho mandou-o que corresse até lá, roesse o laço e soltasse o touro. O ratinho obedeceu, de modo que pela manhã, quando Hércules acordou...
– Que é do touro?
Não havia touro nenhum no palanque...
Foi o maior desapontamento jamais ocorrido na Grécia. A vingativa Juno vencera. Todo o esforço do herói e de Pedrinho estava perdido. Tinham de capturar o monstro novamente.
Mas para onde se dirigira o touro? Pedrinho sabia "rastrear", isto é, seguir o rastro dos animais. Aprendera essa arte sutil com um velho campeiro do Coronel Teodorico. Rastrear em chão de terra desnuda é fácil, porque os rastros ficam impressos na lama ou pó – mas ali, naqueles campos revestidos de capim mimoso? Só mesmo um mestre rastreador e Pedrinho de novo assombrou o herói com a sua habilidade. Pelo acamado do capim e outros sinais que só os rastreadores percebem, pôde ir acompanhando o rumo levado pelo touro em fuga.
Trabalho de paciência e demorado, mas feliz. Pedrinho seguia na frente, rastreando, e os outros atrás. E assim foram indo, indo...
Súbito, um encontro imprevisto: Teseu, o grande herói! O encontro de Teseu e Hércules lembrou a Pedrinho o encontro do explorador Stanley com o Dr. Livingstone, lá no centro da África.
– Teseu da Ática? – disse Hércules estendendo a mão para Teseu.
– Héracles da Hélade? – disse Teseu, apertando a mão de Hércules.
Os dois heróis abraçaram-se e puseram-se a conversar. Hércules contou que viera à ilha por causa do famoso touro louco, e Teseu contou que estava ali para dar cabo do Minotauro.
– Do Minotauro? – exclamou Pedrinho com espanto. – Pois esse monstro ainda vive?
– Sim – respondeu o herói da Ática, e aqui estou para libertar esta ilha de tão horrendo monstro. Não tem conta o número de vítimas que já fez. O Rei Minos houve por bem encarregar-me da missão. Mas quem é este menino, Héracles?
Hércules fez as apresentações e contou da maravilhosa ação do seu "oficial de gabinete" Pedro Encerrabodes de Oliveira na captura do touro de Creta, o qual, infelizmente, graças ao camundongo de Hera, tinha conseguido libertar-se e fugir. Depois apresentou Emília de Rabicó, e o Visconde de Sabugosa, o seu "escudeiro."
Teseu achou graça.
– E aquele centaurinho que lá vem com carneiros ao ombro?
Hércules contou tôda a história da captura do jovem centauro e dos maravilhosos progressos que vinha fazendo.
Teseu estava simplesmente tonto com aquelas novidades; chegou a abrir a boca ao saber da aventura dos pica-pauzinhos com o Minotauro.
– Com que então viram vocês o Minotauro? Conseguiram entrar no labirinto e sair?
– Sim – respondeu Emília e desfiou toda a história, contou o truque dos carretéis de linha que usou, isto é, que foi desenrolando à medida que entrava, de modo a poderem guiar-se na saída.
Teseu não sabia nada de carretéis. Emília correu à sua famosa canastra e trouxe um.
– É isto. Linha número 50, J. P. Coat. Muito boa para pregar botões. Mede 200 jardas, ou 138 metros na medida decimal que usamos no mundo moderno. Tenho três carretéis. Posso ceder um...
Teseu aceitou.
Que dia aquele! Os pica-pauzinhos não cessavam de admirar o herói da Ática. Embora não tivesse a imponência de Hércules, Teseu revelava maior beleza. E que inteligência!...
Minervino desfiou-lhe a história, enquanto os dois heróis devoravam os carneiros.
– Ah, meus amiguinhos, vocês tiveram hoje a honra de travar conhecimento com o herói que quase eclipsou a glória de Héracles. Sua origem é real, pois é filho de Egeu, rei de Mégara. Foi Teseu quem conquistou a Ática – e como prêmio teve a cidade de Atenas, a glória da Hélade. Suas aventuras heróicas quase que se equiparam às de Hércules. A primeira foi a luta contra Corineto, que matava os viajantes a golpes de clava. Corineto quer dizer "o que combate com clava." Teseu matou-o e apossou-se de sua terrível clava –nunca mais abandonando-a. A Ática era vítima de malfeitores famosos, como Esciron, que obrigava os viandantes a lavar- lhe os pés no alto dum penedo e depois os arrojava ao mar, onde eram comidos por uma tartaruga monstruosa; como Sinos, que atava os viandantes a uma árvore encurvada até o chão e depois, largando-a, os arremessava longe, despedaçando-os; como Procusto, que "ajustava" as vítimas ao tamanho do seu leito, ora cortando um pedaço das pernas, ora esticando-as com a maior violência; como Cercion, que obrigava todo mundo a lutar com ele e depois matava os vencidos. A todos Teseu destruiu, com aplicação das mesmas torturas que esses homens perversos tinham inventado.
– Que peste o tal Procusto! – observou Pedrinho. – Já ouvi referências ao"leito de Procusto", mas não sabia o que era.
– E que mais fez Teseu? – quis saber Emília.
Minervino continuou:
– Ah, não tem conta! São infinitas as proezas de Teseu, e sempre norteadas para o bem. Ele é o amigo das liberdades,o castigador dos tiranos e monstros. Foi quem deu cabo de Fea, a javalina de Cromion, mãe daquele javali do Erimanto, vencido por Héracles. E até sei de coisas que ainda não aconteceram, mas vão acontecer.
– Como sabe? – perguntou Emília.
– Porque freqüento o Olimpo, e lá ouço o que os deuses conversam sobre as coisas do porvir. Este touro de Creta, por exemplo. O que vai acontecer está escrito nas páginas do futuro.
– Está predeterminado – disse cientificamente o Visconde.
Minervino riu-se da "aranha-de-cartola" e continuou:
– Héracles levará vivo a Euristeu este touro de Creta, mas Euristeu o soltará novamente. E o touro louco irá numa corrida furiosa até aos arredores de Maratona, e assolará aquela região. O Rei Egeu mandará contra ele o herói Androgeu, futuro vencedor de todos os concursos de várias Panatenéias – e esse herói sucumbirá na empresa. Teseu então atrever-se-á a ir atacar o touro, e o agarrará a unha, e o levará para Atenas, onde o passeará pela cidade; depois o sacrificará ao Apolo de Delfos. Mas isto ainda são coisas do futuro, como também a luta de Teseu contra as amazonas e tantas e tantas coisas mais. Agora veio ele a esta ilha para dar cabo do Minotauro.
– E vai vencer o Minotauro?
– Sim...
Terminada a refeição, os dois grandes heróis se despediram. Teseu lá se foi com o carretel de linha nº 50 na mão e Hércules e Pedrinho continuaram no rastreamento do touro.
Vários dias se passaram assim, sem que o menino perdesse a pista do touro de Creta.. E foram andando, andando até que deram com a entrada do famoso labirinto. O chão ali estava desnudo, de modo que os rastos do touro se misturavam com rasto de gente e outros animais.
Pedrinho desnorteou. Não podia garantir que o touro houvesse entrado.
– Pode ser que sim, pode ser que não – disse ele para Hércules. O melhor é entrarmos para investigar.
O herói vacilou. Entrar no labirinto era fácil, mas como sair? Aquele labirinto dava lá dentro mil voltas, e fora construído justamente para que quem entrasse não pudesse mais sair. Emília sossegou o herói.
– Não tenha medo, Lelé. Para nós esse labirinto é "canja". Já estivemos lá dentro, fomos até onde mora o Minotauro e depois saímos com a maior facilidade.
– Como?
– Por meio da linha dos meus carretéis. Tenho três na canastra.
– Mas não os deu ao herói da Ática?
– Dei um. Ainda restam dois. Dois bastam...


Dédalo

A entrada no labirinto de Creta processou-se exatamente como da primeira vez, quando lá estiveram em procura de tia Nastácia. Emília seguiu atrás de todos, desenrolando a linha. Por que atrás? Porque se seguisse na frente, os outros podiam embaraçar a linha nos pés e estava tudo perdido. Emília era muito previdente.
Foram entrando. Eram corredores e mais corredores, uma coisa sem fim. Em certo ponto a linha do segundo carretel acabou. E agora?
Pedrinho resolveu o caso. Fez fogo, obteve carvão e mandou que o Visconde viesse de carvãozinho em punho riscando o chão. Hércules não cessava de admirar aquele menino. Que engenho! Que habilidade para tudo! Tão simples a idéia do carvão...
Afinal chegaram ao fim, exatamente lá onde da outra vez os pica-pauzinhos haviam encontrado o Minotauro gordíssimo de tanto comer os bolos de tia Nastácia. Mas, em vez de Minotauro o que viram lá foi um homem...
Hércules abordou-o.
– Quem és tu? Espero encontrar o Minotauro e dou com um homem...
– Sou Dédalo – respondeu o interpelado. Tive um atrito com o Rei Minos e fui encerrado aqui...
– Dédalo? – repetiu Hércules com ar de espanto. – Dédalo, o mesmo construtor deste labirinto?
– Exatamente. Estou preso na arapuca por mim próprio construída...
O espanto foi geral. Dédalo preso na armadilha que ele mesmo concebera! Que coisa prodigiosa!...
O Visconde lembrou o caso do Doutor Guillotin, aquele francês que inventou a guilhotina e afinal acabou guilhotinado; e também veio com o célebre caso do touro de bronze de Perilo. Esse Perilo meteu-se um dia a mau, e concebeu a idéia de um novo suplício: um touro de bronze oco. Punha-se lá dentro a vítima e acendia-se um grande fogo embaixo. Ao sentir-se queimado vivo, o supliciado rompia aos urros – e a assistência tinha a impressão de que era o touro que estava urrando.
– Que bisca! – exclamou Pedrinho. – Monstro mau assim nunca vi.
– Pois esse malvado recebeu o castigo que merecia –continuou o Visconde.
– Como?
– Perilo construiu o touro oco e muito lampeiramente foi oferecê-lo ao tirano Fálaris. O tal Fálaris, que era outra peste, exclamou: "Ótimo! Façamos a experiência", e mandou acender fogo debaixo do touro e meter lá dentro ao próprio Perilo.
– Bem feito – berrou Emília. – Eu fazia exatissimamente a mesma coisa.
Dédalo suspirou.
– Pois foi o que a mim me aconteceu. Construí por ordem de Minos este labirinto e agora cá me vejo preso, também por ordem de Minos...
– Mas teve uma grande sorte – disse Pedrinho. – Vamos salvá-lo. Basta que nos acompanhe, que logo estará fora daqui.
Dédalo riu-se com grande tristeza.
– Impossível. Eu, que sou o construtor deste labirinto, sei que quem nele entra não sai mais...
– Bobagem, Dédalo. Aqui estamos nós que já estivemos cá e saímos. E agora entramos de novo e vamos de novo sair – e explicou o truque da linha inventado pela Emília.
Dédalo abriu a boca.
Depois pediram-lhe notícias do Minotauro.
– Já não existe. Esteve cá ontem um herói tremendo, que se atracou com o monstro e matou-o.
– Teseu! ... – gritou Pedrinho. – E onde anda ele? Já saiu?...
– Ah, não! Nem sairá. Deve andar perdido aí por esses corredores sem fim.
– Pois havemos de salvá-lo também, disse Pedrinho. E o touro de Creta?
Dédalo não entendeu. Pedrinho explicou:
– O touro louco, sim. Nós o estamos perseguindo. Já o pegamos uma vez a laço e o amarramos a uma árvore. Mas Juno mandou de noite um ratinho roer o laço – e o boi fugiu. Estamos agora atrás dele. Viemos seguindo os rastos até à entrada do labirinto. Talvez haja penetrado aqui, não sei.
Dédalo foi de opinião que não havia entrado.
– Asseguro que não entrou. Depois da morte do Minotauro, o silêncio tem sido completo. Se houvesse entrado eu teria ouvido seus urros.
– E o cadáver do Minotauro? Onde está?
Dédalo levou-os ao ponto onde residia o Minotauro.
– Ei-lo!...
Sim. Lá estava o Minotauro estendido por terra, morto, mortíssimo.
– De que modo conseguiu Teseu vencê-lo?
– Em luta corpo a corpo. Atracou-se com ele e estrangulou-o. Que herói tremendo é Teseu!...
Longamente estiveram ali a examinar o Minotauro morto.
– Sim – observou Emília. – É o mesmo que vimos daquela vez, mas muito mais magro. Depois que raptamos tia Nastácia, ficou sem quitutes...
Hércules acertou com Pedrinho um plano para salvar Teseu, e não foi difícil encontrá-lo. Dédalo tinha na cabeça todo o plano daquela construção, de modo que fez várias deduções, como as do Sherlock Holmes, e depois de meia hora de pesquisa deu com o herói da Ática.
Que festa foi o encontro! O pobre Teseu já estava desanimado e exausto de tanto andar por aqueles malditos corredores despistantes, mas quanto mais andava mais emaranhado ficava.
Tudo correu bem. Uma hora depois estavam todos fora do labirinto. Facílima fora a saída, graças ao risco de carvão do Visconde e ao fio de linha dos dois carretéis da Emília.
Ao ver-se de novo restituído à luz do dia, Teseu levantou os olhos para o céu e fez um agradecimento a Palas, a deusa de Atenas. Depois abraçou Hércules; também abraçou o Pedrinho e o Visconde e deu um beijo na Emília.
– Obrigado, amigos! Graças a vocês, acabo de ressuscitar. Sim, considero o meu caso um verdadeiro caso de ressurreição, pois já me considerava absolutamente morto...
– Por que não usou o carretel que eu dei, herói? – perguntou Emília.
– Usei-o, mas breve a linha se acabou. Duzentas jardas é pouco para este infernal labirinto.
Dédalo disse que só uma linha de 800 metros poderia ir da entrada até ao ponto final. Com um carretel só, de modo nenhum Teseu poderia arranjar-se.
As despedidas de Teseu e Dédalo foram comoventes. Cada um seguiu num rumo. Depois que se afastaram, Hércules olhou para Pedrinho.
– E agora, oficial? Perdemos a pista do touro...
Pedrinho voltou a examinar o chão. Súbito, deu um grito.
– Achei de novo o rasto! Ele chegou até aqui mas não entrou – e fez ver a Hércules o verdadeiro caminho tomado pelo touro.
– Pois continuemos a nossa perseguição – disse o herói.
O carro de Apolo já ia descambando e o estômago de Hércules já estava a reclamar carneiros. O centaurinho partiu no galope para a preia do costume, enquanto os outros se sentavam à margem dum riacho.
– Que dia cheio! – observou Pedrinho. – Quanta coisa!...
– E que lindo herói é Teseu! – disse Emília. – Que ar inteligente... Está me lembrando aquele atleta que Narizinho viu em Atenas e tanto a encantou.
Hércules não deixou de sentir uma ponta de ciúme diante daquele entusiasmo de Emília pela beleza do herói ático. Mas lá no íntimo deu-lhe razão. Os deuses fizeram-no, a ele, Hércules, musculoso demais, excessivo em tudo. Isso lhe assegurava a posição de Herói Nacional da Grécia–o maior de todos, o invencível. Mas privava-o da beleza sem par do herói de Atenas...


O herói-menino

A perseguição ao touro louco consumiu mais dois dias. No terceiro, pela manhã, o encontro dum viandante veio confirmar as deduções de Pedrinho. Aquele homem ouvira um urro estranho em certa direção – e apontou:
– Lá naquele rumo. Suponho que se ocultou no capão de mato que se vê daqui.
Encaminharam-se todos para o bosque. Hércules à frente. Logo depois ouviram um urro.
– Ele! – exclamou Pedrinho. – Aquela voz é minha conhecida...
Hércules pediu o laço – mas que é do laço? O centaurinho esquecera-o na entrada do labirinto. Enquanto Meioameio ia no galope em busca do laço. Hércules, de clava em punho, foi avançando cautelosamente. Súbito, novo berro mais próximo – e o touro apareceu.
Apareceu na fímbria do bosque. O mesmo olhar chispante, os mesmos bufos. Escarvava o chão com fúria. Ao dar com o herói, urrou de novo e investiu em sua direção com ímpeto de bomba voadora. Hércules, de pé firme, esperou-o de clava erguida. Mas Pedrinho advertiu-o novamente:
– Nada de clava, Hércules! Não se esqueça de que tem de o pegar vivo.
O herói lembrou-se das ordens de Euristeu e largou a clava. Ia agarrar o touro a unha.
O touro aproximou-se com uma velocidade incrível e investiu. Hércules o esperou firme como um rochedo. Ah, que cena aquela!... Quando a marrada do touro colheu o herói pelo peito, um som balofo quebrou o silêncio reinante – bá! Mas o touro havia encontrado um contendor digno de si. Sua marrada foi como um golpe de martelo-pilão de encontro a um bloco de aço inamolgável. O touro estacou. Os braços do herói o haviam cingido pelos chifres – e Pedrinho sentiu um frêmito de entusiasmo diante daquela verdadeira escultura viva: os dois gigantes imobilizados, como se subitamente transfeitos em pedra. Nenhum dos dois se movia uma linha. Imóveis, imobilíssimos, como que congelados...
  
Os pica-pauzinhos deliravam. Aquela cena valia todas. O tremendo esforço de Hércules neutralizava o tremendo esforço do touro. Nenhum dos dois podia mover-se, mudar de posição. E assim iriam ficar até ao regresso de Meioameio.
Um galope. Era Meioameio que vinha vindo. Ao ver de longe o herói atracado com o touro, seu galope redobrou.
– Pronto! – disse ao chegar, jogando o rolo do laço para Pedrinho.
O pequeno herói do Picapau Amarelo tomou-o, fez a laçada e correu para o touro. Mas como podia colher na laçada os chifres do touro, se os chifres do touro estavam colocados aos flancos de Hércules? Emília gritou:
– Lace-o pelo pé!...
Era uma sugestão de bobinha. Uma laçada pelo pé escapa com o primeiro tranco de um boi. Pedrinho ia laçá-lo pelo pescoço. Isso era contra todas as regras dos rodeios, mas o único jeito naquele momento – e, desfazendo a laçada, lançou a argola por cima do cangote do touro. Restava agora alcançar a argola caída no chão do outro lado e refazer a laçada. Mas como puxar a argola caída do outro lado? Se houvesse por ali uma vara de gancho...
– O Visconde aqui! – berrou Pedrinho – e Emília empurrou em sua direção o sabuguinho. Pequeno como era, podia pegar a argola e trazê-la para o lado de cá, passando por baixo do pescoço do touro. O Visconde tremia. O touro podia esmagá-lo com uma patada. Não tinha coragem. Emília veio de lá e deu lhe um tranco. O Visconde foi cair bem em cima da argola. Encheu-se de ânimo. Agarrou a argola e, passando por baixo da papada do touro, veio entregá-la a Pedrinho. Pedrinho enfiou a outra ponta do laço na argola e assim refez a laçada. Jogou então a ponta do laço para Meioameio e gritou:
– Corra e estique...
Meioameio assim fez. Pegou na pontado laço e disparou. A laçada foi se fechando. Fechou-se completamente. O monstro estava seguro pelo pescoço.
– Corra uma volta do laço nessa árvore aí! – gritou Pedrinho; e Meioameio correu uma volta do laço em torno ao tronco da árvore indicada. – Agora segure firme! – gritou Pedrinho. Meioameio segurou firme.
– Pronto, Hércules! Pode largar o touro.
Hércules desprendeu-se daqueles chifres e deu um grande salto de banda. O touro, liberto, urrou e investiu contra o herói. Hércules deu novo salto de banda – e assim várias vezes, enquanto Meioameio ia encurtando o laço. Momentos depois estava o touro novamente com a cabeça junto da árvore, como da primeira vez – mas o aperto da laçada em seu pescoço o ia estrangulando. Era preciso transferir a laçada do pescoço para os chifres. Como?
Pedrinho pensou depressa. O único jeito era fazer outra laçada na outra ponta do laço e passá-la pelos chifres do touro. E foi o que fez. Preso o touro ao tronco pela laçada dos chifres, e bem amarrado, podiam afrouxar a laçada que o prendia pelo pescoço. Meioameio executou habilmente a operação – e não sem tempo. O touro já estava de olhos esbugalhados e sem fôlego. Se demoram dois ou três minutos mais, adeus touro de Creta!...
Pronto! Lá estava o tremendo animalão novamente seguro e bem seguro. Emília bateu palmas. Hércules sorria e o Visconde assoprava-se todo. Ainda não estava completamente refeito do ato de heroísmo que realizara sem querer.
Hércules abraçou Pedrinho. Pela segunda vez reconheceu que um garoto como ele era novidade na Grécia.
– Muitos heróis temos tido por aqui, oficial; mas herói-menino, o primeiro que apareceu na Hélade foi você.
Emília reclamou um bom abraço no Visconde. “Ele também contribuiu muito, Lelé. Foi quem passou a argola do lado de lá para o de cá.”
Hércules apertou a mão do sabuguinho, dizendo: “Meu Valente escudeiro!”
Ótimo. Estava tudo ótimo. Restava apenas vigilarem de noite para prevenir novo roimento do laço pelo camundongo de Juno. Emília teve a idéia de botar um gato preso ao tronco, mas onde encontrar um gato naquele ermo? A idéia vencedora foi a do Visconde: esfregar o laço com suco de erva-de-rato, que é venenosíssima. E como ninguém soubesse que erva era aquela, o sabuguinho científico explicou:
– As chamadas ervas-de-rato são muitas, todas da família Palicurea. Há a Palicurea strepens de flores amarelas em cacho; há a Palicurea noxia, que é rubiácea. Há a Palicurea nitotianoefolia, outra rubiácea classificada por Martius. E há a Palicurea rigida, também chamada "Douradinha-do-campo..."
Emília quase deu nele.
– Estupor!... Em vez de tanta exibição de ciência, melhor que vá correndo ao bosque ver se encontra qualquer dessas Palicureas...
O Visconde foi e encontrou um pezinho da Palicurea officinalis, tão boa como qualquer outra para envenenar os ratinhos de Juno. Amassou aquelas folhas entre duas pedras chatas, fez um mingau e deu-o a Pedrinho.
– Basta que esfregue isto no laço.
Foi o que Pedrinho fez – e na manhã seguinte puderam observar o maravilhoso efeito da receitinha do Visconde: lá estava ao pé do tronco o cadáver do camundongo de Juno...
Muito bem. A primeira parte daquele Trabalho de Hércules fora feita. Restava a segunda, talvez a mais difícil: conduzir aquele touro até Micenas. A Ilha de Creta erguia-se a uns cem quilômetros do continente. Como atravessar esses cem quilômetros do Mediterrâneo com aquele touro no laço?
Puseram-se a estudar o problema. Emília pensou no pirlimpimpim. Com uma boa esfregadela do maravilhoso pó no focinho do touro, ia ele num só fiunnn para Micenas, mas para isso era necessário que Hércules também aspirasse o pó.
E Palas se opunha. Palas havia terminantemente proibido ao herói recorrer novamente ao tal pó transportador, visto como o seu coração hipertrofiado poderia não resistir
– E se fizéssemos Meioameio seguir com o touro? – sugeriu Pedrinho.
Hércules opôs-se. Meioameio era ainda muito novo. Não agüentaria o touro lá na chegada. Idéia vem, idéia vai, ficou assentado o seguinte: Hércules atravessaria os cem quilômetros de mar a nado, puxando o touro, e eles iriam "a pó" esperá-lo numa praia do continente.
E assim foi feito. Logo depois do almoço, Pedrinho distribuiu as doses de pirlimpimpim, muito bem calculadas para um fiunnn até ao extremo do promontório de Maléia. Lá esperariam pelo herói com o boi – e seguiriam por terra para Micenas. O promontório de Maleia ficava na parte da Hélade chamada Lacônia; Micenas ficava na parte chamada Argólida.
Hércules desamarrou da árvore o touro e lá seguiu com ele rumo ao mar, enquanto os outros aspiravam as doses do pirlimpimpim. Instantes depois despertavam numa praia do promontório de Maleia.
– Onde estará Hércules neste momento? – refletiu Pedrinho, logo que se viu livre da tontura. Muito longe do mar ainda... Que acha, Visconde? Já terá Hércules chegado à praia?
– Oh, não! Pelos meus cálculos, ele tem de caminhar umas três horas.
– E quantas horas levará nadando?
O Visconde respondeu que um bom nadador pode vencer cem quilômetros em vinte horas – e pôs-se a discorrer sobre a natação. Em certo ponto Emília interrompeu-o.
– E aquela história de Leandro e Hero, que Dona Benta contou?
– Ah, isso foi muito triste – respondeu o sabuguinho. –Havia em Sestos uma sacerdotisa de Vênus de nome Hero, muito moça e linda. Sestos era uma cidadezinha situada na margem européia do Helesponto, esse estreito que hoje se chama Dardanelos. Do outro lado do estreito ficava a cidade de Abidos, onde morava Leandro. Este rapaz conheceu Hero numa festa de Vênus e apaixonou-se e todas as noites atravessava o Helesponto a nado para ver a namorada.
– Que largura tinha o estreito naquele ponto?
– Mil e quinhentos metros – disse o Visconde. Todas as noites Hero acendia um fogo no alto dum morro para guiar Leandro. Mas lá em certa ocasião ele passou sete dias sem aparecer. Sete vezes a coitadinha acendeu o fogo e nada.
– Que houve?
– Houve que Leandro, numa das suas travessias, foi apanhado por um temporal e afogou-se. As ondas levaram o seu cadáver às praias de Sestos. Ao ter conhecimento disso a pobre Hero lançou-se ao mar e morreu também... Emília engoliu um soluço.
O sabuguinho continuou. Contou que mais tarde o poeta inglês Byron, que andava pela Grécia, tentou e conseguiu repetir a façanha de Leandro. Atravessou o Helesponto a nado, exatamente no mesmo lugar.
– E não morreu afogado?
– Não. Foi morrer da febre apanhada em Missolonghi, uma cidade grega que ainda não existe mas vai existir.
A história de Hero e Leandro entristeceu os pica-pauzinhos e comoveu o jovem centauro.
– E se Héracles não agüenta e também morre, como Leandro? – lembrou Emília. Estou com medo...

A loucura do rei

Mas tudo acabou bem. No dia seguinte, pela manhã, foram para cima duma grande pedra aguardar o aparecimento do herói. O mar manso estendia diante deles as suas águas azuis. Minutos depois Emília, que era a grande "enxergadeira”, gritou:
– Estou vendo dois pontinhos lá longe... Dirigem-se para cá... Duas cabeças, uma de homem, outra de boi... São eles, sim...
E eram mesmo. Dali uma hora Hércules safou-se do mar, puxando o touro por um chifre.
Que festa foi a recepção do herói! Hércules chegou cansadíssimo, completamente exausto. Felizmente o touro estava mais cansado ainda, se não teria fugido pela segunda vez.
A viagem dali até Micenas correu cheia de peripécias e lances heróicos. O caminho que seguiram passava pela parte leste da Arcádia – e muito insistiu o Visconde para uma paradinha em Estinfale. Mas como essa urbe ficasse muito fora de mão, o Visconde, suspirando, teve de desistir da sua esperança de rever a pastorinha Climene...
Afinal chegaram, e na forma do costume os pica-pauzinhos se dirigiram ao acampamento enquanto Hércules levava o touro para a cidade.
Que prazer encontrarem-se de novo naquele amável retiro, com o ribeirão a murmurejar como de costume e a floresta verdinha lá perto! O templo de Avia não fora bulido por ninguém. Perfeito como o haviam deixado. Lá se erguiam as estacas com as esculturas comemorativas dos Trabalhos de Hércules. Pedrinho fincou mais uma e pregou no topo a sétima escultura representando Hércules atracado com o touro.
Depois teve uma idéia:
– E se déssemos um pulo até a cidade?
Foram. Encontraram Micenas num grande tumulto por causa da chegada do herói. Todos já sabiam a história do touro de Creta, e estavam correndo para a praça do mercado a fim de vê-lo. Hércules amarrara-o lá num palanque e fora apresentar-se ao rei.
– Pronto, Majestade! – disse ele na sua voz mansa de herói bem comportado diante da soberania. – Cumpri fielmente a missão que Vossa Majestade houve por bem confiar-me. O touro de Creta está amarrado num esteio na praça do mercado.
Euristeu fechou a carranca. Que responder? Estava já cansado das vitórias do herói. Indubitavelmente Palas tinha mais força de que Juno. E Euristeu consultou com os olhos o ministro Eumolpo, sempre ali muito lambetamente ao pé do trono. Eumolpo, que já tinha na cabeça um novo Trabalho destinado ao herói, cochichou três segundos com o soberano.
Euristeu desenfarruscou a cara e disse para Hércules:
– Muito bem. Agora o que tem a fazer é ir dar cabo dos cavalos de Diomedes.
Hércules não sabia que cavalos fossem aqueles. Eumolpo explicou:
– Diomedes é rei dos bistônios, na Trácia. Possui uns cavalos que só comem carne humana. Diomedes alimenta-os com os náufragos que as tempestades arrojam às costas do seu reino. Sua Majestade ordena que vás e liquides com esses cavalos antropófagos.
Hércules baixou a cabeça respeitosamente, murmurando:
– Assim será feito, Majestade!
Disse e saiu.
Euristeu ficou a conferenciar com Eumolpo. Estavam tramando qualquer coisa. Depois ordenou a um dos guardas:
– Vá à praça do mercado e solte o touro de Creta.
O guarda abriu a boca e ousou dizer:
– E que será do povo lá reunido, Majestade?
Euristeu fulminou-o com o olhar.
– Cumpra as minhas ordens e não discuta.
O guarda foi soltar o touro.
Enquanto isso os pica-pauzinhos chegavam à praça onde o povo se comprimia para ver o monstro prisioneiro. Os comentários ferviam.
– Que belo animal! – dizia um.
– Belo, sim, mas perigosissimo. Olhe como baba de cólera e fumega. Parece até que espirra fogo...
–Tenho medo de Creta – dizia outro. Já estive lá uma vez. Tudo são touros na ilha – e há aquele horrendo Minotauro preso no labirinto.
Pedrinho interveio:
– Houve o Minotauro. Já não existe.
– Como? Por quê? – e vários curiosos o rodearam.
– Sim – confirmou Pedrinho. – O grande herói Teseu da Ática lá esteve e estrangulou o monstro.
O espanto foi geral. Ninguém ainda sabia do grande acontecimento.
A roda de curiosos em torno dos picapauzinhos ia aumentando cada vez mais. O Visconde, sobretudo, provocava mil comentários. Uma aranha de cartola! E quando souberam que todos três haviam tomado parte na aventura do herói, o assombro não teve limites.
Nesse momento chegou o guarda do rei.
– Espalha! Espalha!... – gritou. Vim com ordens de Sua Majestade para soltar este bicho.
Ninguém entendeu.
– Soltar o touro de Creta? Soltar um monstro que já fez tantos estragos no mundo?...
–Sim, são ordens de Sua Majestade e as ordens de Sua Majestade não se discutem – respondeu o guarda, já com a mão no laço para desfazer o nó.
Quando o povo percebeu que o touro ia mesmo ser solto, ah, caiu num grande pânico. Foi uma gritaria geral e um corre-corre, como nunca se viu. Uns voavam por aquelas ruas como lebres. Outros embarafustavam-se pelas casas e trancavam as portas por dentro.
O guarda soltou o touro e, coitado, foi a sua primeira vítima. O touro o colheu nos chifres e arremessou a vinte metros de distância, todo arrebentado. E quantos não morreram naquele dia... O monstro estava com o ódio represo, de maneira que ao ver-se solto explodiu num horrendo acesso de furor. Cada arranco que dava era uma criatura que caía em pandarecos.
Pedrinho agarrou Emília e o Visconde pelas mãos e sumiu-se dali a toda – corria arrastando os coitadinhos. Minutos depois chegou ao ponto onde Meioameio os esperava. Jogou os dois sobre o lombo do jovem centauro, montou e disse:
– Fujamos no maior galope! O maldito Euristeu mandou soltar o touro.
Essas palavras valeram mais do que quanta espora há no mundo. Nunca Meioameio galopou com tamanha velocidade.
Chegados ao acampamento, uma idéia os assustou.
– E se o touro vem por aqui? E se nos reconhece e vinga-se? O melhor é treparmos àquela árvore – e Pedrinho apontou para a árvore mais alta. Todos subiram, menos Meioameio. Sua defesa era o galope.
– Não posso compreender a idéia do tal rei mandando soltar o touro – observou Pedrinho lá no galho. – Para mim ele é ainda mais demente que o touro.
– E Hércules que não vem? – impacientava-se Emília. – Será que vai atracar-se novamente com o touro lá na cidade?
– Acho que não – opinou o Visconde. – Agora me lembro do que disse Minervino. O touro vai para Maratona, onde será novamente capturado por Teseu. É o que está gravado nas páginas do livro do futuro.
Nesse momento – lá vem Lelé!... gritou Emília.
Sim, Hércules vinha vindo, de cabeça baixa, como absorto em apreensões. Chegou e riu-se de ver tantos "pica-paus" na árvore.
– Desçam! – disse ele. – Nada há mais a recear. O touro já saiu da cidade e afundou por esses campos.
– Não virá deste lado?
– Não. Tomou outro rumo.
O alívio foi geral. Todos desceram.
– Qual a razão de haver Euristeu mandado soltar o touro? – perguntou Pedrinho.
– Não sei. Os desígnios de certos soberanos são inescrutáveis – foi a resposta de Hércules.
 

De "O touro de Creta" para "Biblioteca"

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