Valdir Aguilera
 Físico e pesquisador

 

 

Os cavalos de Diómedes

Monteiro Lobato

Os cavalos de Diómedes

Pedrinho não estava entendendo a Hélade. — Mas afinal de contas — disse ele — isto aqui me parece mais uma salada de pequenos países do que um país só. Explique-me esta Hélade, Minervino.
O mensageiro de Palas explicou que o que chamavam Hélade não passava dum cacho de paisezinhos independentes, mas com a mesma língua e os mesmos deuses. Havia a Lacônia, a Messênia, a Argólida, a Fócida, a Tessália, a Magnésia...
— Chega! — berrou Emília. — Pare na Magnésia, se não é capaz de vir também o Bicarbonato...
— E é para um desses cocos do grande cacho helênico que vamos indo — continuou o mensageiro. — Vamos indo para a Trácia.
Sim, era para a Trácia que se iam encaminhando Hércules e seu bando, acompanhados do precioso Minervino. E Hércules ia para a Trácia porque era lá que ficava o reino dos bistônios, então governado por um rei de nome Diómedes, dono dos tais cavalos que comiam gente. Pedrinho havia observado que no mundo moderno os eqüinos eram todos herbívoros; carnívoro não existia nenhum. Mas numa Grécia em que havia de tudo, nada mais natural que também houvesse cavalos antropófagos.
— Eles não haviam nascido antropófagos — explicou Minervino. — Mas como Diómedes, em vez de capim ou aveia, só dava carne humana, foram mudando de gênio, tornando-se ferozes e por fim viraram uns horríveis monstros. Diómedes os alimenta com os náufragos que dão à praia — os náufragos estrangeiros; aos nacionais ele perdoa.
— Malvado! — exclamou Emília. — Por isso é que eu sou democrática. Isso de reis e tiranos é uma desgraça. Tratam os súditos do mesmo modo que os deuses do Olimpo tratam os homens.
Minervino aconselhou-a a não falar assim dos deuses, porque os deuses tudo viam e ouviam e eram muito vingativos. E a propósito contou uma conversa recentemente ouvida no Olimpo.
— Estava Hera falando em voz baixa com Zeus, o seu divino esposo. Dei um jeitinho e pude pescar um trecho...
Emília interrompeu-o:
— Mas então você mora no Olimpo, Minervino?
— Não; mas como estou trabalhando para a minha deusa Palas, volta e meia dou um pulo até lá para dar conta dos meus trabalhos e receber ordens. Foi numa dessas vezes que ouvi a tal conversa. Não sei se devo contar...
Minervino vacilava.
— Que diziam?
— Falavam justamente de você, Emília. Hera queixava-se a Zeus dum "pelotinho humano" que aparecera por aqui juntamente com uma "aranha de cartola" e um menino estrangeiro. O "pelotinho humano" — dizia ela — andava "interferindo" em muita coisa, e falava dos deuses com grande irreverência. Já por duas ou três vezes havia tratado a ela, a deusa suprema, de "peste" e "bisca". Ora, isso era inadmissível — e Hera pediu a Zeus que a fulminasse com seus raios.
Zeus refranziu os sobrolhos e prometeu que sim. Mas logo depois que Hera se afastou, Palas, a quem informei de tudo, aproximou-se e disse: "Não dês atenção a Hera, Zeus.
O tal "pelotinho" está do meu lado e trabalhando muito bem na proteção de Héracles. Foi quem o salvou no caso do Javali do Erimanto. Hera enfureceu-se com isso e quer agora vingar-se." Zeus conhece muito bem aqueles deuses e deusas; anda a par das intrigalhadas todas e vai "temperando" o Olimpo com grande habilidade. Foi assim que naquele dia prometeu a Hera fulminar Emília e depois prometeu a Palas protegê-la.
— Então ele é pau de dois bicos?
— Mais ou menos. Zeus é manhoso. Sabe agir politicamente — e vai temperando. Mas vocês tomem muito cuidado com a língua. O peixe morre pela boca e as criaturas humanas morrem pela língua.
Depois dessa prosa o assunto recaiu sobre Diómedes, o rei dos bistônios. Minervino contou que os cavalos desse rei não eram cavalos e sim éguas. Quatro éguas, de nome Podargo, Lampon, Janto e Deno. Tão ferozes ficaram que viviam presas em correntes.
— E é verdade que têm cascos de bronze? — perguntou Pedrinho, que ouvira alguém dizer isso.
— Sim, têm cascos de bronze, como a corça do monte Cirineu que Hércules capturou.
— Hércules, não; nós... corrigiu o menino.
O herói seguia lá atrás, como de costume; estava mentalmente conversando consigo mesmo. E de tanto parafusar, sentiu uma perturbação como se fosse recair na loucura. E o que em seguida fez, se não era loucura era coisa muito parecida. Hércules entreparou e gritou para os outros:
— Alto! Antes de seguir para a terra dos bistônios quero chegar a Delfos para uma consulta ao Oráculo.
— Sobre que, Lelé? — perguntou familiarmente Emília, mas Hércules não respondeu. Isso deixou a todos numa grande incerteza. "Que será?" Pedrinho foi de opinião que "havia qualquer coisa". Talvez houvesse Hércules cometido algum crime e o roesse o remorso.
Pedrinho acertou. Num acesso de cólera em Micenas havia ele matado sem razão nenhuma a um miceniano, e vinham daí os seus remorsos, aquele ar enfarruscado, aquele remoimento interior. E a súbita ideia que lhe veio de ir a Delfos também se ligava a esse fato. Hércules queria saber se o crime perpetrado fora uma ofensa a Apolo. Por que a Apolo? Porque a vítima estava sacrificando a Apolo no momento em que Hércules a abateu.
Depois de Micenas era Delfos a cidade grega mais conhecida dos pica-pauzinhos. Haviam estado lá durante a primeira vinda à Grécia em procura de tia Nastácia; e fora graças à resposta do Oráculo que descobriram a negra no labirinto. Estiveram depois segunda vez para a salvação do Visconde, como já foi contado num dos capítulos destas histórias. E para lá iam agora pela terceira vez... Para quê? Ignoravam. Hércules andava fechadíssimo em copas.
Para chegarem a Delfos tinham de atravessar o istmo de Corinto e depois a Ática. Delfos ficava na Fócida. Tais viagens eram sempre a mesma coisa. Passavam por aldeias e pousavam em acampamentos improvisados, como aqueles de Micenas e Estinfale. Meioameio era o encarregado da mesa, e ora apresentava um boi assado, ora uns tantos carneiros.
Minervino já fazia parte do bando, embora com desaparecimentos súbitos quando voava para o Olimpo a fim de dar notícias ou receber ordens de sua deusa.
O Visconde andava mais "assentado". Aquela fúria de namoro e o entusiasmo pela vida de logo depois da fervura no caldeirão de Medeia iam passando. Ainda pensava em Climene, mas só de longe em longe e cada vez com menos amor.
Emília chegou a cochichar para Pedrinho: "Talvez nem seja preciso que tia Nastácia conserte o Visconde. Ele está se consertando por si mesmo." E estava. O fogo de mocidade transmitido pelo caldeirão da feiticeira já era um fogo sem calor. O Visconde até parara de beber. Quando de passagem por uma aldeia lhe ofereciam vinho, ele recusava com toda a delicadeza.
Pedrinho, sempre apreensivo com o estranho estado d'alma de Hércules, volta e meia falava disso a Minervino.
— Hércules perdeu a expansibilidade. Não o vejo rir-se. Esquece de responder ao que perguntamos. Que será?... Tenho medo que lhe dê um novo acesso de loucura. Quem já ficou louco uma vez está sempre ameaçado de recaída, diz vovó.
E assim foi a viagem até Delfos, muito menos alegre e divertida do que as outras. Pairava sobre eles como que uma nuvem de tragédia.


Em Delfos

Há sempre maior prazer em voltar a uma cidade do que em visitá-la pela primeira vez. Aquela terceira entrada em Delfos regalou Pedrinho e Emília como uma volta para casa. Iam reconhecendo inúmeras coisas e recordando passagens das vezes anteriores. E até certas caras reconheciam.
— Olhem aquele homem cabeludo que vimos da primeira vez! — observou Emília apontando para um tipo asiático. Parecido com o Zé Canhambora...
Eles haviam instalado o acampamento numa várzea dos arredores e lá deixaram Meioameio. O centaurinho não gostava dos centros urbanos. Não entendia o pavor que a sua presença causava. Hércules, sem dizer palavra, havia seguido para a cidade. Os três pica-pauzinhos foram a pé logo depois.
Delfos era uma cidade diferente de todas as outras. Um grande centro de peregrinação. Gente de todas as cidades gregas, e mesmo de muitas terras estrangeiras, afluia constantemente para lá, em consulta ao famoso Oráculo. Por causa da contínua interferência dos deuses nos negócios dos homens, a preocupação de todo mundo era "sondar" a vontade dos deuses por meio de consultas à Pítia, ou à pitonisa captadora das intenções do Olimpo. Os sacerdotes do Templo de Apolo viviam numa perpétua dobadoura, sem tempo para se coçar. E como nada fizessem de graça, o recebimento de presentes não tinha fim. E que presentes!... Até tijolos de ouro maciço eram ofertados ao Templo, em cujos depósitos se acumulavam imensas riquezas.
Os pica-pauzinhos encaminharam-se para o Templo e lá encontraram Hércules preparando-se para a consulta.
— Que será? — murmurou Emília. — Estou pegando fogo de tanta curiosidade...
Entraram. Ficaram a um canto, vendo e observando tudo. A Pítia estava atendendo ao mensageiro de um rei da Beócia interessado em conhecer o desfecho de uma guerra que vinha tramando. A Pítia atendeu-o. Depois de ouvir-lhe a pergunta, levantou os braços, curvou-se para os vapores que saíam da trípode e com um ar de desvairada murmurou o "vaticínio". Aqueles vapores tinham a propriedade de deixar a Pítia em estado de transe, como os médiuns que recebem um espírito. Emília deu um jeitinho de aproximar-se e ouviu a resposta:
— "Antes que as folhas dos plátanos forrem o chão — um rei será apeado do trono.”
O Oráculo falava sempre dum modo ambíguo, isto é, que tanto podia ser uma coisa como outra. E as respostas eram então "interpretadas" pelos sacerdotes — quase sempre a favor de quem oferecia os mais custosos presentes.
O emissário do rei da Beócia retirou-se e foi conferenciar com os sacerdotes. Era a vez de Hércules. O herói aproximou-se da Pítia. Emília fez-se menorzinha do que era e chegou mais perto ainda, ansiosa por não perder uma só palavra da consulta.
Mas aconteceu um fato estranhíssimo e inédito no Templo de Apolo. Ao ver Hércules chegar, a Pítia afastou-se da tripode!... Foi um assombro. Todos os presentes arregalaram os olhos e entreabriram as bocas.
Hércules, o grande herói nacional grego, havia recebido em pleno rosto uma bofetada de Apolo...
Como iria ele reagir? Resignar-se-ia àquilo ou...
O "ou" venceu. Hércules, tomado dum acesso de cólera que fez a assistência tremer de medo, avançou para a trípode, arrancou-a do chão e saiu com ela ao ombro para fora do Templo...
Emília correu ao encontro de Pedrinho e do Visconde e, tomados de pânico, foram voando para o acampamento. Lá chegaram sem fôlego, e foi a arqueja que Pedrinho contou a Meioameio o acontecido:
— Hércules foi... foi repelido pela Pítia! Assim que se aproximou ela... ela retirou-se para os fundos do Templo! E Hércules então agarrou a trípode, arrancou-a e saiu com ela erguida no ar... Saiu do Templo e sumiu-se...
Meioameio ficou assombrado. Nisto Minervino apareceu. Também estivera no Templo e observara tudo.
— Hércules é irmão de Apolo por parte de pai — disse ele. O que houve não passa de briga entre irmãos. A ofensa que Hércules fez a Apolo, arrancando de lá a trípode, é a maior de todas. Prevejo grandes catástrofes...
— E que vai fazer, Minervino?
— Vou já para o Olimpo consultar Palas — disse e afastou-se.
Os pica-paus ficaram ali sozinhos, tontos duma vez, sem nenhuma ideia na cabeça.
— E agora? — exclamou Pedrinho. — Hércules sumiu. Estamos largados aqui nesta terra estranha e sujeitos a tudo...
Depois de muitas vacilações, Pedrinho resolveu que montassem em Meioameio e saíssem pelo mundo a ver se encontravam o herói. Lá cavalgaram o centaurinho, e lá partiram num desapoderado galope. Quando avistavam algum viandante, detinham-se para perguntar:
— Não viu Hércules? Não sabe dele?
Os viajantes nada sabiam e Meioameio retomava o galope. E assim até darem com um que pôde informar alguma coisa.
— Vi, sim, mas não sabia que fosse Hércules. Vi passar um herói de formas truculentas, com uma tripeça ao ombro...
— E que rumo tomou?
— Passou por mim resmungando palavras terríveis e lá se foi nesta direção.
Meioameio retomou o galope no rumo indicado, e assim chegaram às proximidades duma cidadezinha de nome Gítio, no interior do Peloponeso. De longe avistaram um homem de alentada estatura, com uma coisa aos ombros.
— É ele! — gritou Emília. — É Lelé com a trípode da Pítia...
O centaurinho voou ao encontro do herói, mas de súbito estacou. Outro herói havia surgido diante de Hércules. Pedrinho imediatamente o reconheceu: "Apolo!... É o próprio deus Apolo, irmão de Hércules por parte de pai..."
Nada mais verdadeiro. Era Apolo em pessoa que descera do Olimpo e na maior fúria ia atacar Hércules para retomar a trípode.
Os pica-pauzinhos sentiram os cabelos em pé. Luta entre dois irmãos — haverá nada mais terrível? E se Hércules era Hércules, Apolo era um deus. Ora, um deus não pode ser vencido por um humano. Logo, Hércules estava arriscado a perder a partida.
Os dois tremendos irmãos se defrontaram e romperam em acusações. Apolo declarou que a Pítia recusava-se a atendê-lo por causa do homicídio injusto que ele havia cometido em Micenas.
— Tu mataste um dos meus devotos! — acusou Apolo. — Por isso a Pítia recusou-se a receber-te.
Hércules respondeu:
— Irmãos somos, filhos do mesmo pai. Não reconheço tua superioridade sobre mim. Estou de posse da trípode e vou estabelecer o Oráculo de Héracles, em contraposição ao Oráculo de Apolo.
A luta de boca foi subindo de fúria, mas no momento em que eles iam atracar-se num pega horrível, eis que de súbito um raio desce do céu e espeta-se no chão entre os dois. Era um severo aviso de Zeus, o pai de ambos.Hércules e Apolo estarreceram. Compreenderam a significação do aviso celeste. Se não acatassem aquele aviso, Zeus, na sua fúria, fulminá-los-ia com outro raio. E lá se
imobilizaram um diante do outro como dois galos de briga que refletem no que fazer.
Mas Palas interveio. Fez que o acesso de furor do herói se acalmasse — e Hércules foi caindo em si. Pôs-se a falar menos exaltadamente. Discutiu o assunto com mais calma — e por fim cedeu. Reconheceu que ele, não Apolo, era o culpado. Sim, ele havia matado o devoto de seu irmão e arrancado a trípode do Templo. Nada mais justo que Apolo acudisse em defesa do que era seu — do seu devoto e da trípode de seu Templo. E Hércules entregou a Apolo o que era de Apolo. Em seguida, muito vexado do que sucedera, arrepiou caminho, evidentemente com a ideia de voltar por Delfo se reunir-se aos amigos deixados no acampamento.
Meioameio correu-lhe ao encontro. A surpresa do herói foi grande.
— Vocês aqui!...
— Sim — disse Pedrinho. — Vimos tudo. Estivemos no Templo e assistimos à desfeita da Pítia...
— Aquela bruxa! — acrescentou Emília.
Hércules então se abriu. Contou a história do seu homicídio em Micenas, explicando-o como mais uma tentativa de Hera para perdê-lo.
— Sim, foi a minha divina perseguidora quem me fez vir o sangue à cabeça e matar aquele homem. Foi também ela quem me fez arrebatar a trípode, desse modo ofendendo mortalmente ao meu irmão Apolo...
Nesse momento Minervino reapareceu, de volta do Olimpo. Contou que acabava de estar com a deusa Palas, que Palas soubera de tudo e fora agarrar-se com Zeus para prevenir a horrorosa luta entre os dois irmãos. Disse mais que o acesso de furor de Hércules em Micenas fora mais um truque de Hera para desgraçar o seu perseguido.
Hércules suspirou.
— Que vida a minha! Não passo de um joguete das deusas do Olimpo... O ódio de Hera não arrefece...
Minervino consolou-o, dizendo que também a proteção de Palas não arrefecia.
— Minha boa deusa tem sempre os olhos sobre ti, Hércules. Inúmeras vezes já te salvou — e assim continuará agindo. Quem goza da proteção de minha deusa nada tem a recear.
Emília perguntou por que motivo era Palas tão poderosa. Minervino respondeu:
— Porque goza da predileção do deus supremo, já que passou os primeiros meses de sua existência em sua divina coxa. Além disso, Zeus e todos no Olimpo admiram-na e respeitam-na como a deusa da Sabedoria. Palas, grande Palas, teu mensageiro te admira e te venera do fundo do coração! Tu, sim, és a deusa das deusas...
Emília fez-lhe a mesma advertência que dias antes ele lhe fizera:
— Cuidado, hein? Se Hera ouve, vai sentir-se enciumada — e adeus Minervino...

Hércules acalma-se

As cóleras de Hércules eram hercúleas. Não passavam com a facilidade com que passam as cóleras dos homens comuns. Havia se reconciliado com Apolo, mas mesmo assim refervia lá por dentro, como refervem as lavas de um vulcão. Isso explica a volta enorme que ele deu para chegar à Trácia. Em vez de seguir diretamente para lá, como era o natural, resolveu passar pelo reino da Líbia. Preciso espairecer — disse ele. — O fogo da cólera ainda me queima lá por dentro. Vou chegar até à Líbia.
Pedrinho admirou-se. A Líbia era no norte da África, uma terra muito quente. Ora, se Hércules estava ardendo em fogo interno, como então pensava na Líbia? Muito mais lógico que fosse para a terra dos hiperbóreos, onde tudo é gelo. Mas Minervino explicou que o grande herói era partidário da teoria médica do simília simílibus curantur, isto é, para curar fogo, mais fogo — só isso poderia explicar aquela sua ideia da Líbia.
Depois contou que o rei da Líbia era um gigante de sessenta côvados de altura — Anteu, filho de Géia e Posseidon, ou Netuno, o deus do mar. E disse que muito receava um pega entre Hércules e esse gigante.
— Que é côvado? — perguntou Emília.
O Visconde respondeu que o côvado era uma medida muito antiga, equivalente a três palmos. Sessenta côvados equivaliam a 180 palmos, ou mais ou menos 36 metros.
— Trinta e seis metros de altura? — arrepiou-se Emília. —Mas então é gigante de verdade...
— Sim, só dez metros menor que a estátua da Liberdade no porto de Nova Iorque.
Minervino contou que as "cóleras recolhidas" de Hércules só saravam com a realização duma proeza tremenda, e que aquela ideia de ida à Líbia tinha água no bico — não era para espairecer, não...
— Para mim, ele quer pegar-se com o gigante Anteu! E estou com medo disso...
— Por quê? — indagou Emília. — Acha então que Hércules, que já sustentou sobre os ombros o céu enquanto Atlas ia roubar o pomo das Hespérides, lá pode ser batido por um gigante?
— É que Anteu é invencível. Pode lutar quanto tempo for sem nunca se cansar.
— Por quê?
— Porque é filho de Géia, ou a Terra, Géia lhe transmite força pelos pés.
Emília teve uma ideia repentina.
— Se é assim, há um jeito de vencer esse gigante: basta suspendê-lo no ar, não deixando que seus pés toquem a terra!
Minervino entreabriu a boca. Sim, parecia estar ali uma solução...
Emília foi correndo conversar com o herói e puxou o caso de Anteu.
— É verdade mesmo que esse Anteu é invencível, Lelé?
Hércules respondeu que sim, por causa da força contínua que recebia de sua mãe Géia.
— Por onde recebe essa força? — perguntou a diabinha.
— Pelos pés — declarou Hércules. — Os que lutam com ele cansam-se, mas Anteu não se cansa porque Géia está continuamente lhe transmitindo força pelos pés.
— E se for erguido do chão e conservado no ar? Desse modo Géia não lhe poderá transmitir força nenhuma. É como a eletricidade lá no mundo moderno. Não havendo ligação, não há eletricidade.
Hércules enrugou a testa. A ideiazinha de Emília soou-lhe como uma tremenda revelação. Sim, ponderou lá consigo. Se eu o erguer... se eu o mantiver com os pés desligados da terra... E um sorriso imenso iluminou-lhe o rosto. Hércules havia compreendido uma grande coisa.
"Não havendo ligação, não há eletricidade." Sim, sim... Se ele conseguisse desligar da terra os pés de Anteu, o gigante morreria por falta de força...
Hércules nada mais disse; limitou-se a agarrar Emília e a beijá-la. Parecia incrível, mas aquela minúscula criaturinha acabava de lhe ensinar o único meio de vencer um gigante invencível...
A viagem dali por diante tornou-se uma verdadeira festa. A alegria do herói manifestava-se de mil maneiras. A casmurrice desaparecera. Pôs-se a contar mil coisas de sua vida passada, desfiou um rosário sem fim de proezas tremendas e como alegria traz fome, o seu jantar daquela tarde foi o mais abundante de todos: Hércules devorou sete carneiros assados.
Anteu era o terror da Líbia. Seu maior gosto consistia em provocar para a luta todos os estrangeiros aparecidos por lá; matava-os, e com os ossos ia erguendo um horrível templo em honra a Netuno. Morava em Tíngis, onde fica hoje a cidade de Tânger — e Tíngis se chamava assim justamente por ter sido fundada por Tinge, a mulher de Anteu.
Para chegar até lá, o grupo de Hércules tinha de atravessar o Mediterrâneo, e surgiu uma dificuldade: Meioameio! Como não houvesse memória de centauro embarcado em navio, Pedrinho não achou conveniente que o centaurinho seguisse com eles. Podia acontecer muita coisa. Ficou resolvido que Meioameio os esperasse lá naquele promontório da Maleia onde já haviam estado.
Hércules era um em terra e outro no mar. Enjoou, coitado! E que coisa horrível foi o enjôo de Hércules!... Chegou a assustar as sereias e nereidas com os seus tremendos vômitos...
Afinal chegaram, e a entrada de Hércules em Tíngis foi uma verdadeira entrada triunfal. Até lá havia chegado a fama do grande herói heleno, de modo que a população, que vivia esmagada pelo despotismo daquele rei, encheu-sede esperanças. Quem sabe se o herói heleno não realizaria o sonho secreto detodos: libertar o reino do cruel despotismo de Anteu?
Todos queriam vê-lo e assombravam-se diante da sua impressionante musculatura. Anteu foi logo notificado da presença do grande heleno — e riu-se, como quem diz: "O templo que estou erigindo em honra a meu pai será enriquecido demais uma bela camada de ossos." E mandou desafiá-lo para a luta.
Hércules aceitou o desafio.
Na hora marcada a população inteira de Tíngis se reuniu na praça principal afim de assistir a mais uma das lutas do soberano com um estrangeiro. Já estavam cansados de presenciar essas lutas e de testemunhar a invencibilidade de Anteu, mas daquela vez uma vaga esperança luzia em todos os corações.
— Como vai ser a luta, Lelé? — perguntou Emília. — Com clava ou com arco e flecha?
Hércules respondeu que seria luta corpo a corpo, sem armas, só de músculo contra músculo.
— E vou aplicar aquela sugestão sua, Emília; vou "desligar" o gigante, como lá no mundo moderno vocês desligam a tal eletricidade.
Minervino continuava apreensivo, mas quando soube que Hércules ia pôr em prática a ideia da Emília, murmurou mais aliviado: "Quem sabe?"
Chegou a hora. Nunca fora vista em Tíngis maior massa de povo. A expectativa era enorme. — Corriam de boca em boca mil versões sobre as façanhas realizadas por Hércules — a destruição do leão da lua, do javali do Erimanto, do touro de Creta, e muita gente apostava nele. Os partidários do tirano apostavam em Anteu, mas secretamente torciam pela vitória do grego.
Hércules apareceu na praça acompanhado de seus estranhos amigos — Minervino, Pedrinho, o Visconde e Emília. Inúmeros curiosos rodearam o grupo e não cessavam de espantar-se ante a curiosíssima figurinha da "aranha de cartola".
De repente, um murmúrio no povo. Era Anteu que vinha vindo. Chegou.
Emília teve uma pequena decepção. Em vez dum gigante de 36 metros de altura, do tamanho duma torre de igreja, viu aparecer um homem de apenas mais um palmo que Hércules.
— Por que isso? Não tinha ele então 60 côvados?
Quem conta um conto aumenta um ponto, diz o ditado. A altura de Anteu era só um palmo maior que a de Hércules; mas isso contado desde ali da Líbia até a Hélade, ia aumentando de pontos até dar 60 côvados. Não havia dúvida, porém, de que Anteu era um gigante, como também Hércules era bastante agigantado. Sim: dois "massas".
Os formidáveis contendores mediram-se com os olhos. Anteu estava risonho o riso dos lutadores seguros de si e jamais derrotados. Tinha fama de invencível, e ninguém mais do que ele acreditava nessa invencibilidade. Hércules apresentou-se sereno como sempre. Seu rosto não revelava a menor expressão de inquietude.
— Preciso desses ossos! — disse Anteu numa gargalhada.
Em vez de replicar, Hércules atacou. Mas atacou como atacava sempre, confiante na sua força e certo de suplantar o adversário. Em todas as lutas vence o mais forte, o que bate mais, o que se cansa menos. O cansaço é a principal causa de todas as derrotas. Quem agüenta um minuto mais que o parceiro, está vencedor. Hércules não o ignorava. Naquele dia, porém, teve ocasião de verificar a "incansabilidade" de Anteu. Depois de meia hora de luta, atracado com o Número Um de todos os grandes lutadores da antiguidade. Anteu apresentava-se ainda mais fresco do que uma bela manhã de maio. E sorria o sorriso descuidoso dos invencíveis.
O calor da luta fizera que Hércules esquecesse completamente a ideiazinha da Emília quanto à "desligação" do gigante; de modo que estava a lutar com Anteu como sempre lutara até ali. Mas estranhou uma coisa: nunca, em tempo algum, houve contendor que resistisse tanto. Em regra o nosso herói derrubava o adversário nos primeiros golpes. E Anteu resistia já de meia hora sem apresentar o mínimo sinal de cansaço. Hércules começou a inquietar-se.

Nesse momento Emília gritou:
— Desligue, Lelé!...
Um clarão iluminou o cérebro do herói. Lembrou-se da conversa sobre a eletricidade e do plano que ele havia concebido de destacar do solo os pés de Anteu. Como fora esquecer-se daquilo? Que cabeça a sua!... Mas estava salvo. A advertência de Emília viera muito a tempo.
Hércules deu então um golpe habilíssimo, do qual resultou ficar Anteu de pernas para o ar, completamente destacado da terra, e enquanto com uma das mãos lhe apertava o pescoço. com a outra o impedia de pousar os pés no chão. A força de Anteu esvaiu-se como por encanto. O gigante estrebuchou no ar e moleou o corpo... O povo estava no maior estarrecimento de assombro. Ninguém falava.
Todas as respirações suspensas, como no circo de cavalinhos quando a música pára. Por alguns instantes Hércules ainda manteve suspenso aquele corpo sem vida; depois arremessou-o ao solo — e o gigante aplastou-se como um pano molhado que cai...
A multidão continuava paralisada de espanto. Seria possível? Estariam realmente libertos do odioso rei? E todos esfregavam os olhos, com medo de que fosse sonho. Mas quando se convenceram de que não era sonho e sim maravilhosa realidade, o hurra que o povo deu foi um urro uníssono que durou minutos e minutos.
— Viva Héracles, o herói invencível! Viva Héracles — o nosso libertador!
Uma onda de gente lançou-se de rumo ao herói para erguê-lo e carregá-lo em triunfo. Hércules chamou Emília.
Ergueu-a e levou-a ao braço, como uma menina leva uma boneca. E lá seguiu para o palácio sob o delírio das aclamações. Uma voz gritou, indicando Emília:
"É o talismãzinho dele! Um talismã vivo!...” Hércules respondeu: "Mais que isso. É o meu verdadeiro cérebro. É a minha dadeira de ideias..." palavras que ninguém podia entender. Minervino seguia rente, com o Visconde erguido ao ombro e a mão dada a Pedrinho. E foi a primeira vez que Pedrinho lamentou não ser gente grande, pois, comprimido na imensa massa de povo, era arrastado pela onda e não via coisa nenhuma.
No palácio o povo quis que Hércules ocupasse o trono da Líbia. Um rei como aquele, que regalo! E num momento de embriaguez o herói quase aceitou a coroa tão espontaneamente oferecida. Mas o "talismã" chamou-o à ordem. "Não pense em tronos, Hércules. Dona Benta diz que o pior dos monstros é o povo, porque um dia aclama os chefes e no dia seguinte os destrói. Nada como ser "herói em seco” — só, sem mais nada." Hércules deu-lhe razão e agradecendo a manifestação popular, declarou que o trono da Líbia tinha de ser ocupado pelo mais digno dos líbios. O povo que o escolhesse e o sentasse no trono por tanto tempo ocupado pelo cruel Anteu. Terminada a grande manifestação, Hércules foi ao templo de Netuno, feito com os ossos das pobres vítimas do gigante, e destroçou-o a pontapés. Emília gritou para Pedrinho que não se esquecesse de meter no bolso uma vértebra para o seu museuzinho.
À noite houve um grande banquete oferecido ao herói. Hércules comeu como nunca — e beberia de cair, se Emília não interviesse: "Nada de excessos alcoólicos, Lelé. Muito perigoso. Você perde a cabeça e põe-se a fazer estragos nestes pobres líbios tão entusiastas." Hércules obedeceu e só tomou água com mel.
No dia seguinte o herói amanheceu outro. Havia sarado completamente do acesso de "cólera recolhida". O Visconde observou que para os grandes heróis só os grandes remédios. "Um mortal comum cura-se com qualquer laxante de sulfato de magnésia, para um Hércules o purgante tem de ser um Anteu."
Um egípcio aproximou-se e disse:
— Grande Héracles, meu país também está necessitado de uma limpeza no trono. Temos como rei um verdadeiro monstro, talvez ainda pior que Anteu.
— Quem é ele?
— Busíris, filho de Posseidon e Lisianasa. Anteu lutava e matava todos os estrangeiros aportados na Líbia. Busíris sacrifica no altar de Zeus todos os que aportam ao Egito. Por que não vais lá e não libertas o nosso povo daquela calamidade feita homem?
Hércules olhou para Emília como quem pede parecer. Emília disse:
— O papel dos heróis é limpar de monstros o mundo. Vá, Lelé, e achate com o tal Busíris.
Hércules prometeu e, depois de despedir-se do novo rei e daquele bom povo, tomou o rumo do Egito.
Busíris no começo não se revelara cruel, e assim foi até o dia em que uma grande seca assolou o país. Nove anos durou tal seca. Os bois foram definhando todos. As plantações secaram-se. Gente morria de fome por todos os cantos. Vendo a gravidade da situação, um famoso adivinho daquela época, de nome Frásio, procurou o rei e disse:
— O meio de pôr fim à horrível estiagem que está destruindo o Egito é um só: sacrificar a Zeus um estrangeiro.
Frásio era estrangeiro, e Busíris fez como o tirano Fálaris: mandou agarrá-lo e sacrificá-lo no altar de Zeus. E como por coincidência viesse uma chuva no dia seguinte, Busíris convenceu-se de que o meio de fazer chover estava realmente naquilo — nunca mais cessou com os sacrifícios humanos.
Minervino advertiu ao herói do grande perigo que era para um estrangeiro penetrar no reino de Busíris, o qual possuía grandes exércitos. Mas aconselhado pela Emília o herói desprezou o conselho da prudência e transpôs as fronteiras do Egito.
Ao ter conhecimento do fato e dos propósitos de Hércules, Busíris enfureceu-se e lançou contra ele um exército de dez mil núbios ferozes como tigres. Hércules foi capturado, acorrentado e conduzido à presença de Sua Majestade.
— Sei o que fizeste para o meu grande amigo Anteu — disse-lhe Busíris, mas vou vingar a majestade real ofendida pelo teu crime. Serás sacrificado amanhã no altar de Zeus.
Os pica-pauzinhos ficaram numa grande aflição. Pela primeira vez viam Hércules dominado e infamemente acorrentado. E como o exército de Busíris era um verdadeiro enxame de vespas ferozes, armadas de lanças pontiagudíssimas e escudos de couro de rinoceronte, Pedrinho e o sabuguinho consideraram tudo perdido. Unicamente Emília não perdeu a fé no herói.
— Ele arruma-se — dizia ela.
— Como, boba?
— Não sei; só sei que no último momento dá um jeito. Tenho a mais absoluta confiança em Lelé.
Mas apesar da confiança da Emília, Minervino, Pedrinho e o Visconde não viam de que modo o herói acorrentado pudesse arrumar-se — e estavam na maior angústia.
Chegou o dia do sacrifício. Numerosos sacerdotes dispuseram-se em redor do altar de Zeus à espera da vítima. E quem era a vitima a ser sacrificada a Zeus? Justamente um dos mais generosos e famosos filhos de Zeus...
Minervino e os pica-pauzinhos fora colocar-se num ponto de onde tudo podiam ver — o Visconde e Emília erguidos nos braços do mensageiro de Palas, Pedrinho de pé sobre um bloco de granito.
Súbito, a multidão rumorejou e abriu alas. Era Hércules que vinha vindo, seguido duma legião de soldados. Busíris e seus cortesãos ocupavam uma plataforma erguida às pressas para aquele fim.
Emília viu Hércules e a despeito de sua confiança no destino do herói teve vontade de chorar. Lá vinha ele acorrentado de pés e mãos e, por ironia, coberto de guirlandas de flores de lótus, que é a principal flor do Egito. O sacerdote sacrificador, lá diante do altar correu o dedo pelo fio da faca sagrada. "Se cortasse o dedo seria bem feito!" — pensou Emília.
Hércules parou diante do altar. Não havia mudado em coisa nenhuma. A sua confiança em si próprio só era igualada pela confiança de Emília no destino dele.
O sacrificador subiu a um banquinho, porque se tratava duma vítima muito alentada, e ergueu a faca. Ia cravá-la na garganta do herói...
Mas o que houve até parece mentira. Naquele momento Hércules contraiu os músculos num esforço potentíssimo — e as algemas de ferro que o ligavam às correntes se romperam como se fossem de vidro. Libertou-se e, agarrando as correntes, utilizou-se delas como se fossem a sua clava. Num ápice varreu a soldadesca toda. O "espalha" foi dos nunca vistos. Corpos despedaçados voavam em todas as direções. A grita se fez imensa. Todo mundo fugia no maior pânico. O chão ficou juncado de escudos e lanças. Um grande claro se abriu em redor dele.
Lá na plataforma, Busíris e os cortesões agitavam os braços, sem saberem o que fazer. Muitos fugiram a tempo. Os que patetearam
foram atingidos pelas correntes que o herói arremessou — e caíram esmoídos. Um elo da corrente alcançou Busíris pela testa, e a mioleira espirrou como espirra água de poça quando cai uma pedra em cima. Hércules havia libertado o mundo de mais um odioso rei. E como a mesma corrente havia alcançado Afidamante, filho de Busíris, e o arauto Calves, ficou o Egito também livre daquele filhote de serpente e do odioso anunciador das ordens cruéis do soberano esmigalhado.

As éguas

Depois de mais aquele tremendo feito. Hércules ficou radicalmente curado de qualquer restinho de "cólera recolhida" que por acaso ainda houvesse em seu coração — e lembrou-se das éguas de Diómedes.
— Sim, temos de cuidar disso. Cada dia que passo aqui, mais vítimas lá nos bistônios são devoradas por aqueles monstros — e deu ordem de volta.
A volta de Hércules para a Grécia foi rápida, e ocorreu sem outro incidente além do novo enjôo que o assaltou na travessia do Mediterrâneo. Que horríveis os enjôos do herói!... O Visconde aconselhou-o a cheirar e morder um limão, mas nunca houve remédio mais inútil. Hércules só sarou quando pôs o pé no promontório da Maleia.
Lá estava Meioameio a esperá-los. Aproximou-se no galope, alegre e radiante como um menino que entra em férias. Pedrinho, Emília e o Visconde, todos falavam ao mesmo tempo. Cada qual queria ser o primeiro a contar os tremendos casos sucedidos na Líbia e no Egito.
Depois conversaram sobre Diómedes. Meioameio contou que dava pena o que se passava por lá. As éguas carnívoras tinham um apetite hercúleo. Devoravam uma vítima por dia. Quatro éguas, quatro vítimas. O infame Diómedes espalhara um verdadeiro batalhão de guardas pelas costas a fim de recolher os pobres náufragos. Era o que toda gente por ali dizia.
Prosseguindo na viagem, o grupo chegou à terra dos bistônios, onde acamparam fora da cidade em que residia o rei. Hércules, que estava cansadíssimo porque a viagem por mar o enfraquecera muito, determinou refazer-se com dois dias de repouso absoluto — e pediu a Pedrinho que fosse ver onde ficavam as éguas.
Pedrinho partiu com o Visconde.
As éguas viviam num estábulo de granito, solidamente acorrentadas. Quem tirou a limpo esse ponto foi o Visconde. Pedrinho ficou de longe, escondido atrás duma árvore. As comissões mais perigosas sempre cabiam ao sabuguinho. Pequeno como era, e com o seu ar de aranha de cartola, com facilidade se insinuava por toda parte sem que o percebessem. O seu reduzido tamanhinho facilitava tudo — e se por acaso levasse a breca, tia Nastácia fazia outro. Sabugos não faltavam no sítio de Dona Benta.
O Visconde chegou até a entrar no estábulo das monstruosas éguas para verificar se tinham realmente cascos de bronze. Tinham. Ele bateu num deles com um pedregulho.
Terminado o repouso, Hércules levantou-se completamente refeito da viagem por mar e pronto para a realização da nova proeza. Seguiu o caminho indicado pelo Visconde, indo dar nos estábulos. Diante das éguas se deteve para estudar a situação. Eram quatro. Tinha de arrancá-las dali uma por uma; isso, porém, depois de destroçar uma dúzia de guardas ali postos por Diómedes. Essa parte foi a mais simples. Com doze golpes de clava Hércules abateu os doze guardas.
E agora? Como fazer com as éguas?
Lembrou-se duma coisa. Perto morava Abderos, um seu amigo. Submeteria as éguas e as levaria a Abderos para que as guardasse. Por que isso? Por que não as destruía duma vez? A explicação era a seguinte: Hércules desejava pregar em Diómedes uma grande peça: fazer que aquelas éguas, que já haviam comido tanta gente, também o comessem a ele. Deixava-as guardadas por Abderos; e depois de derrotar as forças de Diómedes e aprisionar esse rei, então o faria devorar pelas éguas. Um malvado daquela marca estava a reclamar um castigo assim. E Hércules subjugou uma por uma as éguas e as levou para a vila de Abderos.
— Conserve-as aqui até que eu traga a sobremesa que merecem estas devoradoras de gente.
Disse e voltou para desafiar Diómedes e suas forças.
O exército dos bistônios foi facilmente derrotado e Diómedes aprisionado. Hércules acorrentou-o e levou-o à morada de Abderos, mas lá passou por uma grande decepção: as éguas haviam devorado o seu pobre amigo...
A dor de Hércules foi imensa. Depois da dor veio a cólera — e, agarrando Diómedes, arremessou-o para cima dos monstros famintos. Pedargo foi a primeira que mordeu. Lampon, Janto e Deno vieram a seguir. Em segundos Diómedes se viu estraçalhado e transferido para o bucho das feras.
E agora? Matá-las? Não. Tinha de levá-las vivas a Euristeu, pois do contrário o desconfiado rei não acreditaria na realização do oitavo Trabalho de Hércules.
Mas como levá-las ali da Trácia até Micenas? Conduzir o touro de Creta fora fácil, porque o touro era um. Tratando-se de quatro éguas a dificuldade quadruplicava. A solução que Hércules achou foi muito simples: levá-las uma a uma. Para isso teria de fazer quatro vezes o trajeto dali a Micenas, ida e volta.
O que se fez. As éguas foram levadas uma a uma e deixadas escondidas lá na floresta do acampamento. Como não comiam capim, houve necessidade de alimentá-las com carne — e os rebanhos dos arredores sofreram forte devastação.
Depois de conduzir para a floresta as quatro éguas e de deixar lá o Visconde a guardá-las, o herói foi ao palácio como das outras vezes.
— Quero falar com Sua Majestade — disse ao porteiro — e o porteiro o introduziu à real presença.
— Majestade, as éguas de Diómedes, comedoras de gente, já se acham aqui, conforme as ordens recebidas.
— Onde?
— Na floresta do nosso acampamento, guardadas pelo meu escudeiro.
Euristeu desapontou pela oitava vez. O despeito o fez morder os lábios. Olhou para Eumolpo. O ministro tinha a cara no chão. O rei segurou a barba. Ficou pensando por alguns segundos. Depois disse:
—Muito bem. Solte-as...
Hércules não discutia ordens. Não fez nenhum sinal de estranheza. Limitou-se a uma curvatura de cabeça.
— Assim será feito, Majestade — e voltando ao acampamento disse a Pedrinho: “Euristeu ordenou-me que soltasse as éguas.”
— Soltá-las? — exclamou o menino, admiradíssimo. Soltar essas feras antropófagas?...
— É o que me resta a fazer...
Pedrinho não compreendia aquela estranha submissão de Hércules ao rei. Com um peteleco podia mandá-lo para o beleléu, e no entanto humilhava-se diante dele, executava-lhe todas as ordens por mais absurdas que fossem, como faz o escravo para o senhor.
O Visconde estava sentadinho num toco de pau lá na fímbria da floresta.
Hércules gritou-lhe de longe:
— Solte as éguas, escudeiro!...
Emília espantou-se daquele absurdo. Que coisa!... Mandar o coitadinho soltar quatro monstros antropófagos, pesadamente acorrentados. A forcinha do Visconde não dava nem para erguer um dos elos das correntes. Será que o herói enlouquecera de novo? — cochichou ela para Pedrinho. E protestou:
— Isso também não, Lelé. É preciso respeitar a fraqueza humana.
Hércules deu uma grande risada.
— Estou brincando — e foi ele mesmo soltar as éguas.
Os pica-pauzinhos treparam à árvore mais próxima e foi lá de cima que assistiram ao terrifico espetáculo da galopada das éguas de Diómedes por aqueles campos afora...
Que destino tiveram tais monstros? Dias depois vieram a sabê-lo por Minervino, quando o mensageiro de Palas voltou da mansão dos deuses.
— Foram devoradas por um bando de lobos nas encostas do monte Olimpo.
— Lobos? — exclamou Emília muito assustada. — Lá é possível que existam lobos capazes de devorar semelhantes monstros?
Minervino explicou que era um bando de lobos olímpicos. Revoltado contra o procedimento de Euristeu, o deus dos deuses lançou contra elas um bando de lobos ferocíssimos.
— Por que não as matou com aqueles raios fabricados por Hefaistos? — quis saber Emília.
— Porque Zeus reserva os seus raios para fulminar os homens.
No dia seguinte recebeu Hércules um chamado de palácio. Foi. O rei já havia conferenciado com Eumolpo e escolhido mais um Trabalho para o herói — o nono. E foi nestes termos que o comunicou: — "Hipólita, a rainha das amazonas, possui aquele cinto maravilhoso com que Ares a presenteou. Minha filha Admeta faz questão de ser dona desse cinto. É só."
Hércules voltou para o acampamento tão apreensivo como das outras vezes. Era tal qual o General Napoleão que, consultado sobre o que sentia antes de travada a batalha, respondeu: "Medo". Cada vez que Euristeu o incumbia dum trabalho, Hércules sentia medo. Assim foi naquele dia. Quando chegou ao acampamento ainda estava inquieto.
— Que vai ser agora? — perguntou Pedrinho, que lhe saíra ao encontro. Hércules suspirou.
— Algo terrível. Admeta, a ambiciosa filha de Euristeu, quer ser dona do famoso cinto que Ares deu à rainha das amazonas. Tenho eu de ir ao reino dessas terríveis guerreiras em busca do tal cinto...
— Está com medo, Hércules?
— Medo propriamente não — declarou o herói — mas não me iludo quanto às dificuldades desse trabalho. As amazonas são guerreiras terríveis e numerosíssimas — e o pior é que são mulheres. Nunca lutei contra mulheres, chego até a achar uma coisa sem jeito. Daí vem a minha preocupação.
Perto dali, lá defronte do Templo de Avia, estava Emília sentadinha ao lado do Visconde, falando mal de Juno.
— Bisca maior nunca vi! — dizia ela. — Má, má, má até ali. Parece até aquela negra lá perto da ponte, que matou a filha de tanta judiação. Ah, se eu fosse Zeus! Jogava aquela bisca lá de cima com um bom empurrão, e casava-me com Palas. Essa, sim, merece ser deusa.
O Visconde recordou a advertência de Minervino sobre o perigo de falar mal dos deuses.
— Ela não escuta — disse Emília. — Estou falando baixinho... Além disso, eu...
Emília não acabou a frase. Tentou concluí-la e não pôde. Ficara subitamente áfona, ou sem voz. Muda! Muda como um peixe! Pensava direitinho, queria falar e nada — de sua boca não saía som nenhum. O Visconde, impressionadíssimo, examinou-lhe a garganta. Depois foi correndo avisar Pedrinho, lá às voltas com Hércules.
— Pedrinho — disse ele — parece que Emília emudeceu...
— Emudeceu? Como? Que história é essa?...
— Emudeceu; ficou muda; perdeu a faculdade de falar.
— Como?...
— Estava conversando comigo muito bem, ali na porta do Templo, e de súbito parou no meio duma frase: "Além disso, eu..." Pôs-se a fazer caretas, esforçou-se e nada. Nada mais saiu, nem sai. Espiei a gargantinha dela. Tudo normal. É um mistério que não compreendo.
Pedrinho correu a ver. Encontrou Emília muito agitada, querendo falar e não podendo. Muda. Absolutamente muda! Na ânsia de explicar-se, foi lá à canastrinha, tirou um pedaço de papel e com um toco de lápis escreveu: "Quebrou-se lá dentro de mim alguma peça. Quero falar e não posso. Tenho medo de que seja castigo do céu; eu estava falando mal de Juno, a coitada, uma deusa tão bonita e boa! Se ela tem ódio a Hércules é com razão. Hércules não tem culpa nenhuma, bem sei, mas Juno tem razão. Coitada!... Há de sofrer muito com aquele marido tão ruim... Perdão! Zeus também não é ruim, coitado. Só que a trabalheira dele é demais..."
Pedrinho perguntou:
— Mas não pode mesmo falar nada, Emília?
E ela escreveu: "Não está vendo? Felizmente não fiquei surda e me arrumo deste modo: ouço e dou a resposta por escrito...”
— Mas isso não pode ficar assim, Emília. Temos de ver um jeito de curar essa mudez. Se for coisa do Olimpo, nós nos arranjaremos com Palas por intermédio de Minervino. E se for algum desarranjo fisiológico, podemos consultar os grandes médicos de Atenas — ou então procuraremos Medeia. Ela dá uma fervura e pronto.
Emília escreveu: "Não quero que me fervam. Tenho medo de ficar cozida por dentro. A minha mudez há de ser mesmo coisa lá do Olimpo, porque veio exato no momento em que eu a chamava de bisca. Minervino me há de valer."
O mensageiro de Palas era um homem esquisito. Ora estava ali, ora não estava. Aparecia e desaparecia sem dizer adeus — mas naquele momento em que tanto precisava dele, nem sinal de Minervino.
O Visconde contou a Hércules a história da subitânea mudez da Emília.
— Pois é isso. Parou no meio da frase e nunca mais. Mudíssima, coitadinha...
Hércules não queria acreditar.
— Há de ser coisa passageira. Uma vez fiquei assim por causa dum forte resfriado. Perdi completamente a voz...
— Ficou áfono — disse o Visconde.
Hércules não entendeu. O sabuguinho explicou:
— Pois "áfono" (privado da voz) é uma palavra grega. "A" quer dizer sem , e "phone" você sabe que é "voz". Nós lá no nosso mundo moderno usamos muitas palavras vindas daqui, como "fonógrafo", escrita da voz; "fotografia", escrita da luz, isto é... — e o Visconde explicava, explicava e Hércules não entendia. Apesar de grego, o herói ignorava as palavras gregas da ciência, que o Visconde, que era sabugo, tinha na ponta da língua.
Hércules admirava muito o Visconde. Ficava às vezes horas a ouvi-lo falar das tais coisas científicas, fazendo os maiores esforços para entendê-lo. Por causa daquela sua "ideia sobre a educação", o herói procurava educar-se nas cienciazinhas do escudeiro.
— Pois é — disse o Visconde. — Emília está áfona — sem voz — muda... Você também ficou áfono por causa do resfriado. E muito receio que a mudez da Emília seja uma vingança de Hera.
— Por quê?
— Porque Emília estava falando mal de Hera quando emudeceu. Emília não tem papas na língua. Diz tudo quanto sente. E como está de ponta com Hera, volta e meia a trata de "bisca"...
— Que é bisca? — perguntou Hércules.
O Visconde disse tudo o que sabia sobre a palavra "bisca" e rematou:
— Quando lá no sítio a gente quer falar mal duma pessoa, diz "é uma peste", “é uma praga” ou “é uma bisca". Emília vivia chamando Hera de bisca — e foi numa dessas vezes que emudeceu...
Hércules ficou pensativo. Depois levantou-se e foi ver a nova vítima da vingativa deusa.
— Então, Emília? É verdade que perdeu a fala?
Emília fez uma carinha de "sim" que deixou o herói seriamente condoído.
— Temos de cuidar dela — disse ele voltando-se para Pedrinho. — Palas, a boa deusa que tanto me tem valido, há de valer a ela também. Aguardemos a vinda do mensageiro.
A mudez da Emília foi um sério transtorno para o herói e os pica-pauzinhos. Emília era a alma do bando. Sem Emília ninguém se arrumava — além de que só ela possuía o segredo mágico do faz-de-conta, esse supremo recurso das ocasiões de grande perigo. Se não fosse a aplicação do faz-de-conta na luta de Hércules com o javali do Erimanto, onde estaria o herói naquele momento? Com certeza morto e enterrado. E como era assim, Hércules decidiu que a restauração da voz da Emília tinha muito mais importância para todos eles do que a conquista do cinto de Hipólita.


A mudez da Emília

Todos os outros assuntos foram encostados. Hércules e Pedrinho não tiravam da cabeça o caso daquela misteriosa mudez. Como não pudessem encontrar uma "causa fisiológica", como dizia o Visconde, assentaram em que a causa era divina — evidentemente vingança de Juno.
A pobrezinha estava tão convencida disso que entrou a adular a deusa. O Visconde pilhou o papel em que ela acabava de escrever uma oração assim: "Divina Juno, a mais formosa das deusas, a mais bondosa de todas — protegei-nos! Se te ofendi, perdoa-me. Uma deusa tão importante não pode vingar-se duma pobrezinha como eu, feia, boba etc." e ia por aí além, com as maiores adulações possíveis. Depois pediu a Pedrinho que construísse um altar em honra a Juno e o encheu de flores.
Hércules estava profundamente comovido e a estranhar uma coisa: como é que já tendo sido pai de vários filhos nunca sentiu por nenhum deles o que sentia por aquele pelotinho de gente?
Dois dias passaram eles ali a só pensarem naquilo, cada vez mais ansiosos pela volta de Minervino. No terceiro dia pela manhã o mensageiro de Palas reapareceu.
— Que há? Que tristeza é essa? — disse ele, percebendo que algo de anormal havia acontecido.
Pedrinho explicou o caso da mudez.
— Hum! — exclamou o mensageiro. — Eu bem que avisei. Eu bem que andava prevendo isso. A irreverência da Emília tinha de acabar mal. Não conheço a causa da mudez; mas estou a jurar que e uma vingança de Hera...
— Vem vindo do Olimpo? — indagou Pedrinho. — Não ouviu nada por lá a respeito?
— Nada. Estive combinando com Palas a defesa de Hércules no novo Trabalho que ele vai empreender. As amazonas são as mais terríveis guerreiras que o mundo já viu. Palas fez-me mil recomendações.
— Pois só vejo uma saída — disse Pedrinho, — você voltar ao Olimpo para discutir o caso da Emília. Já que Palas se interessa tanto por Hércules, não há de querer que ele fique privado da ajuda da Emília. No caso do javali foi ela quem salvou tudo. E mesmo no caso de Anteu, se não fosse a sua lembrança da "desligação" é muito possível que a luta acabasse de outra maneira. E Hércules já disse que não dará um passo para a ida à terra das amazonas antes de resolver o caso da Emílía. Volte já ao Olimpo para conversar com Palas.
Minervino concordou. Era de fato o que havia a fazer — e lá partiu para o Olimpo.
Encontrou os deuses a se banquetearem. O lindo Ganimedes, com uma ânfora de ouro em punho, estava a servi-los de néctar. Zeus, imponentíssimo em sua barba olímpica, comentava o caso da briga entre Apolo e Hércules.
— Ah, estes meus filhos! — disse ele depois de sorver um gole da divina bebida e lamber os beiços. — Vivem em rixas. Nós que devíamos dar o bom exemplo aos humanos, comportamo-nos ainda pior que eles. Que trabalho tenho para harmonizar estes deuses e deusas!... Hera me dá mil aborrecimentos com o seu inextinguível ódio a Hércules — e agora é Apolo que também se põe contra ele...
Apolo procurou justificar-se.
— Reconheço as qualidades de Hércules, mas também reconheço que freqüentemente se excede. Desta vez, por exemplo. Não só se atreveu a matar um humano que me fazia um sacrifício, como foi a Delfos e arrancou de lá a trípode. Ora, isso também é demais...
— Fez muito bem! — disse Palas. — A Pítia ofendeu-o da maneira mais brutal. Ele queria consultá-la para conhecer o teu pensamento, Apolo, e certamente se submeteria ao que tu, por intermédio da Pítia, lhe dissesses. Mas a Pítia deu-lhe as costas...
— E fez o que devia fazer, — contraveio Apolo. — Estava informada do crime de Hércules contra a pessoa dum meu devoto.
— Sus! Sus!... — exclamou Zeus. — Basta de recriminações. Penso como Palas. Se Hércules foi consultar a Pítia, é que estava com remorsos na consciência e procurava ser guiado. Hércules não mata por maldade. Erra muitas vezes, eu o reconheço, mas erra de boa fé.
Juno mordeu os lábios. A indulgência de Zeus para com o herói punha-a fora de si.
Foi nesse momento que Minervino entrou. Entrou na sala dos banquetes olímpicos e fez de longe um sinalzinho a Palas. A deusa levantou-se disfarçadadamente e foi ver o que era.
— Que há?
— Há que Emília perdeu o dom da voz. Emudeceu subitamente no meio duma frase...
Palas fincou os olhos em Juno, que naquele momento cochichava ao ouvido de Hermes.
— Escute. Sobre que assunto estava Emília falando no momento de emudecer?
Minervino respondeu muito baixinho: "Sobre Hera. Estava dizendo que bisca maior não pode haver."
Palas sorriu de satisfação, murmurando entre dentes: "E não disse nada de mais..." E depois de uns instantes de pausa:
— Pois já não tenho dúvida nenhuma: Emília emudeceu por interferência de Hera. Vejo nisso o dedo da "bisca". Depois daquele caso do javali do Erimanto, Hera jurou perder Emília. E na luta de Héracles com Anteu, ela também ouviu perfeitamente o conselhinho de Emília: "Desligue, Lelé!" e foi exatamente isso o que determinou a vitória. Observei tudo muito bem. Estávamos todos aqui assistindo à luta. Ao ouvir essas palavras Hera mordeu os lábios. Eu pensei cá comigo: "Pobre Emilinha! Nunca mais terá sossego..." E vem agora você com essa história da mudez...
Minervino disse que tanto Hércules como Pedrinho e o Visconde não viam outra solução afora a intervenção divina.
— Estão convencidos de que a mudez não sobreveio em conseqüência de nenhum distúrbio fisiológico, e sim da intervenção de Hera.
— E não erraram. Há de ter sido Hera, sim. Como está esperançosíssima de que Héracles perca a partida na expedição contra as amazonas, quer afastar a Emília...
E Palas ficou a refletir. Tinha de atrapalhar o jogo de Hera. Mas como? Depois duma breve pausa disse:
— Só vejo uma solução: Medeia. Hércules que a leve ao palácio de Medeia. Com uma boa fervura, a Emilinha fica totalmente nova e mais faladeira do que nunca. Aconselho isso.
O mensageiro fez uma reverência e saiu. Minutos depois chegava ao acampamento. Chamou Hércules de parte e deu-lhe conta da sua missão.
— Palas já está a par de tudo e acha que só uma boa fervura no caldeirão de Medeia poderá restituir a falinha da Emília.
O Caldeirão de Medeia

Foi um custo convencer Emília a se deixar ferver pela grande feiticeira.
—"Não quero, não quero" — escreveu no papelzinho. "Tenho medo de ficar cozida por dentro."
Minervino explicou que isso era absurdo. Todos tinham visto os bons resultados do caldeirão na experiência do Visconde — e também lá estava jovem e bonito aquele Rei Egon, de quase oitenta anos, que ela picou e ferveu. A fervura que cozinha por dentro é a fervura comum das cozinheiras. A fervura da grande feiticeira era magia da mais alta, e com efeitos muito diversos.
— "Tenho medo, tenho medo... escreveu de novo Emília.
Pedrinho interveio.
— Medo! Medo!... Estou admirado de ver essa palavra neste papel. Você lá no sítio nunca teve medo de coisa nenhuma, e agora está que nem vovó. Qualquer dia se põe a ter medo também das baratas...
Emília escreveu: "Pergunte ao Visconde o que ele sentiu."
Pedrinho perguntou.
— O que senti? — repetiu o Visconde.
— Ah, um atordoamento delicioso quando a feiticeira me dividiu em pedacinhos com aquela faca; depois perdi os sentidos. Quando acordei, me vi moço e corado...
Emília escreveu: "É que ele estava louco. Já comigo vai ser diferente porque não estou louca. Só se me cloroformizarem...
— Há clorofórmio por aqui? — perguntou Pedrinho ao mensageiro — e teve de explicar o que significava clorofórmio e quais os seus efeitos.
Minervino respondeu que não, mas havia várias plantas dormideiras de um efeito maravilhoso.
— Com uma gota do caldo dessas plantas o paciente dorme e não sente dor nenhuma.
Emília escreveu que não era "paciente" e sim impaciente; e que se de fato esses sucos adormeciam uma criatura, então, então..." e parou.
— Então o que? — Perguntou Pedrinho.
— "Então pode ser" — escreveu ela.
Bom. A resistência de Emília estava meio vencida. A outra metade seria vencida lá por Medeia — e Hércules deu ordem de marcha. Partiram. No dia seguinte chegavam ao palácio da feiticeira.
Hércules explicou o caso. Medeia, porém, não trabalhava de graça; e como ainda não houvesse recebido o pagamento da cura do Visconde, aproveitou-se da situação.
— Sim, disse ela. Poderei ferver a nova doentezinha — mas... e aquela sua dívida, Hércules?
O pobre herói coçou a cabeça. Eles são todos a mesma coisa: nunca pensam em dinheiro. D. Quixote era assim. Rolando também. Hércules, Teseu, Perseu, todos eram assim. E aquela exigência de Medeia o desnorteou.
Pedrinho meteu o bedelho:
— Emília tem uma canastrinha cheia de preciosidades. Pode muito bem pagar não só a cura do Visconde como a dela. Com o pomo de ouro, por exemplo...
— "Dar o meu pomo de ouro em pagamento da cura do Visconde? Oh, nunca!" — escreveu a muda no papelzinho.
— Cura do Visconde e a sua também, Emília. Não seja tão cigana. Que adianta possuir um pomo de ouro na canastra e ser muda? Pense bem.
Ao ouvir falar em pomo de ouro Medeia ficou toda assanhada. Não havia na Hélade quem não ambicionasse a posse da maravilha.
— E como conseguiu este pelotinho de gente um pomo com o qual todos os heróis vivem sonhando?
Hércules contou o caso do gigante Atlas. Medeia ficou mais assanhada ainda. Emília afinal cedeu.
— Sim. Vá lá. Fica o pomo pelas duas curas — e suspirou.
O pomo estava no acampamento de Micenas com a enorme pedra em cima. Só Hércules tinha a força necessária para removê-la — e lá vai o pobre Hércules para Micenas. Não havia o que ele não fizesse para o bem da sua dadeira de ideias. Enquanto o herói ia e vinha, ficaram todos hospedados no palácio de Medeia.
Passado algum tempo Hércules voltou. Vinha radiante, com o pomo na mão.
— Pronto!...
Medeia pegou na preciosidade e deslumbrou-se. Não havia dúvida que era realmente um dos tais pomos das Hespérides, de tanta fama no mundo inteiro.
Valia não duas, mais mil curas.
— Pois vamos começar a operação disse ela e encaminhou-se para a sala da fervura com todos atrás. Lá estava a grande caldeira ao fogo. Medeia botou mais lenha, e já de faca na mão olhou para Emília dizendo: "Aproxime-se!" Emília, porém, correu a agarrar-se a Hércules. Parecia tomada de grande medo. Medeia avançou em sua direção com a faca de Barba Azul em punho. Emília berrou:
— Não! Nunca!... Ser picada por esse facão? Nunca!...
— Mas é preciso, Emília — murmurou Hércules com toda ingenuidade, sem perceber que Emília já estava falando e portanto curadíssima da mudez sem necessidade de fervura nenhuma. — É preciso. Não posso dispensar o concurso de minha "dadeira de ideias" na viagem ao reino das amazonas; e que me adianta uma dadeira de ideias muda?
Todos assombraram-se da lerdeza do herói. Estava ouvindo Emília falar e ainda convencido de sua mudez! Pedrinho, num verdadeiro delírio de contentamento, abriu-lhe os olhos:
— Não vê que ela sarou por si mesma, Hércules? Não vê que está falando?
Hércules arregalou os olhos e compreendeu — e que alegria a sua! Agarrou Emília e beijou-a. Depois abraçou Pedrinho e o Visconde. Tudo salvo! Tudo arrumado! A mudez desaparecera do modo mais misterioso. O herói desconfiou que havia sido coisa dos deuses e correu os olhos em redor em procura de Minervino.
— Que é de Minervino?
Sumira-se momentos antes. Ao ver o pavor de Emília diante da enorme faca, o mensageiro apiedara-se dela e voara ao Olimpo.
— Palas, minha grande deusa, tende dó da coitadinha! Lá está diante de Medeia com a maior cara de horror que ainda vi. Horror da faca de picar gente... Veja se descobre outro modo.
Palas compreendeu tudo e foi cochichar qualquer coisa ao ouvido de Zeus — e Zeus então operou o milagre: fez que a fala de Emília voltasse sem o recurso da fervura.
Que alegria lá no palácio de Medeia! Pedrinho dava pulos de contentamento. O Visconde assoprava-se todo — sinal da"euforia" dos sabugos científicos. E Hércules então, esse babava-se de gosto.
Emília falava e falava sem parar, como para reaver o tempo perdido. Ficou tal qual aquela boneca de pano que lá no sítio de Dona Benta tomou as pílulas falantes do Doutor Caramujo e falou pela primeira vez. Falou tanto que Medeia teve de tapar os ouvidos.
— Levem esta diabinha daqui que já estou tonta.
Mas Emília continuou a falar e reclamou a devolução do pomo.
— Eu concordei em dar o pomo em troca da cura do Visconde e da minha. Mas como sarei por mim mesma, acho que a senhora só tem direito à metade do pomo...
Hércules arregalou os olhos. Que esperteza!... Ele não havia se lembrado daquilo — e declarou a Medeia que Emília tinha razão. Se o pomo fora aceito como pagamento de duas curas, o pagamento de uma cura só tinha de ser meio pomo.
Medeia afinal cedeu, de tão tonta que estava com o falatório da diabinha. E como fosse uma pena partir ao meio uma tal preciosidade, propôs dar em troca do pomo inteiro um talismã dos mais preciosos: uma varinha de condão.
Os olhos de Emília chisparam. Seu maior sonho sempre fora possuir uma varinha de condão — para "brincar de virar as coisas". Medeia foi lá ao quarto dos badulaques e trouxe uma varinha de condão como as que as fadas usam.
— Aqui a tem...
Emília até tremeu ao pegar a vara e foi a virar mil coisas pelo caminho que ela voltou para o acampamento.
— Saí ganhando! Saí ganhando!... gritava. Com esta varinha eu viro em ouro os pomos que quiser — e fez experiência numa azeitona. Com um toque da varinha virou-a num lindo pelote de ouro.
Hércules estava de boca aberta. Que prodígio de esperteza, a sua minúscula "dadeira de ideias! ..."

 

De "Os cavalos de Diómedes" para "Biblioteca"

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