Valdir Aguilera
 Físico e pesquisador

 

 

Os bois de Gerião

Monteiro Lobato

Hércules seguia na frente. Depois vinha Meioameio com Pedrinho no lombo. O asno Lúcio com Emília montada de banda como as mulheres que usam silhão e com o Visconde no picuá, vinha na retaguarda. Aposto que bem poucos sabem o que é "silhão" e o que é "picuá"!...
Silhão é uma sela de um estribo só, em que as mulheres de saia comprida cavalgam de banda; as que usam culotes montam à moda dos homens. E picuá é uma coisa facílima de compreender, vendo mas difícil de explicar com palavras. Uma espécie de dois bolsos ligados entre si, de modo que cada um fique numa banda do animal. E a carga que vai num dos bolsos faz contrapeso à que vai do outro.
Pedrinho havia feito um picuá de cipó, de modo que a canastrinha ficasse dum lado como contrapeso do Visconde, e o Visconde ficasse do outro lado como contrapeso da canastrinha. E assim, um contrapesando o outro, o picuá se equilibrava muito bem sobre o lombo de Lúcio.
O asno já não dava suspiro nenhum. Que gostosura lhe foi ver-se livre de Melampo! Emília era um peso-pluma. Quanto pesaria na balança? Uns oito quilos, se tanto. E o Visconde? Ah, esse não chegava nem a um quilo. Mas como, então, podia servir de contrapeso a uma canastrinha cheia de coisas, onde havia até uma pena de bronze? A explicação é que o Visconde pesava pouco, mas sua ciência pesava muito.
Emília de prosa com Lúcio, fê-lo contar sua vida inteirinha desde que nasceu.
Depois perguntou:
— Que ideia aquela de virar coruja?
Lúcio respondeu depois de profundo suspiro:
— Arrastamento. Puro arrastamento.Vendo a velha virar em coruja e sair pela janela, fui arrastado a fazer a mesma coisa. Não acontece isso a você às vezes?
— Está claro que acontece. Mas como é que vai pegar uma pomada de coruja e pega uma de quadrúpede? Não havia rótulo nos potinhos?
— Havia, mas estava escuro no quarto da velha, e talvez os rótulos estivessem trocados justamente para castigo dos intrusos. Essas feiticeiras são umas danadas — e a prosa foi por aí afora.
Pedrinho também não parava de conversar com Meioameio.
— Que mina, isso da gente ser metade homem metade cavalo! Fica-se com as vantagens dos dois — a enorme força, os quatro pés e a velocidade dos cavalos e a inteligência e a fala do homem. Mas uma coisa não compreendo: como é que sendo vocês, centauros, tão superiores a nós não centauros, tendo o mesmo cérebro que nós e muito mais força física e meios naturais de defesa, como é que não dominaram os homens?
Meioameio, que já estava com a inteligência bem desenvolvida e tinha observado e aprendido muita coisa, deu uma resposta certa:
— Por causa dele — e apontou para Hércules com o beiço.
— Como?
— Por causa dele, sim. Quem foi que destruiu quase todos os centauros? Ele. Como é que os centauros hão de dominar os homens, se ele não deixa haver centauros? Há pouquíssimos hoje. Nossa raça está se perdendo — por quê? Por causa dele...
Hércules seguia lá adiante, imerso em pensamentos. Estava a parafusar em Gerião. Como seria realmente esse Gerião? Cada qual afirmava uma coisa. Um, que era filho de Crisaor (o irmão de Pégaso) e da oceânide Calírroe; e que nascera com três cabeças e seis pernas. Outros davam-lhe seis cabeças e três pernas —uma grande trapalhada. Mas fosse como fosse, nada mais terrível do que esse monstro da Ilha de Eritia, dono de bois ainda mais belos que os de Creta.
Como todos os grandes heróis, Hércules no começo duma aventura mostrava-se inquieto; o sangue-frio só lhe vinha, e da maneira mais absoluta, quando defrontava o perigo.
E assim lá seguiam eles de rumo à Ilha de Eritia, cada qual preocupado com uma ordem de ideias.
Chegados à costa, Hércules mandou Pedrinho em busca de um navio que os levasse à ilha e ficou sentado por ali, num grande desânimo só de pensar no enjôo que ia padecer. Pedrinho conseguiu um bonito barco de vela de sessenta toneladas — um verdadeiro iatezinho de navegação costeira. Seu capitão, o velho Agatirso, assustou-se com a presença do jovem centauro — e mais ainda com o asno falante e a aranha de cartola. Mas acostumou-se depressa. Pedrinho fê-lo contar o que sabia do Rei Gerião.
— Então é rei também? — admirou-se Emília. — Que terra de reis e bois isto aqui! Quantos... O Visconde explicou que os reis gregos nada tinham com os reis modernos. Não passavam de chefes duma cidade ou dum limitado território. Mais ou menos como um "chefe político" , um "coronel" das cidades do interior. O "mandão", o"cacique.
— Sim, continuou Agatirso. Gerião é o rei da ilha, mas um rei monstruoso.Tem três cabeças...
— Ouço dizer mil coisas — disse Pedrinho. Uns falam em seis pernas e três cabeças, outros em seis cabeças e três pernas. Como será realmente esse monstro?
Agatirso sabia ao certo. Declarou até que já o tinha visto com seus próprios olhos.
— Tem três cabeças, sim — mas duas pernas só. A tal história das seis pernas não passa de fantasia.
— E que tal é como rei?
— Ah, a maior das pestes! Riquíssimo em rebanhos. Furta o gado de todo mundo e não há quem lhe furte um só cordeirinho...
— Por quê?
— Porque seus rebanhos são guardados não só pelo pastor Eurition, outro monstro de duas cabeças, como também por um terrível dragão de sete cabeças.
— Na ilha do Minotauro eram bois, aqui são cabeças... comentou Emília. Três no rei, duas no pastor, sete no dragão. Que cabeçada!...
Agatirso continuou:
— Além da sua ferocidade, Gerião tem fama de ser a criatura mais forte que o mundo jamais produziu. Luta no campo com os outros mais bravios como se fossem carneirinhos — e até o dragão o teme. E como goza de uma saúde excelente, ai de nós! Temos de suportá-lo ainda por muitos anos...
— Isso não — objetou Pedrinho. Não é nada impossível que de repente apareça um herói que dê cabo dele.
O velho Agatirso soltou uma risada gostosa.
— Dar cabo dele? Ah, ah, ah... Gerião é invencível. Herói nenhum ousa fazer-lhe frente, fica de pernas bambas só de avistá-lo.
E vendo Hércules de olho muito branco, caído por ali, já arrasado pelo enjôo, cochichou para Pedrinho: "Está vendo? O seu herói só de ouvir falar em Gerião já está bambo."
— Oh, não! — explicou Pedrinho. — Aquilo é enjôo. Hércules suporta tudo no mundo, menos viagem de mar. Ah, enjoa mesmo, vomita até os bofes.
Agatirso fingiu engolir a explicação: no fundo estava convencidíssimo de que a doença do herói era puro medo.
 
Muitas coisas ainda contou o velho capitão do barco. O rei de Eritia juntara o seu maravilhoso rebanho à custa dos vizinhos. Ia avançando nas terras alheias e pegando o mais bonito. Ficou assim com a flor do gado das redondezas.
— E dele ninguém tira um carrapato, de medo do pastor de duas cabeças e do dragão, sei — disse Pedrinho. — Mas quer apostar que Hércules varre com essa cabeçaria toda e leva os bois de Gerião para Micenas? Foi a ordem que recebeu do rei de lá; e quando Hércules recebe uma ordem do tal rei, cumpre-a com o maior rigor. Quantas coisas tremendas já não o vimos executar! — e desfiou a história dos nove trabalhos de Hércules já realizados.
Mesmo assim Agatirso olhava com desprezo para o "herói enjoado" e sorria com o maior ceticismo. Positivamente não acreditava que aquele massa-bruta valesse alguma coisa. Marinheiro que não enjoa despreza o embarcadiço que enjoa.

Oceano

Aqueles mares da Grécia tinham um azul especial, um azul muito anilado e transparente. A conversa passou de Gerião para o mar.
— O mar é o meu elemento — disse o velho marujo. — Desde bem menino que moro sobre as ondas. Posseidon é o meu grande deus.
O Visconde sabia mais de Posseidon, ou Netuno, do que aquele velho marujo.
Emília deu-lhe a palavra.
— Fale de Posseidon, Visconde.
O sabuguinho tossiu o pigarro e falou.
— Posseidon é uma das grandes divindades do Olimpo, irmão de Zeus e Plutão, o deus dos infernos. Para mim o maior dos deuses é justamente Posseidon, porque o mar é muito maior que a terra. Pelo menos é o deus com maior número de adoradores, porque no mar há milhões de vezes mais vidas do que na terra.
— E filho de quem era esse deus? — perguntou Emília.
— De Saturno. Este Saturno era o tal que devorava os filhos — e se não devorou Posseidon foi porque sua esposa Réia o enganou: apresentou-lhe embrulhado num pano um potrinho recém-nascido. Saturno devorou-o certo de que era o filho.
Emília fez cara de superioridade.
— Que reis e que deuses há por aqui! Comer carne de cavalo pensando que é carne humana...
Pedrinho admirou-se daquela observação.
— Ora esta! Como podia ele distinguir?
— Pois se eu fosse Saturno distinguiria perfeitamente.
— Como, Emília, se você jamais comeu nem uma carne nem outra?
Emília viu que era mesmo e calou-se. O Visconde prosseguiu:
— Os três grandes filhos de Saturno, salvos de sua fome, foram Zeus, Posseidon e Plutão. A Posseidon coube o reino das águas, os oceanos, os rios e mares por isso recebeu o tridente como símbolo do seu império.
— Como é que um tridente — ou garfo de três dentes — pode ser símbolo dum império?
O Visconde explicou muito bem.
— O império das águas é habitado por peixes e outros animais "caçáveis" com espeto, ou com tridente, ou com fisga. Melhor dizermos fisga. O tridente de Netuno era uma fisga de três pontas, com a qual ele fisgava os peixes que queria e também cutucava os cavalos da sua carruagem marinha. E furava a terra para dar nascimento aos rios. E quebrava rochedos, e batia nos vagalhões para apaziguá-los. Ora, nada disso Netuno poderia fazer com um chicote, por exemplo, ou com uma colher, ou com esses cetros todos bordadinhos que os reis de hoje usam. Nada mais natural, pois, que o tridente ficasse como o símbolo do império das águas.
— Uf!... — exclamou Emília. — E onde arranjou o tal tridente?
— Dizem uns que lhe foi dado pelo seu irmão Zeus. Outros, que foi um presente dos Ciclopes, aqueles gigantes de um só olho na testa. Agradecidos a Netuno por haver sustentado a causa de Zeus na luta contra os titãs, deram-lhe o tridente.
— Que história é essa? — exclamou Pedrinho. — Pois Netuno, irmão de Zeus, lá podia ser contra ele?
— Podia e foi inimigo de Zeus durante muito tempo, quando morava no Olimpo. Várias vezes conspirou contra Zeus, de cujas ordens fazia pouco caso. Dai vem a sua expulsão do Olimpo e o seu exílio para a Troada, onde, ajudado por Apolo, ergueu os muros da cidade de Tróia.
— Estou gostando de Netuno — disse Emília, que era muito revolucionária. — Rebelar-se contra Zeus, que lindo!
O Visconde continuou, com grande admiração do velho Agatirso, que apesar de grego era muito fraco em mitologia:
— Ah, era um deus vingativo e terrível. Foi quem suscitou o monstro que destruiu a Troada, e mais tarde aquele outro que quase devorou Andrômeda, e depois o touro maravilhoso que emergiu das águas e Minos não teve ânimo de sacrificar. Durante a guerra de Tróia tomou o partido dos gregos e dai veio o desastre dos troianos.
Fez mil coisas, inclusive contestar a Palas o direito de ser a padroeira de Atenas. A fim de decidir a briga, Zeus declarou que daria Atenas a quem fizesse o mais útil presente aos homens. E vai Netuno, então, bate na terra com o tridente e faz surgir o cavalo, animal que até aquele momento não existia...
— Espere, Visconde! — berrou Emília. — Se o cavalo não existia e foi criado por Netuno, como é que sua mãe enganou Saturno, dando-lhe a comer um potrinho em vez do próprio filho recém-nascido?
O Visconde suspirou.
— Ah, isso é um dos maiores mistérios da mitologia. Muitos sábios já quebraram a cabeça no estudo do problema. Eu não sei. O que sei é que apesar do cavalinho que Saturno comeu, quem com um golpe do tridente deu origem ao cavalo foi Netuno. O cavalo iria ser o maior amigo do homem. Era, pois, o maior presente que um deus poderia fazer à humanidade.
— E derrotou Palas?
— Não. A inteligentíssima Palas contrapôs ao cavalo outro presente de ainda maior utilidade: a oliveira.
Emília protestou. Não concordou que a oliveira fosse de maior utilidade que o cavalo, porque "sem a oliveira os homem se arranjariam perfeitamente mas sem o cavalo, como? Diz Dona Benta que sem o cavalo o homem estaria até hoje andando a pé."
— Pode ser — disse o Visconde — mas Zeus não pensava assim; e quem ficou a padroeira de Atenas foi Palas, em vez de Netuno. E vai Netuno então e, furioso, lançou o mar contra toda a Ática e a submergiu. É na Ática que fica Atenas.
— Sei disso. Já estive lá. E depois?
— Depois casou-se com Anfitrite — e foi grande vitória sua, porque esta filha de Oceano e Dóris não queria saber dele. Achava-o muito feio e até repugnante.Aquelas barbas verdes de algas marinhas,aquela catinga de maresia... E além disso era o pai de quanto monstro há nos oceanos.
— E onde mora Netuno? — quis saber Pedrinho.
— No fundo do Mar Egeu. É lá que tem os seus famosos cavalos-marinhos de crina de ouro e patas de palmípede, impetuosíssimos. Às vezes também usa uma carruagem em forma de concha, puxada por quatro delfins.
— Deve ser imponente Netuno a galope nesse carro!...
— Imponentíssimo. Ele sai de diadema de pérolas e nácar na cabeça, com o tridente numa das mãos e outra estendida como para acalmar as ondas. E quando anda nessa grande concha por sobre a tona do mar amansado, os monstros marinhos sobem das profundezas e seguem-no, os delfins brincalhões vão rebolando na frente.
— Estou achando muita graça nos deuses gregos. Eles, a bem dizer, não são deuses — são verdadeiros romances policiais. Bem diz Dona Benta que nunca houve imaginação mais rica que a dos gregos.
Pedrinho estava pensando em Andrômeda. Quis saber quem era. O sabuguinho contou.
— Andrômeda era filha de Cefeu, rei da Etiópia, e de Cassiopéia sua esposa. Um dia Cassiopéia teve a audácia de disputar um concurso de formosura com as nereidas do séquito de Netuno — e Netuno, furiosíssimo, lançou contra o reino de Cefeu um monstro horrendo. Cefeu, no maior desespero, consultou o Oráculo de Amon, que era o oráculo de Delfos lá da África. E o oráculo de Amon responde que o meio de aplacar a ira de Netuno era expor à fúria do monstro a bela Andrômeda.
— E o pai malvado teve a coragem de fazer isso...
— Sim, deixou que a linda jovem fosse entregue às nereidas, as quais a amarraram a uma penedia da praia para que o monstro a comesse.
— E comeu-a? — perguntou Emília aflita.
— Quase. Quando foi chegando com aquela imensa boca vermelha escancarada, eis que aparece... adivinhe quem?
— Hércules?...
— Não! Perseu, o mesmo que matou a Górgona. Vinha montado... adivinhe no quê?
— Em Pégaso! — berrou Emília.
— Sim, em Pégaso. Perseu matou o monstro e... adivinhe o que fez?
— Desamarrou-a e casou-se com ela...
— Isso mesmo. Você é uma danadinha para adivinhar, Emília.
 
Agatirso estava de boca aberta. Nunca imaginou que pudesse haver tanta ciência na barriga de uma aranha de cartola.
Nisto um dos marinheiros da barca deu um grito: "Terra! Terra!..."
Hércules, que estava caído à popa, com os olhos mais brancos do que nunca, deu um suspiro...

Na ilha de Gerião

O desembarque operou-se como das outras vezes, com o herói apoiado ao ombro de Meioameio, mais bambo do que se tivesse levado uma boa sova do tridente de Netuno. Pedrinho teve de repetir a mesma cura de "herói enjoado", lá das praias de Temiscira. Depois que se viu "novo", Hércules disse:
— Bom. Agora temos de arquitetar um plano. A força do rei desta ilha já sei que está sobretudo no dragão de sete cabeças e no pastor de duas. Tenho de me aproximar com muito jeito para dar cabo do dragão e do pastor — só depois irei justar contas com o rei monstruoso.
— Como vai atacar o dragão, Lelé? — quis saber Emília.
— Com as minhas flechas — e ao dizer isso, tirou-as do carcás e examinou-lhes as pontas. Desde aquela aventura em que se viu quase perdido diante de um monstro porque Emília havia "humanizado" as suas flechas, o herói nunca mais se meteu a uma empresa sem primeiramente examiná-las.
— Fiquem aqui — disse ele. — Vou sozinho — e lá se foi.
Os pica-paus ficaram ouvindo as histórias de Agatirso. Não há velho marinheiro que não saiba de muita coisa interessante relativa ao mar. Pedrínho, que era um grande pescador lá no ribeirão do sítio, só queria histórias de peixes. Já Emília só se interessava pelas de monstros.
— E a tal serpente marinha de que falam tanto? —perguntou ela. — Nunca jamais encontrou alguma?
Não há marinheiro que não fale das serpentes marinhas que vivem nas grandes profundidades e às vezes sobem à tona. Agatirso também tinha a sua.
— Certa vez — disse ele, vindo eu em minha barca da Ilha de Paros para a de Naxos, dei de repente com um mar agitadíssimo, mas duma agitação diferente de todas as que eu conhecia. Era como se lá no fundo estivesse havendo um terremoto. Não posso compreender como me salvei. Que vagalhões horríveis! Levantavam-se como torres e depois afundavam como verdadeiros abismos. Uma hora levei assim, agarrado ao toco de mastro de meu bote...
— Por que ao toco?
— Porque era só o que restava do lindo mastro de meu bote. Já no começo um vagalhão o despedaçou como se fosse uma hastezinha de capim seco. Ficou o toco — e muito que isso me valeu. A ele me agarrei de unhas e dentes durante mais de uma hora. Por fim a tormenta foi serenando — e eu respirei. Estava salvo, graças à bondade de Palas, a minha padroeira. E foi então que vi uma coisa nunca vista em meus anos e anos de voga nestes mares.
  — Viu a serpente marinha...
— Sim, vi... Mas no primeiro momento, nem compreendi o que fosse.
Uma cabeça hedionda e como que aflitíssima borbotava pela boca muito aberta uma porção de coisas vermelhas. E aquele enormíssimo corpo de cobra boiava sobre o mar como uma série de SS emendados.
Lá no fim, a cauda — uma cauda que batia na água. O monstro deu-me a ideia de estar na agonia. Um vagalhão arrancou dali meu barco — e foi só. Não enxerguei mais nada.
Agatirso enxugou a testa. A simples lembrança daquelas cenas fazia-o suar. O Visconde deu uma explicaçãozinha muito boa.
— É que tinha havido no fundo do mar algum terremoto, ou alguma súbita erupção vulcânica, e o convulsionamento das águas deslocou uma dessas serpentes marinhas das grandes profundidades, arremessando-a à superfície. Ora, a diferença de pressão é muito grande e o organismo do monstro não suportou a súbita passagem da alta pressão do fundo para a pouca pressão da tona — e estourou.
— Como estourou?
— Rebentou-se todo por dentro, por falta de pressão. É por isso que este homem a viu botando para fora todas as vísceras. O que ele viu foi uma serpente marinha lá das profundas, estourada em conseqüência da pouca pressão atmosférica da superfície.
O velho marinheiro ficou admiradíssimo da segurança do Visconde, embora não entendesse aquela história de "pressão atmosférica".
E ainda estavam a falar em serpentes marinhas e peixes, quando Hércules reapareceu.
— O caso é difícil — disse ele. — O dragão oculta-se numa das várias cavernas lá existentes. É delas que inopinadamente salta sobre os atacantes. Perto está sempre o pastor de duas cabeças. Quem ataca o pastor arrisca-se a ser atacado pelo dragão — e não podendo prever de que caverna vai sair o dragão, pode ser apanhado de surpresa. Vim pensar sobre o que fazer.
Hércules na verdade não tinha vindo pensar coisa nenhuma e sim saber a opiniãozinha da Emília. Percebeu logo que era um desses casos em que a inteligência vale mais que a força bruta. E olhou para ela.
Emília segurou o queixo e pôs-se a refletir. De repente disse:
— Heureca!...
Todos ficaram muito atentos, curiosos de saber o que ela havia "heurecado". Emília ainda pensou mais um bocadinho, como que aperfeiçoando a ideia. Depois perguntou:
— Quantas cavernas são?
— Umas vinte.
— Pois o jeito é um só, Lelé: descobrirem que caverna mora o dragão. Feito isso, o resto se torna fácil.
— Sim — concordou o herói. — Se eu tiver a certeza de que o dragão está neste ou naquele buraco, posso atacar o pastor e em seguida apontar minha flecha para a boca do buraco certo.
— Exatamente — concordou Emília.
— Podemos fazer uma coisa: vou junto com você e lá aplico o meu meio de descobrir a caverna certa de onde vai sair o monstro.
— Que meio é esse? — indagou Hércules; e ela, muito espevitada:
— Não posso dizer; perde o efeito. Mas juro que marco direitinho qual é a caverna do dragão.
Hércules deu a mão a Emília e lá se foram. Pedrinho pensou consigo: "Qual será o meio que ela vai usar? O faz-de-conta ou a varinha de condão?"
De um certo ponto, entre duas grandes pedras, Hércules mostrou a Emília, lá longe, o pastor de duas cabeças e as várias cavernas. Numa estava o dragão, mas em qual? Quem fosse lutar com o pastor podia ficar com o dragão pelas costas — e como era? A prudência mandava, primeiro certificar-se do ponto certo onde se escondia o dragão: só em seguida atacar o pastor.
Hércules pôs os olhos em Emília como quem diz: "E então?" Emília ergueu para ele a sua carinha cavorteira e disse:
— Nada mais simples. Tape os olhos que eu já digo em que caverna está o dragão.
Hércules tapou os olhos — e Emília, muito rápida, foi apontando com o dedinho para as cavernas e dizendo lá consigo:
"Faz de conta que não está nesta nem nesta — nem nesta", e assim apontou todas menos uma. "Logo, está nesta última." E para Hércules, alto:
— Pronto! Já resolvi o problema. O dragão está escondido naquele buraco da esquerda — aquele lá... e apontou bem direitinho.
Hércules ficou assombrado: Não podia compreender de que maneira ela chegara a semelhante conclusão. Quis saber. Indagou.
— Não digo! — respondeu a diabinha. Tenho os meus segredos, como Medeia tem os dela...
O herói não insistiu. Ninguém no mundo estava mais convencido de que o pelotinho humano era na realidade uma curiosíssima feiticeira dos séculos futuros. E, sendo assim, não teve a menor dúvida de que o antro do monstro fosse realmente o indicado.
— Então posso atacar o pastor, certo de que o dragão vai sair daquela caverna?
Emília respondeu com majestosa segurança:
— PODE!
Era o tom de Medeia e Circe. Era o tom dos oráculos. Era o tom de Palas e Hércules não duvidou nem por um milésimo de segundo.
— Bom. Fique aqui — disse ele. Vou dar a volta e atacar o pastor por aquele lado de lá.
— Por quê?
— Porque assim ficarei de frente para a caverna do dragão. Meu receio era atacar o pastor pela frente e ter o dragão pelas costas.
Emília ficou ali e Hércules deu a volta para atacar o pastor do ponto certo.
Teve de ir agachado e oculto pelas pedras. Se se erguesse, o pastor o veria imediatamente, porque uma criatura de quatro olhos vê ao mesmo tempo a norte, sul, leste e oeste.
Súbito, Hércules pôs-se de pé num pulo, já com o arco esticado — e a primeira flecha voou, assobiando. O pastor viu o pulo de Hércules e também levou a mão ao arco — mas a flecha de Hércules o pegou antes que ele lançasse a sua. E logo a seguir foi alcançado por outra.
Não era preciso mais. Duas cabeças, duas flechas...
Tudo ocorreu num abrir e fechar de olhos, mas mesmo assim o dragão oculto numa das cavernas pressentiu o que se passava lá fora e apareceu... Apareceu justamente na boca da caverna indicada por Emília!
— "Exatinho como eu disse" — pensou a ex-boneca. "O meu 'faz de conta' é infalível"...
Ao ver surgir o dragão, Hércules enviou-lhe uma flecha à cabeça número um, atingindo-a num dos olhos. O herói tinha de lançar sete flechas, uma para cada cabeça, mas isso antes que o dragão o alcançasse. E com que rapidez
vinha o dragão em seu rumo! Só a extrema rapidez dos flechaços o salvaria. E Hércules, zós, zás, zós... duas, três, quatro, cinco, seis flechas, todas muito bem cravadas em cada olho direito de cada uma das seis cabeças. Faltava só a sétima — mas não houve tempo: o dragão estava próximo demais para o tiro de flecha — quase junto dele. Hércules então recorreu à clava — e com um só golpe — mas daqueles!!! — amassou a sétima e última cabeça do monstro como uma pessoa qualquer amassa uma bola de papel de estanho. Emília ouviu o blaf e viu o dragão cair estrebuchante. Das seis cabeças atingidas uma língua muito vermelha ainda saia e entrava, e a ponta da cauda do monstro "fazia assim", agitada pelo veneno...

Avé, Avé, Evoé!

— Avé, avé, Evoé!... — berrou Emília lá onde Hércules a deixara; e foi correndo ver os dois monstros vencidos. Mortos, mortissimos... E que portentos! Um homem de duas cabeças é tão horrível como um homem sem cabeça nenhuma. Produz na gente o verdadeiro arrepio do horror. E o dragão era um lagarto enorme com enxerto de outros bichos — verdadeira monstruosidade de pesadelo. Não tinha a cor verde do dragão de S. Jorge que ela vira na lua; era malhado de preto e amarelo. Emília pensou: "Levo ou não levo uma lembrança destes monstros?" Mas deu uma cuspidinha de lado: "Não vale a pena.”
Depois de contemplar por alguns instantes as suas vítimas, Hércules pensou em Gerião. Como abordá-lo? Os reis vivem em palácios, e invadir um palácio é o mesmo que invadir um lar. O lar é inviolável. O jeito era um só: ficar de tocaia por ali até que o rei aparecesse.
Gerião logo saberia do acontecido e fatalmente viria ver o que houve. E assim pensando Hércules resolveu esconder-se numa das cavernas e esperar. Tomou Emília pela mãozinha e foi para a de onde saíra o dragão. Entrou.
O teto da caverna estava todo enfeitadinho de pingentes negros: — uns morcegões que se assustaram e lá se sumiram mais para o fundo. Hércules sentou-se, com Emília ao colo.
— Como foi que descobriu a caverna certa? — perguntou-lhe. — Conte o grande segredo.
— Pois é o faz-de-conta, Lelé. Desde que eu fiz de conta que não era nas outras cavernas que o dragão estava, então tinha de ser nesta...
Hércules fez cara de quem não entendia aquela história.
— Escute — explicou Emília pegando-lhe na mão. — Você tem aqui cinco dedos. Se tira quatro quantos ficam?
— Fica um...
— Exatamente. Pois foi o que fiz com as cavernas. Eram vinte. Tirei dezenove — ficou uma: esta aqui... Tão simples.
Emília achava simples, mas para Hércules o mecanismo do "faz-de-tonta" era um mistério verdadeiramente impenetrável.
— O que me admira — disse ele — é que esse processo não falha nunca...
— Nem pode falhar — ajuntou Emília. — Se você faz de conta que uma coisa não é, está claro que ela não é. Se você faz de conta que é, está claro que é. Tão simples.
Estavam nessa discussão quando um rapagote, de passagem por ali, estranhou a ausência de Eurition e correu os olhos em redor. Ao descobrir o seu cadáver, e logo adiante o do dragão, deu um berro de pavor e saiu voando rumo ao palácio do rei.
— Majestade — encontrei Eurition e o dragão mortos a flechaços!...
Gerião estufou de surpresa, fúria e ódio; como tivesse três cabeças, fazia cada coisa com uma — surpreendia-se com a primeira, enfurecia-se com a segunda e odiava com a terceira. Para falar também usava as três bocas: dizia uma palavra com a primeira, dizia a seguinte com a segunda e a imediata com a terceira; depois, da capo à primeira como nas músicas.
Mas ao ouvir aquilo Gerião nada disse. Estufou só. Faiscou com os olhos e saiu a passos precipitados, rumo ao pedregal das cavernas, conduzido pelo rapazola.
Hércules e Emília viram-no sem ser vistos. Que estranho gigante aquele! Três cabeças e seis braços, além do mais uma curiosa espécie de asas egípcias. Trazia três escudos nos braços esquerdos e três lanças nas mãos direitas. Hércules percebeu logo que a luta ia ser tremenda, pois era um gigante equivalente a três. Suas flechas de nada valeriam contra tantos escudos, e sua clava teria contra si a réplica de três lanças agindo simultaneamente. Que fazer? Hércules olhou para Emília.
Num relance a "dadeira de ideias" apreendeu a essência do caso e disse:
 
— Ele é fortíssimo da cintura para cima e fraco da cintura para baixo?
— Por quê?
— Porque tantas cabeças, tantos braços, tantos capacetes, escudos e lanças, são muita coisa para só duas pernas. Esqueça o que está da cintura para cima e ataque as pernas. Demolida a base, a torre cai.
O rosto de Hércules iluminou-se. Não podia haver coisa mais clara — e nem ele, nem todos os heróis que anteriormente haviam lutado com Gerião, tinham percebido aquele ponto vulnerável!...
Hércules ajeitou ao arco uma flecha e emergiu da caverna. Gerião imediatamente o avistou. Quem dispõe de seis olhos em três cabeças nâo perde nada e vê depressa. Gerião viu-o e fechou-se na defesa, coberto pelos três escudos e os capacetes de bronze — mas a seta de Hércules não veio apontada para as "partes nobres do corpo", o peito, o coração, a cabeça, e sim para a humilde parte do chamada joelho — e lá entre os ossinhos do joelho direito de Gerião se cravou a primeira seta do herói. E a segunda seta, vinda logo atrás da primeira, também se cravou no joelho esquerdo. Ah, foi a conta!... Gerião, com todas as suas cabeças e todos aqueles braços e escudos e lanças e capacetes, desabou como essas grandes chaminés de tijolo quando uma explosão de dinamite rebenta na base. Um peito de herói pode ser tremendo, o coração do herói pode ser como o de Ricardo Coração de Leão; mas se o joelho dobra, aquilo tudo lá por cima vem logo abaixo, de cambulhada.
Escangalhado nos joelhos, Gerião, o monstruoso rei invencível, desabou em cima dos corpos de Eurition e do bicho de sete cabeças. Hércules aproximou-se e facilmente o matou com três golpes de clava, — pá, pá, pá, — um em cada crânio.
— Avé, avé, Evoé!... — berrou Emília, correndo a arrancar um botão de ouro da túnica do gigante — um lindo "souvenir".
Hércules contemplava os três cadáveres. Quanto havia –sofrido o mundo ali dos arredores por causa da associação daqueles três monstros! Já fortíssimos individualmente, com a associação se haviam tornado invencíveis. Mas lá estavam por terra, extintos. Por quê? Porque não haviam contado com o valor de Hércules em íntima associação com a esperteza da Emília. O herói estava compreendendo o valor da "associação".
Muito bem. Euristeu lhe havia ordenado que levasse para Micenas os bois de Gerião. Não lhe ordenara que desse cabo desse rei. Mas como tomar os seus bois sem matá-lo? E como matá-lo sem preliminarmente matar ao pastor Eurition e ao bicho de sete cabeças?
A primeira parte do Décimo Trabalho estava executada — e Hércules iria ver como fora simples diante da segunda parte: o transporte da boiada de Gerião para Micenas. O problema do transporte sempre foi muito sério em todos os países, sobretudo na antiguidade, antes das estradas de ferro, dos caminhões e automóveis, dos grandes navios e mais meios existentes hoje. Na Grécia daqueles tempos só havia o lombo de animal, a carreta de duas rodas... e que mais? Só. Os próprios deuses não iam além da carreta. Tinham-na mais enfeitada e rica do que a dos homens — mas que era o carro de Apolo se não uma carreta? E a carruagem de Netuno? Essa nem carreta era, sim um trenó, já que não tinha rodas. Tanto os homens como os deuses não iam além da carreta.
Como transportar tantos bois dali a Micenas?
Hércules e Emília foram ver a boiada de Gerião. Encontraram-na invernando numa pradaria ótima
— Que capim é este? — perguntou Emília; e sua pergunta ficou sem resposta porque Hércules não entendia nada de forragens. Emília viu logo que não era o catingueiro lá do sítio de Dona Benta — e guardou uma folhinha para o Visconde classificar.
Bem numerosa a ponta de gado de Gerião. Numerosa para aquele tempo e aquela ilha, mas longe de equivaler ao gado de uma grande fazenda moderna. E nada de zebu. Tudo gado europeu.
— Quantas cabeças acha que há aqui, Emília? — perguntou Hércules, que era um "perna-de-pau" em matéria de cálculo.
Emília correu os olhos e disse:
— Quinhentas e dez, fora os bezerrinhos de ano.
Hércules caiu em meditação. Como botar em Micenas toda aquela boiada? Consultou Emília, e ela:
— Euristeu não sabe quantos bois existem aqui, de modo que tanto faz levar todos como uns dez apenas. Além disso, acho uma grande injustiça pegar estes bois roubados aos criadores vizinhos e levá-los a um rei distante e tão antipático. O justo será entregá-los aos seus verdadeiros donos e levar para Micenas só uma pequena amostra, aí uns dez ou doze...
Hércules achou simplesmente maravilhosaa ideia.

A boiada

Enquanto esperavam pela volta de Hércules, os outros, lá na praia, ouviram mais coisas do império de Netuno contadas pelo Visconde. Como sabia coisas o raio do sabugo!
— Antes de Netuno, quem era o dono do mar? — perguntou Pedrinho.
— Antes? Era Nereu, filho do Oceano e da Terra. Nereu desposou Dóris e teve cinqüenta filhas, as tais nereidas que mais tarde a deusa Flora admitiu em sua corte e transformou em náiades, dríades e napéias.
— Admitiu-as para quê?
— Para que tomassem conta do riquíssimo tesouro do seu império. Essas ninfas casaram-se com os filhos de Tritão e passaram a morar nas grutas cheias de avencas e samambaias, nas úmidas barrocas dos rios, nas clareiras das matas onde folgam os faunos e silvanos. Logo que Netuno se sentou no trono das águas, outorgou ao velho Nereu o dom de tomar as formas que quisesse. Nereu tornou-se também um hábil adivinho — e foi quem previu a queda de Tróia. Mora num recanto do Mar Egeu, rodeado de muitas nereidas que o divertem com cantos e danças. É um velho muito calmo, muito justiceiro e moderado em tudo. Tem olhos verdes e barba cor do céu.
Pedrinho perguntou ao marinheiro se por acaso havia visto alguma nereida.
— Sim — respondeu Agatirso. — Vi duas numa praia da Ilha de Naxos.
— E as tais dríades e napéias? Também viu alguma?
— Muitas. As napéias são as ninfas das campinas, e as dríades são as ninfas das árvores. Cada velha árvore das florestas tem a sua dríade morando ali.
Pedrinho mostrou-se cético nesse ponto. — Está aí uma coisa que só vendo.
— Pois vi muitas, como também já topei com várias hamadríades...
— Quais são essas?
— As que moram dentro das árvores. Quando derrubam as árvores, elas se libertam e ficam vagueando pelas redondezas...
Lúcio e o centaurinho pouco falavam, mas ouviam com a maior atenção. Súbito, Meioameio tomou a palavra e disse:
— Eu também tenho visto inúmeras. O mundo está cheio dessas criaturas. E como são lindas!...
Perto da praia havia uma floresta de árvores muito antigas, quase que só carvalheiras e castanheiros seculares.
Pedrinho olhou.
— Será que naquela mata há dríades?
— Claro que há — respondeu Agatirso. — Nunca houve floresta sem dríades.
— E se fôssemos lá para ver?
Foram, Pedrinho no lombo de Meioameio, o Visconde montado em Lúcio. Que mata linda! Velha como o mundo. Aqueles carvalhos deviam ter mil anos. O frescor ambiente parecia um sorvete evaporado. E tudo na penumbra, com sombras mais espessas aqui e ali e, de vez em quando um raio de sol que furava o dossel de folhas e vinha numa lista bater no chão. Troncos musgosos. Parasitas — e aquele silêncio majestoso das grandes matas seculares.
— Olhe lá!... — exclamou Lúcio apontando para certo ponto. A hamadríade daquele tronco está sentada em cima dele.
Pedrinho olhou. Realmente lá estava, a pequena distância, um tronco tombado já de muitos anos, todo orelhas-de-pau e outros cogumelos de cor empalamada, e avencas e samambaias. Tudo isso o menino viu, mas foi só.
— Vejo o pau podre e nada mais...
Lúcio escondera-se numa moita para não assustar a hamadríade e continuou apontar com os olhos, dizendo:
— Pois lá está ela sentadinha no velho tronco morto. Nele habitou até o dia em que a velha árvore caiu. Libertou-se então e não sai das imediações. Passeia, dança, brinca; depois volta a sentar-se no tronco, que nem borboleta.
 
— E como é ela?
— Linda — respondeu Lúcio com ênfase. — Muito diáfana. Usa um lindo véu finíssimo sobre o corpo e na cabeça uma coroa de flores silvestres. Não pode existir nada mais delicado que uma hamadríade. Parece um sonho de leveza...
Pedrinho olhava, olhava e não via coisa nenhuma. Perguntou ao centauro:
— Também vê alguma coisa Meioameio?
— Como não? E, olhe!... acaba de levantar-se. Parece que pressentiu a nossa presença. Vai fugir... Fugiu...
O Visconde também nada vira. Porquê?
— Talvez porque vocês não sejam deste nosso tempo, sugeriu o asno. Talvez os olhos de vocês tenham perdido a faculdade de ver certas coisas. Eu vejo perfeitamente as dríades dos bosques. Olhe, está uma, saindo daquela touceira... e apontou com a língua. Meioameio confirmou a afirmação de Lúcio. Havia, sim, aparecido outra representante dessas belas "almas da natureza", e justamente a alma da mais velha árvore daquele bosque. Súbito, fugiu com extrema agilidade e leveza. É que pressentira a aproximação de um fauno.
Meioameio e Lúcio viram por ali outras hamadríades, vários faunos e três silvanos — sem que Pedrinho e o Visconde enxergassem coisa nenhuma. Não há maior lástima do que ter olhos modernos...
Quando saíram da floresta, avistaram lá ao longe uma grande ponta de gado. Era Hércules que vinha vindo com os bois de Gerião. Correram-lhe ao encontro ansiosos por novidades.
— Então? — exclamou Pedrinho. — Como foi a coisa?
— A maior das "canjas" — respondeu Emília. — "Orientei" Hércules e foi só, zás-trás, nó cego. "Matamos" o pastor de duas cabeças, "matamos" o dragão e depois "matamos" o tal rei.
Hércules foi leal. Não achou que Emília estivesse a gabar-se. Confirmou todos aqueles "amos".
— Ajudou-me muito desta vez, sim, — disse ele. — A sua descoberta do antro exato em que se escondia o dragão foi elemento decisivo na minha vitória; e a ideia de ferir Gerião nas pernas, em vez de na cabeça e no peito, como me parecia o certo, foi a melhor ideia de Emília até hoje.
— E que vai fazer com esses bois todos?
— Entregá-los aos donos. Para Micenas só levo dez — outra lembrança ótima cá da Emília.
Hércules ordenou a Agatirso que fosse espalhar pelas redondezas a grande notícia do fim trágico de Gerião. E que os donos dos bois aparecessem para recebê-los de volta.
— E agora... — disse Hércules mudando de assunto.
— Já sei, quer comer! — berrou Emília. Mas desta vez o centaurinho não tem necessidade de sair pelo mundo à cata de carneiros. Assa um boi de Gerião e pronto.
À tarde só havia ali cinzas e ossos. Os mugidos em tom de lamento dos bois de Gerião choravam a morte de um companheiro. Mas o herói arrotava, feliz.
Nesse dia não houve mais nada. Ficaram por ali a digerir boi e logo que anoiteceu dormiram como anjos de papo cheio.
No dia seguinte, logo cedo, começaram a chegar as vítimas dos roubos de gado. Que alegria! Como se confessaram agradecidos ao herói pelo tremendo bem que lhes tinha feito! Gerião era a desgraça da zona. Já de anos vinha fazendo da vida ali um inferno. Depredava os campos vizinhos para apossar-se do melhor. A gratidão daqueles homens era tanta, que prometeram erguer ali um templo a Hércules, o seu grande benfeitor.
O herói mandou que fossem apartando o gado de cada um. De sua parte ele só tomava dez vacas, para satisfazer a vontade do rei de Micenas.
— E agradeçam isso cá à minha "dadeira de ideias" — disse no fim do discurso. — Se não fosse a sua sugestãozinha tão razoável, eu levaria todos estes bois para Euristeu.
Os homens vieram agradecer à Emília, com promessas de no futuro templo de Héracles construírem também um altarzinho em sua honra.
— E com que nome devemos venerá-la, gentil menininha?
— Emília, Marquesa de Rabicó! — respondeu ela com toda a lambetice.
Naquele dia não se cuidou de outra coisa senão separar os bois deste ou daquele, sob a fiscalização de Agatirso. E no dia seguinte cuidaram da volta.
A viagem para o continente através do Mar Egeu teria sido um encanto, se não fosse o inevitável enjôo do herói. Lá ficou ele novamente caído na proa, de olhos muito brancos, mais morto que vivo. Entrementes os pica-paus assistiram a um espetáculo que nunca supuseram possível a passagem de Netuno e Anfitrite em seus carros!...
Quem primeiro viu qualquer coisa, lá muito longe, foi, como sempre, Emília.
— Estou vendo!... Será baleia? Será navio?... Uma coisa estranha lá, lá bem longe! — e apontava.
Todos olharam naquela direção e realmente viram algo estranho e incompreensível. Só depois que o "mistério" se aproximou é que compreenderam — e foi um deslumbramento.
— Netuno!... O carro de Netuno...
  E era mesmo. Netuno ia passando em seu maravilhoso carro de cavalos-marinhos de crinas de ouro. Como eram majestosos! Vinham nadando e espadanando a água com as mãos dianteiras, que erguiam e desciam como para cavar. Em vez de cascos tinham pés de palmipedes. A carruagem era de deslizamento, como os trenós. O deus do mar vinha imponentemente
sentado com o tridente na mão esquerda e a direita estendida para as ondas em gesto de "Acalmai-vos diante de vosso deus Posseidon." À frente rebolavam inúmeros delfins brincalhões; e dum lado e de outro, adiante e atrás, volta e meia emergiam carantonhas de estranhíssimos monstros do mar.
Os pica-pauzinhos estavam maravilhados. Nunca lhes passou pela cabeça a possibilidade de assistirem a um tão grandioso espetáculo. Pedrinho gostou imenso do tipo de Netuno, com aquelas longas barbas verdes como algas e o diadema. Emília regalou-se com os cavalos marinhos de pés de pato. Agatirso caíra em êxtase. Ele, um marinheiro, um homem do mar, ver o grande deus das águas em toda a sua pompa, isso era arrasador! Lúcio ficou o tempo todo de boca aberta e as orelhas espetadas para cima como espeques. Meioameio era todo olhos.
Depois do carro de Netuno passou o de Anfitrite, mais lindo ainda. Era uma enormíssima concha de nácar puxada por muitas parelhas de delfins, alvos como a neve.
Emília bateu palmas e deu gritinhos, como se aquilo fosse um carro de préstito carnavalesco. O Visconde chamou-lhe a atenção:
— Cuidado com estas deusas. São muito desconfiadas e por qualquer coisinha castigam os humanos. Palmas lá no nosso mundo é aplauso. Aqui pode ser vaia...
O mar, amansado pelo gesto de Netuno, estava que nem um espelho, sem o menor encrespamento da superfície. Em espelho assim o céu se reflete tão lindo que quem olha só vê céu, em cima e embaixo.,
Só Hércules não viu coisa nenhuma. Quando caía naquele enjôo, nada no mundo, nem Emília, o interessava. Quem quiser saber o que ele sentia, vá viajar de barco e enjoe. Que alívio quando o barco desceu a âncora num porto do continente! Pedrinho tomou a si o desembarque dos bois e a sua condução até Micenas. Boi caminha pelos próprios pés, mas tem de ser "tocado" — e eles viraram tocadores de gado. Pedrinho seguia à frente, no lombo de Meioameio; Emília em Lúcio; e o Visconde no picuá vinha atrás, em companhia de Hércules. Volta e meia Pedrinho "aboiava", isto é, cantava um som monótono, Ôooo... como via fazer nas fazendas de gado vizinhas de Dona Benta.
O comboio seguiu beirando a praia, com o azul do Mar Egeu dum lado e a costa do outro. Súbito, gritou Emília:
— Um gavião... Uma ave qualquer esquisita!... — e apontava para o céu. Todos olharam, inclusive os bois, e realmente viram a atravessar o Egeu, muito alta no céu, uma grande ave. Vinha na direção deles, mas subindo sempre. De repente houve qualquer coisa, porque a ave vacilou, e pererecou lá em cima, perdeu o equilíbrio e começou a cair.
— Levou bala! — gritou Emília. — Vem caindo...
Sim, vinha caindo com velocidade recrescente e afinal caiu no mar bem perto da praia.
— Que será? — exclamava Pedrinho. Ave não é. Me deu impressão dum pára-quedista sem pára-quedas.
Como um ponto negro, o "pára-quedista" boiava sobre as ondas que o vinham trazendo à praia. A "torcida" foi grande para que chegasse logo. Era um homem. Era um náufrago do espaço. E talvez ainda estivesse vivo, apenas desacordado.
Quando o corpo trazido pelas ondas deu à praia, todos correram-lhe ao encontro.
— Que esquisito! Um homem com uns restos de asas nas costas...
O Visconde pôs-se a aplicar no náufrago as regras clássicas do socorro aos afogados, consistentes em restabelecer a respiração interrompida. Todos o ajudavam, e tanto fizeram que o náufrago respirou, a princípio entrecortadamente, depois com maior regularidade. Em seguida abriu os olhos. Ficou uns minutos assim, tonto. Por fim falou:
 
— Onde estou eu?
— Entre amigos — respondeu Pedrinho. Sente-se mal? Quem é você?
O náufrago gemeu, com expressão de sofrimento. Não havia dúvida que estava muito machucado da queda.
— Diga o seu nome — insistiu Pedrinho — e o náufrago com voz débil:
— Ícaro, filho de Dédalo...
— Dédalo, o construtor do labirinto de Creta?
— Sim — gemeu o infeliz. O Rei Minos encarcerou-me lá com meu pai, mas sem que meu pai soubesse. Procurei encontrar-me com ele, inutilmente. Aquela infinidade de corredores me atrapalhava dum modo horrível.
— Está claro — observou Emília. — Sem carretel aquilo não vai.
O náufrago arregalou os olhos.
— Sim — continuou Emília. — Estivemos com o senhor seu pai lá no labirinto, no dia em que Teseu matou o Minotauro. Depois salvamos Teseu, também atrapalhado com os infinitos corredores — e saímos todos. Mas Dédalo não parecia desconfiar que seu filho estivesse no labirinto. Não nos falou coisa nenhuma.
— Não podia saber. Puseram-me incomunicável.
— E como saiu daquele horror de prisão?
— Pelo ar...
— Pelo ar?....
Icaro explicou:
— Havia por ali, nos escuros, muita coruja e muito morcego. Pus-me a juntar penas de coruja e asas secas de morcegos mortos. Depois descobri uma colméia de abelhas lá num canto. Comi o mel e fiz uma grande bolota de cera. Foi nesse momento que me veio a ideia.
— Que ideia?
— De voar. De armar com as penas de coruja e as asas de morcego um grande par de asas que se ajustassem aos meus ombros. Depois faria como as aves — batia as asas e saía voando...
— Mas se essa ideia veio quando esteve fazendo a bolóta de cera, para que juntou as penas de coruja? — quis saber Emília, que era muito meticulosa. — Não foi já com a ideia do par de asas?
— Não. Juntei aquelas penas para fazer um colchão. A ideia de voar veio com o pelote de cera.
— Mas que tem a cera com as penas? Não estou entendendo...
— É que eu podia construir o meu par de asas com as penas de coruja e as asinhas dos morcegos, emendadas com cera...
— E construiu...
— Sim, construí o excelente par de asas que me permitiu escapar do labirinto e voar por sobre este Mar Egeu. Voei perfeitamente até certo momento. Depois tive uma lembrança desastrada: ir subindo, subindo, para espiar bem de perto o carro de Apolo...
— Nós vimos a subida e estranhamos — observou o Visconde. — Para aterrissar aqui não havia necessidade de subir tanto.
— Eu sabia disso, mas a curiosidade de ver de perto o carro de Apolo me dominou. Fui subindo, e à medida que ia subindo aumentava o calor dos raios do sol. Súbito, senti que a cera que ligava as penas de coruja estava amolecendo. Precipitei-me na descida. Era tarde. As penas se desagregaram, minhas asas se desfizeram, derretidas, e eu caí...
— Teve muita sorte de cair na água do mar. Se caísse em terra, estava agora como o sapo que foi à festa do céu. E agora?
Ícaro, cada vez mais arquejante, não teve forças para responder. Foi fechando os olhos e morreu.
Hércules estivera ali todo o tempo a acompanhar a cena e a ouvir as últimas palavras do filho de Dédalo. Comoveu-se com o passamento do rapaz.
— Bom — disse por fim. — Temos de enterrá-lo com todas as honras — e foi ele mesmo abrir numa pequena elevação da costa o túmulo de Ícaro. Enterraram-no à moda grega. Hércules colocou uma laje em cima, na qual Emília escreveu:

AQUI JAZ ÍCARO, O PAI
DA AVIAÇÃO ERRADA

— O pai da aviação certa, sem cera nem penas de coruja, é outro...
Finda a cerimônia fúnebre, Pedrinho aboiou e a caravana pôs-se novamente em marcha. Emília ia contando ao asno Lúcio as proezas da aviação moderna.
— Nem queira saber, Lúcio, o horror que essa invenção nos saiu! Há os tais aviões, umas aves de metal, aperfeiçoadissimas, que voam de todos os modos possíveis e a todas as alturas e de lá arremessam sobre as cidades enormes bombas.
— Que é bomba?
— São uns cilindros de ferro, ocos, cheio de TNT.
— Que é TNT?
— Um explosivo.
— Que é explosivo?
— Uma coisa, um pó que explode, isto é, arrebenta, pega fogo, faz bum! e escangalha tudo em redor; derruba casas, manda gente despedaçada para o beleléu. O horror dos horrores.
— E para que isso? — indagou o asno, surpreso.
— Não sei, Lúcio — e também não sabem os próprios homens que fazem isso. Há lá as tais "guerras mundiais". De vinte em vinte anos rebenta uma e todos os países entram na dança, uns a destruírem e incendiarem as cidades dos outros, e a matarem todos os homens jovens e perfeitos.
— E os imperfeitos?
— Aos velhos, doentes e aleijados, a esses não acontece coisa nenhuma. Ficam em casa lendo os jornais e ouvindo o rádio. Para a matança só são remetidos os perfeitos de corpo. Se um tem um defeitozinho qualquer na vista, por exemplo, já não serve.
O asno achou muito estranho aquilo. O razoável seria mandar para o matadouro os velhos e estropiados e deixar com vida os moços perfeitos. Manifestou essa ideia, e depois quis saber quem é que lançava os países uns contra os outros.
— Ninguém — respondeu Emília. — Todos os chefes começam dizendo que só querem a paz, a paz, a paz — só falam em paz. Não querem a guerra. E o povo, está claro, também não quer a guerra, porque na guerra quem morre e paga o pato é o povo. As mães não querem a guerra porque perdem seus filhos. As irmãs não a querem porque perdem os irmãos. As noivas não a querem porque perdem os noivos. Ninguém, absolutamente ninguém, quer a guerra — mas a guerra vem.
— Como vem?
— Vem por si mesma. Começa. Estoura. Rebenta. Lá um belo dia a gente abre o jornal da manhã e lê numas letras deste tamanho: REBENTOU A GUERRA... E logo depois está o mundo inteiro dentro da guerra, com os aviões a derramarem bombas do céu e com a matança embaixo feita cientificamente, por meio de maravilhosas máquinas de matar, criadas pelos maiores gênios do mundo moderno.
— E depois da matança?
— Quando se cansam de matar, e os navios estão todos no fundo dos oceanos, e as cidades são montanhas de cacaria, e só se ouve o choro de milhões e milhões de mães e irmãs e noivas e esposas, e já não há casas onde o povo morar, e nem há pão para o povo comer, e a miséria fica o horror dos horrores, então a guerra pára... vem a paz. E sabe o que é paz no mundo moderno, Lúcio? Apenas um descansinho para o desfecho de nova guerra...
O Asno de Ouro estava com todos os pêlos arrepiados e a dar graças ao Olimpo de viver naquele tempo. O tal mundo moderno ficou em sua cabeça como a imagem do pior dos infernos.

Faetone

Pedrínho discutia com Meioameio umas reformas que andava com ideia de fazer no sítio de Dona Benta.
  — Aquilo lá é um amor de sítio, — dizia ele, — mas tem o defeito de todas as coisas modernas: falta de poesia. As árvores do pomar, por exemplo. Excelentes árvores, muito nossas amigas, com os galhos musguentos e até com erva-de-passarinho. Todos os anos enchem-se de flôres e depois carregam-se de frutas —laranjas, pitangas, jabuticabas...
— Como são estas últimas?
— Umas redondas, pretinhas, deliciosissimas. Dão pregadas no tronco. Cada um de nós tem um pé só seu. Há também cambucás, grumixamas, sapotis, cabeludas, abacaxis, ameixas, pêssegos... um monte!
— E cereja tem?
— Não. Nunca vi por lá nenhum pé de cereja, e é pena, porque são muito bonitinhos.
Ali na Grécia, volta e meia eles davam com pés de cerejas carregadíssimos.
— Mas se as árvores são assim tão bondosas, de que se queixa você? — perguntou o centaurinho.
— Não estou me queixando das coitadas, tão nossas amigas, mas acho que lhes falta o que vejo aqui nestas: ninfas, dríades e hamadríades. Ponho-me a imaginar que linda não seria a dríade e a hamadríade da minha jabuticabeira, ou da "pitangueira velha", que é a de Emília, ou da mangueira Bourbon de Narizinho. A gente ali a chupar as jabuticabas, a derrubar pitangas ou mangas, e as ninfas em redor espiando a gente... Poesia é isso, Meioameio. Nosso século tem muita máquina, tem até máquina de voar; mas em matéria de poesia não chega aos pés disto aqui.
Pedrinho fez pausa, cismando. Depois:
— Ando a pensar numa coisa: e se levássemos umas duas ou três dríades para soltar lá no sítio?
Meioameio respondeu que só consultando o Visconde, muito mais entendido que ele em coisas da Grécia — e foram para a retaguarda consultar o Visconde lá no seu picuá.
— Acha possível, Visconde, que possamos levar para o sítio um lote de ninfas, dríades e hamadriades?
O Visconde refletiu uns instantes e respondeu:
— Só com o consentimento de Flora. Essas ninfas são as guardiãs dos tesouros dessa grande deusa e só poderão sair daqui com sua ordem.
— E onde poderemos descobrir a deusa Flora?
— Dizem que mora nas Ilhas Afortunadas...
— Que ilhas são essas? Nunca ouvi falar...
— Também não sei, e parece que ninguém sabe. Os romanos falavam muito nas Insulae Fortunatae, sem dizer ao certo onde ficavam. Uns achavam que era a oeste da Líbia; outros que eram as Ilhas Canárias.
Pedrinho quedou-se pensativo. Depois disse:
— Lá no acampamento de Micenas, quando Hércules for entregar a Euristeu esse gado, nós podemos tomar uma pitada de pirlimpimpim e dar um pulo às Ilhas Afortunadas.
Lúcio e Emília, que ignoravam a conversa anterior sobre a introdução de ninfas no sítio de Dona Benta, exclamaram ao mesmo tempo: Para quê?
Quando Pedrinho expôs a sua ideia de uma criação de ninfas no pomar, o entusiasmo de Emília foi tamanho que escorregou do lombo de Lúcio, caindo de ponta cabeça no chão.
— Ai, ai, ai... — exclamou erguendo-se e espanando-se. —Uma ideia dessas... Como é que nasceu na sua cabeça, Pedrinho, em vez de na minha?
Emília ficava enciumada sempre que uma boa ideia acudia aos outros. Todas as "ideias boas", todas as "ideias-mães", tinham de ser dela. E que ideia melhor que a de Pedrinho? Levar ninfas para o sítio, botar cada árvore do pomar com a sua dríade, entalar dentro de cada tronco uma hamadríade... Oh, sim e a dríade mais bonita tinha de ser a da sua pitangueira velha...
A sorte da caravana estava em que os bois de Gerião até pareciam gado Gir, de tão mansos. Não chifravam ninguém. Caminhavam muito direitinhos, tal qual uma ponta dos mansíssimos bois de carro lá de Dona Benta. Mesmo assim, em certo momento, "estouraram".
— Em que momento?
Ah, num dos momentos mais trágicos da humanidade, quando por um triz a terra escapou da maior das desgraças: ser torrada inteirinha pelo sol. A coisa foi assim: um filho de Céfalos e Eos, de nome Faetonte, extasiado de ver Apolo dirigindo o carro do sol, teve a má ideia de lhe pedir que o deixasse guiar um bocadinho. Apolo achou graça e disse: "Venha..."e deixando o carro passou as rédeas a Faetonte. Mas cavalo é cavalo. Tanto faz ser cavalinho aqui na terra como cavalo de Apolo. Quando está num veículo e há mudança de cocheiro, estranha. Os cavalos de Apolo, que nunca tinham sido guiados senão por esse deus, estranharam o novo cocheiro — espantaram-se — e foi aquele horror. O sol, que é quem anda naquele veículo de luz, perdeu o equilíbrio e caiu — ou começou a cair em cima da terra.
Emília deu um berro: — Lá vem vindo o sol para cima da gente!... — Hércules olhou, viu que era mesmo e, zás, mão no arco. Ia cometer a loucura de matar o sol com uma flechada! A música parou. Pedrinho perdeu a voz, como nos pesadelos. Lúcio deu um zurro: — Não faça isso, herói! Sem sol, como vai o mundo arranjar-se no escuro? — Hércules não ouviu. Estava de arco esticado, apontando...
Mas lá no Olimpo, Zeus, que tudo vê, acudiu a tempo. Fulminou com um dos seus raios o imbecilíssimo Faetonte e fez que Apolo fosse correndo tomar conta do carro. A ordem se restabeleceu no céu mas a boiada de Gerião havia estourado. Colhidos pelo pânico, os bois romperam por ali afora, cada qual numa direção. E que luta foi para sossegá-los e reuni-los de novo!...
Quando a paz se restabeleceu, Emília suspirou.
— Ai que susto! Senti lá dentro de mim uma pontada que nem as de Dona Benta. Acontece cada coisa por aqui... Eh, Grécia!
Foi o último incidente ocorrido na viagem para Micenas. No dia seguinte chegaram.
Hércules deu ordem ao centaurinho para tomar conta dos bois enquanto ele ia a Micenas apresentar-se ao rei — e lá foi. Emília tirou do picuá o Visconde; depois abriu a canastrinha para ver senão faltava qualquer coisa.

Nos domínios de Clóris

Enquanto Hércules se explicava com o Rei Euristeu, os pica-pauzinhos deram um pulo até ao reino de Clóris. Foram só os três. Meioameio e Lúcio ficaram — este pastando, aquele assando carneiros.
O pulo às Ilhas Afortunadas foi feito "a pó". Três pitadinhas do pirlimpimpim, três fiuns e pronto. Acordaram diante do maravilhoso palácio de Clóris, a mesma que mais tarde seria pelos romanos chamada Flora.
Que curioso palácio aquele! Tudo lá eram flores, cores lindas e perfumes, frutas deliciosas, musgos, avencas, samambaias e mais mimos vegetais. Pedrinho adiantou-se e parou diante do porteiro: um lindo cravo vermelho.
— Senhor cravo — disse ele — somos viandantes vindos de longes terras para um entendimento com a deusa Clóris. Poderá ela receber-nos?
O cravo examinou-os com a maior curiosidade e mandou um recado à deusa por um goivo que brincava por ali. Logo depois veio a resposta. Sim, Clóris ia recebê-los imediatamente. Que entrassem.
Pedrinho entrou, acompanhado de Emília e do Visconde a manquitolar nas suas muletas. Um lírio do vale seguia na frente, guiando-os através dum jardim de sonho. Depois, uns degraus de macio musgo. Depois, a sala de recepção da amável deusa.
Clóris, em todo o esplendor de sua beleza, recebeu-os com um sorriso amável.
— Bem-vindos sejam ao meu perfumado reino! Que querem?
Pedrinho explicou tudo. Contou quem eram, onde residiam lá nos tempos modernos e falou do pomar de Dona Benta, das árvores de frutas nele existentes, das flores do jardim, muitas das quais Flora desconhecia. Crisandálias, por exemplo, uma flor com que a deusa nem sequer sonhara.
— Mas nosso pomar tem um defeito disse Pedrinho. Falta-lhe alma. Falta-lhe a poesia que vejo nesta Hélade tão linda. Nossas árvores não possuem cada uma a sua driade. Dentro dos troncos não há nenhuma hamadríade. Não temos napéias nas campinas nem ninfas nas fontes. Nem nenhuma nereida no ribeirão. Viemos consultar a mais perfumosa das deusas se não nos poderá arranjar pelo menos umas três dríades e outras tantas hamadriades...
Clóris estranhou a proposta. Nunca lhe haviam falado assim. Um pedido de ninfas!... Que curioso. Mas para onde iriam essas ninfas? — os pica-paus lhe contaram as mil coisas do sítio de Dona Benta, ela sorriu, realmente encantada. Em seus olhos Emília leu um sincero desejo de também conhecer aquele paraisozinho moderno. Clóris só não pôde perceber como era o tal Quindim.
— Cascudo? Com um chifre só emcima do nariz?
— Sim — disse o Visconde — e por ter o chifre no nariz é que se chama rinoceronte. Rino em grego é nariz, como todos aqui sabem.
Clóris achou uma graça imensa no Visconde. Em sua qualidade de deusa dos vegetais, conhecia todas as espigas do mundo e todos os sabugos — menos aquele, falante e de cartola. E uma ideia lhe passou pela cabeça: ceder as ninfas que Pedrinho queria em troca do sabugo de cartola.
— Faço o negócio — disse ela. — Cedo seis das minhas ninfas, à escolha, mas em troca deste maravilhoso sabugo falante.
A estranha proposta atrapalhou os pica-pauzinhos. Puseram-se a conferenciar aos cochichos. Por fim Emília tomou a palavra e, muito xeretamente, disse:
— Deusa, nós aceitamos a sua proposta com uma condição: depois de acabadas as nossas aventuras com Hércules e voltados ao sítio de Dona Benta, discutiremos com ela o assunto. Se Dona Benta concordar com a troca do Visconde, voltaremos a estas ilhas para fechar o negócio.
E assim ficou. Conversaram com a deusa ainda algum tempo e depois se despediram.
Que maravilha o palácio de flora! O chão, forrado de frutas vivas, que de repente mudavam de forma, viravam ninfinhas e saíam dançando. Os perfumes do ar também assumiam formas mimosíssimas de pequenos sátiros e faunos aéreos, muito diáfanos, que dançavam com as pomidríades. Pomidríades, chamavam-se as ninfinhas das frutas. E depois eram as cores que tomavam forma e dançavam no ar a dança das pétalas.
Nisto um recuo geral de todos aqueles mimos aéreos — não recuo de medo, mas de reverência, Zéfiro, o esposo de Flora, vinha entrando de seu passeio pelo mundo. Puro vento esse deus, o mais suave e agradável de todos. Entrou seguido de mil perfumes — os perfumes das flores que andou beijando pelo caminho, e foi sentar-se ao lado de Flora. Lá ficaram de mãos dadas, olhando para suas lindas filhas também ali presentes — as Brisas.
Tanta beleza, tanto perfume, tanto movimento de formas diáfanas no ar, deixaram os pica-pauzinhos completamente tontos, como que embriagados por um ópio divino. Clóris e Zéfiro, sempre de mãos dadas, olhavam para eles e sorriam. Foi com dificuldade que Pedrinho mediu as pitadas do pirlimpimpim e as distribuiu.
Até o fiun soou trêmulo de emoção e todos ainda se sentiam trêmulos quando despertaram no acampamento de Micenas.
— Ainda estou sentindo uma tremura — murmurou Emília, que foi a primeira a falar. Pedrinho suspirou e, com ar de quem acaba de sair dum sonho da manhã, disse: — É o tremor da beleza...
Os carneiros assados do centaurinho rescendiam. Aquele cheiro os fez voltar à realidade — um cheiro que já não falava à imaginação e sim ao paladar. Lúcio tosava os capins ali perto.
— E Hércules? — perguntou Pedrinho.
— Deve estar chegando — respondeu Meioameio; e indagou do que se passara no pulo ao reino de Flora. Emília respondeu:
— Nem queira saber... Tão lindo, tão lindo tudo aquilo, que ficamos com as pernas moles...
— Mas arranjaram as ninfas?
— Sim. Conseguimos várias em troca do Visconde. Flora encantou-se com o sabuguinho. Vamos voltar lá para fazer o negócio. Meioameio admirou-se da facilidade com que se desfaziam dum velho companheiro. Emília piscou e cochichou-lhe ao ouvido: "Flora vai ser tapeada. Vamos trazer outro Visconde feito pela tia Nastácia, tão parecido com este que ela não desconfia. Desse modo apanhamos as ninfas e conservamos o nosso velho Visconde".
Ao ouvir aquilo, o sabuguinho, que havia ficado profundamente triste com a negociação, renasceu. Sua cara iluminou-se dum sorriso — e, aproximando-se de Emília, abraçou-a comovidissimo.
Hércules apontou lá longe. Todos puseram os olhos nele. Vinha com o mesmo ar de sempre — apreensivo, com o medo no coração. Chegou. Sentou-se e foi pegando um dos carneiros assados. Pedrinho interpelou-o:
— E então? Soltamos ou não soltamos os bois desta vez?
O herói sorriu e disse:
— Ao saber que os bois eram mansos. Euristeu decidiu guardá-los em seus estábulos. Só aos monstros ele manda soltar.
— E o novo Trabalho?
— Tenho de ir ao reino das Hespérides em busca dos pomos de ouro...

 

De "Os bois de Gerião" para "Biblioteca"

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