Valdir Aguilera
 Físico e pesquisador

 

 

Os pomos das Hespérides

Monteiro Lobato

A viagem de Hércules em busca dos pomos de ouro foi das mais movimentadas. Antes de partir teve de andar indagando onde é que ficava o jardim das Hespérides. Uns achavam que era no país dos hiperbóreos, lá muito ao norte, mas o Visconde objetava:
— Não pode ser. A zona hiperbórea, ou polar, é muito fria para favorecer o crescimento duma árvore de pomos. O jardim das Hespérides tem que ser incompatível com os gelos do norte. Deve ficar em clima quente ou temperado.
Por fim Hércules se convenceu de que o maravilhoso jardim ficava no extremo ocidental da terra, isto é, bem a oeste.
Naquele tempo a "terra" era quase que só a Europa, e o tal extremo ocidental devia ser a península ibérica, onde ficam a Espanha e Portugal.
Emília quis saber o que era “pomo”. O Visconde explicou que a palavra "pomo" vinha do latim "pomum" e queria dizer "fruta".
— Mas é mais poético dizer pomo em vez de fruta —acrescentou. Fruta dá idéia de mercado ou de verdureira de esquina. Pomo é palavra de luvas de pelica.
— Enjoado! — berrou Emília que era muito plebéia. — Só porque vem do latim já está com história. Luvas de pelica! O fedor... Pois eu digo fruta e acabou.
— Mas se pomo é fruta em geral, — interveio Pedrinho, — que fruta são os tais pomos do jardim das Hespérides? E, antes de mais nada, quem são essas tais Hespérides?

O Visconde sabia. Não havia o que ele não soubesse. Contou que se tratava das filhas do gigante Atlas com a ninfa Hespéris.
— São quatro, Egle, Eritia, Aretusa e Hestia, cada qual mais encantadora. O jardim das Hespérides é uma pura maravilha que vive tentando os homens e os deuses. Em nenhum outro existem as árvores dos pomos de ouro. Aquilo é um encanto e as quatro irmãs são verdadeiras fadas. Cantam como sereias, dançam como zéfiros e sabem tomar todas as formas. Quando os argonautas lá estiveram e, quase mortos de sede, lhes pediram que indicassem uma fonte, elas se transformaram em areia. E como eles continuassem a pedir água, a areia se tronsformou em árvore.
— Eu me transformaria em torneira para salvar os coitados — disse Emília. — Que adianta areia ou árvore para quem está morrendo de sede?
Pedrinho quis saber como era o dragão de guarda ao jardim das Hespérides.
— Ah, o mais monstruoso de todos! Cem cabeças que não tiram os olhos dos pomos.
Emília estava assombrada. "Cem cabeças!..." Aquele de Gerião que tinha sete já me pareceu tão cabeçudo e vamos agora lidar com um de cem...
O Visconde ainda contou que por ocasião do casamento de Juno com Zeus, o dote da noiva consistiu em meia dúzia daqueles pomos — e nunca houve dote maior! E o pomo com que a Discórdia surgiu na festa do casamento de Peleu fora colhido lá.
— Mas além de serem de ouro, que outra virtude têm esses pomos? — quis saber Pedrinho.
— Fazem que o amor nasça com a maior violência no coração de quem os toca.
O grupo estava a caminho da Espanha. Hércules seguia na frente, pensando no modo de atacar o dragão. Já dera cabo de uma hidra de nove cabeças e dum dragão de sete — mas que fazer com um de cem? Atacá-lo com suas flechas, de pouco adiantaria, porque toma tempo lançar cem flechas e o dragão o alcançava. Só se houvesse um jeito de adormecê-lo...
Lúcio, abanando as orelhas, vinha logo atrás, com Emília de banda em seu lombo e o picuá com a canastra e o Visconde na garupa. Volta e meia o Asno de Ouro suspirava de saudades da sua antiga forma humana. Aquelas aventuras de Hércules não tinham fim — e ele condenado a andar de quatro até que a última se realizasse...
Fechava a marcha Meioameio, com Pedrinho no lombo. A amizade entre os dois crescia aos metros. Tratavam-se como irmãos e era um imaginar coisas a fazer no sitio de Dona Benta que não tinha fim.
— Com seis ninfas lá, das mais bonitas, e você, um centauro, aquilo fica o suco dos sucos.
— Por que não leva também uma mudinha da árvore dos pomos de ouro?
A idéia encantou o menino e fê-lo gritar para a Emília:
— Olhe o que Meioameio lembrou: levarmos uma mudinha da árvore dos pomos de ouro. Que tal, Emília?
A ex-boneca deu uma risada gostosa.
— Quando vocês acordam, eu já dormi, sonhei, acordei e estou longe. Já pensei e repensei nisso. Muda o mais certo é não encontrarmos nenhuma; sementes, sim — hei de encontrar sementes. Aquela grandississima ladrona da Medéia me roubou o pomo de Atlas, mas vou desforrar — vou levar do jardim das Hespérides pelo menos três dos mais madurinhos.
O Visconde, lá no picuá, fechou a cara. Não gostou que Emília tratasse daquele modo a grande mágica que o havia curado com a fervura no caldeirão. O pomo fora dado em pagamento dessa cura, com pleno consentimento de Emília. Além disso Emília recebera de volta uma vara de condão preciosíssima. Como então tratava Medéia de ladrona? O Visconde fez-lhe ver isso. E ela:
— Ladrona, sim. Cobrar pela fervura dum sabugo um pomo daqueles é ser ladroníssima. Nunca a hei de perdoar. Fui enganada naquele negócio. Julguei que a vara de condão fosse das perpétuas, e não das de só cem viradas. Fui roubada, sim... — e daí não saiu.
Na vara de condão de Emília só restavam onze viradas, que ela retinha com o maior ciúme para uso no sítio de Dona Benta. Se não fosse assim, os Trabalhos de Hércules se tornariam verdadeiras "canjas". Na conquista do pomo das Hespérides, por exemplo. Com uma varada ela poderia virar o dragão em pulga mas ficaria só com dez viradas na vara e portanto...
— Portanto o que, Emília?
— Portanto, não. Já fiz de conta que não tenho vara nenhuma e pronto. Não se toca mais no assunto. Tinha graça eu gastar com Lelé as únicas viradinhas que me restam, um herói tão ajudado por Palas e outros deuses!...
Hércules ia atravessando uma zona perigosa. Pedrinho receou encontros e lutas. Sabia do gênio esquentado do herói. Por qualquer coisinha o sangue lhe subia à cabeça e a pancadaria trovejava.
Os pressentimentos de Pedrinho saíram certos. Logo adiante surgiu um carro puxado por fogosíssimos corcéis que seguia na mesma direção de Hércules. Em vez de sair do caminho, o herói plantou-se bem no meio da estrada, com as mãos na cintura. Meioameio e Lúcio pularam de lado, deixando-o sozinho. Fatalmente, no galope em que vinham, aqueles cavalos iam atropelar o grande Hércules.
Mas não foi assim. O condutor estacou-os com um violento puxão das rédeas.
— Quem és tu, homem atrevido, que interrompes a marcha do carro de Cicno, filho de Ares?
Era esse Cicno um famoso domador de cavalos, realmente filho do deus Marte com Cirene. Abusando da sua origem divina, vivia cometendo em toda parte os maiores abusos. Hércules, que não lhe ignorava o mau renome, respondeu com voz de trovão:
— Desce do carro, automedonte, e passa de largo puxando os animais. Hércules sou, filho de Zeus e Alcmena.
— Vai ser um fim de mundo — murmurou Emília, toda encolhidinha lá no lombo de Lúcio. São filhos de deuses os dois...

O deus e o herói

Aquele pega Cicno, gravemente ofendido pelas palavras de Hércules, deu rédeas e estimulou os cavalos para que o atropelassem, mas, rápido, o herói os agarrou pelos freios e os arrancou da carruagem. Cicno ficou na cômica situação dum cocheiro sentado na boléia dum carro sem cavalo nenhum. Teve de saltar em terra e aceitar a luta em igualdade de condições.
foi tão curto quão tremendo de ímpeto. Cicno desfere um potentíssimo golpe com a sua terrível lança de bronze, mas a ponta da lança resvala pela pele invulnerável do leão da Neméia. Hércules responde com o arremesso do dardo, apanhando Cicno pela garganta, na parte descoberta entre o capacete e o escudo. Fora golpe mortal. O filho de Marte cai como que ferido por um raio de Zeus.
Era a primeira vez que os pica-pauzinhos viam Hércules manejar o dardo, uma lança curta de arremessar contra o adversário. Como previra muitas lutas naquele décimo Trabalho, o herói fortalecera-se de mais aquela arma.
Assim que Cicno, trespassado na garganta, veio por terra, um rugido reboou e o próprio Marte apareceu em socorro do filho.
A luta entre Hércules e Marte o deus da guerra foi dessas coisas que a palavra humana jamais descreverá. Pedrinho tapou os olhos com as mãos, de puro horror, e Emília o imitou — mas ficou espiando pelo vão dos dedos. O Visconde, esquecido das muletas, pulou fora do picuá e foi colocar-se longe dali. Meioameio tremia da cabeça aos cascos, e Lúcio não arredou pé de onde estava. Ficara estarrecido, numa verdadeira paralisação de todos os músculos.
Marte vestia o traje clássico do deus da guerra e terçava um gládio curto ereto. Hércules ia defender-se com o escudo de Cicno e a clava. Os dois tremendos contendores trocaram olhares chamejantes de ódio e arremessaram-se um contra o outro. O deus Marte estava acostumado a ver o inimigo rolar por terra ao primeiro embate. Era um tranco e pronto. Mas com a firmeza duma rocha Hércules resistiu ao tranco do deus tremendo.
Nesse momento uma voz soou imperiosa: "Detende-vos, Ares! Hércules é teu irmão." Era a voz de Palas, que descera da mansão dos deuses para pôr fim àquele horror. Marte, porém, cego de ódio, não lhe ouve as palavras e ataca o herói com o gládio que nunca repetiu golpe. — Palas corre a tempo e desvia a direção do golpe. O deus, endoidecido de cólera, ergue de novo o gládio — e Hércules aproveita o momento para o ferir no pulso. Ao erguer a lâmina, o pulso de Marte ficara fora da proteção do escudo!...
Assombro dos assombros! Pela primeira vez no mundo um homem feria um deus em combate — e que deus: Ares, o deus da guerra!... Para quem luta com espada ou
gládio, um resgão no pulso já significa inutilizamento completo — mas Hércules ainda desfere contra o deus um golpe da clava. O deus cai...
Ao verem aquilo, Fobo e Deimos, os condutores do carro de Marte, lançam-se em seu socorro, levam-no para o carro e disparam rumo ao Olimpo no maior dos galopes. Hércules havia vencido na luta ao próprio Marte!... Prodigioso! Quando Pedrinho tirou as mãos dos olhos e, ainda cheio de susto, perguntou o que tinha havido, Emília respondeu:
— Eu também tapei a cara, mas vi tudo. Lelé espetou com a ponta do dardo o pulso do deus e depois derrubou-o com um golpe da clava. E então acudiram os dois homens do carro e sumiram-se com ele...
— Derrotou Marte?... — exclamou Pedrinho no maior dos assombros. — Impossível. Um homem não derrota um deus...
— Pois Lelé derrotou o pior dos deuses, justamente o da guerra! Lelé é o número dos números — e pulando do lombo de Lúcio, Emília foi correndo abraçar o herói.
— Erga-me, Lelé! — disse ela olhando para cima, porque o alentado herói era "lá em cima". Hércules ergueu-a no braço, sentadinha ali como uma criança nova — e Emília beijou-o no queixo. Nem lhe alcançava as faces, a pequenitota.
— Sim, senhor, Lelé! Bichão maior nunca imaginei. Vencer até ao deus da guerra! É batatal... Escute: quem era a linda moça que apareceu no momento psicológico e desviou aquele golpe de Marte?
— Palas...
— Palas? — repetiu Emília admiradíssima. — Que pena eu não ter sabido...
— Por quê?
— Para vê-la melhor. Quando a gente não sabe quem é uma pessoa não a vê bem, bem, bem...
Logo que ele a depôs no chão, Emília correu a contar a Pedrinho toda a história da luta a que o bobo assistira mas não vira — de medo.
— Medo de que Pedrinho?
— Homem, nem sei, Emília. Pareceu me tão tremendo aquilo, que tive medo que fosse o fim do mundo — e fechei os olhos como nos pesadelos.
Nos pesadelos, quando ia caindo num abismo, ele fechava os olhos e pronto salvava-se.
— Pois não sabe o que perdeu — continuou Emília. — Vi tudo, tudo. Vi quando Palas chegou...
— Quê?... Palas também tomou parte no barulho?
— Ela nunca abandona o nosso grande amigo. E veio no momentinho justo, quando a espada de Marte ia alcançando Lelé. Palas, então, com o dedo, desviou o golpe. E quando Marte caiu, já ferido no pulso e com uma clavada na cabeça, aparecem os dois estafermos lá do carro. Vi quando agarraram Marte nos braços e lá se foram num galope louco.
— E eu sei o nome desses dois ajudantes — disse o Visconde, que estava ouvindo a conversa. — Fobo e Deimos.
— Fobo e Deimos? — repetiu Pedrinho. — O nome daqueles dois satélites do planeta Marte?
— Sim — confirmou o Visconde. — Os astrônomos deram aos satélites de Marte os nomes de Fobo e Deimos exatamente por isto; porque nesta luta contra Hércules foram eles que o acudiram.
Muito bem. Finda uma batalha, é o dever do vencedor enterrar os mortos e Hércules enterrou Cicno. Emília, como de costume, veio com o seu epitafiozinho:

AQUI JAZ UM DOMADOR DE CAVALOS
QUE ENCONTROU QUEM O DOMASSE.

Aqueles fatos tinham ocorrido à beira dum rio de nome Equedoro, no qual Hércules tomou o seu banho "espadanado" de sempre, e depois todos fizeram o mesmo. Como na Grécia Heróica não houvesse comodidades modernas, v.g. banheiro de água quente e fria, eles adotavam o sistema dum banho ao ar livre em todos os ribeirões encontrados. O único que não podia tomar banho era o Visconde, porque os sabugos são muito porosos; se caem na água, embebem-se de todo e emboloram. Emília jamais se esqueceu da "fase verde" do primitivo Visconde, quando umedeceu e foi encontrado completamente coberto de bolor azul-esverdeado.
Dali partiram para as margens do rio Eridiano (justamente o que os latinos chamavam Pádus e os italianos de hoje chamam Pó). Esse rio estava ganhando fama porque dias antes caíra por lá o cadáver de Faetonte, o tonto que se metera a guiar o carro do sol e fora fulminado por Zeus. Hércules tivera informação de que à margem desse rio moravam umas ninfas, filhas de Zeus e Têmis, que sabiam muita coisa sôbre o jardim das Hespérides.
Lá acamparam, e depois de mais uma suculentíssima refeição de carneiros o herói ordenou a Pedrinho que desse uma volta pelos arredores e indagasse do paradeiro das ninfas. O oficial pulou em Meioameio e lá se foi no galope. Uma hora mais tarde voltava com a informação certa: as ninfas filhas de Zeus e Têmis tinham residência a meia légua dali, num bosque.
Hércules foi vê-las sozinho.
— Esperem-me aqui — recomendou. Não me demorarei muito.
Enquanto o esperava, Pedrinho foi ao banho — e de relance viu à beira d'água uma nereida, ou a ninfa do rio.
Viu-a muito de relance, porque assim que ela o percebeu, mergulhou que nem uma sereia.
Pedrinho admirou-se duma coisa: como é que viu tão bem aquela nereida enão viu as dríades do bosque na aventurade Gerião? Tudo mistérios, naquela Grécia de mistérios.
De volta do banho deu com o herói já de volta.
— Então? — indagou Pedrinho.
— Encontrei-as, sim, mas houve erro da parte do meu informante. Quem está no segredo da localização do jardim das Hespérides é outra pessoa, não elas. É Nereu, o velho deus do mar deposto por Netuno. Temos de ir em procura desse venerável ancião — mas como arrancar-lhe o segredo?
Mestre que era em arrancar a vida aos monstros, o herói atrapalhava-se quando tinha de descobrir um segredo. Com ele era ali na violência. Para as coisas que necessitavam de miolo, o herói tinha de apelar para os pica-pauzinhos.
— Que acha que devo fazer? — perguntou ao menino — e como este engasgasse chamou Emília. Emília veio, xeretíssima. Sempre que Hércules dava a honra de chamá-la, vinha toda a rebolar-se, certa de que o mundo inteiro estava assistindo à cena.
— Que quer de mim, amor? — disse ao chegar.
— Uma consulta. Tenho de ir ao palácio do velho Nereu, que é quem sabe da exata localização do jardim das Hespérides. Mas estou atrapalhado com um problema: como arrancar ao antigo deus do mar o segredo?
Emília segurou o queixo e enrugou a testa. Depois seus olhos brilharam como brilho do heureca...
— Podemos fazer com ele o que fizeram com a Cuca lá no sítio — e contou toda a história do amarramento da Cuca e do suplício do pingo na testa. Foi o meio de obrigá-la a fazer o que eles queriam — isso naquela história do saci. Hércules deu plena aprovação à luminosa idéia.

No palácio de Nereu

Dias depois chegaram ao velhíssimo palácio do velho Nereu. Velho, velho, velho. Não podia haver maior velhice. De tão velho, estava já todo coberto de musgos e algas, ostras e mariscos. Parecia menos um deus do que um casco de navio encalhado. O seu palácio era uma gruta de velhíssimos e carcomidos rochedos à beira-mar. As ondas entravam e saíam, e entravam novamente — e assim já de séculos e séculos — sécula seculórum. Cada ondada das ondas era como bafo de ar que o velho deus craquento respirava — e assim ia vivendo a sua vida sem fim, porque enquanto houver ondas haverá vida em Nereu. Foi o que os pica-pauzinhos sentiram ao espiar de longe aquele casco de deus encalhado lá na gruta imensa que lhe servia de palácio.
Tudo pedra, com o teto de estalactites em cima e pontas e mais pontas de estalagmites embaixo. E quanta alga verdinha como cana, e vermelha, e de todas as cores do limo! E quantas conchas e quantos caramujos dos enormes!E polvos passeando por ali, e caranguejos caranguejando. Até aquele Bernardo, o Eremita da festa de casamento de Narizinho lá estava — isto é, um tataravosíssimo antepassado do Bernardo, o Eremita de Narizinho.
E um cheiro de maresia velha, e uma umidade pesada, e uma penumbra de meter medo, com morcegões avoengos dos morceguinhos modernos. Velhice era ali — Velhice da água, das ondas, dos bichos marinhos, das pedras. Emília sentiu-se logo velhinha, das bem corocas, e até começou a caducar, com uma fala muito trêmula, e pegou num bordão para apoiar-se. Sentia-se arcada como as italianas muito velhas e toda enrugadinhas de rosto. Até catacega ficou.
— Me dê sua mão, visvisconde, balbuciou ela — e enquanto lá esteve não largou da mão do sabuguinho.
Nereu estava dormindo, reclinado em seu leito de pedras negras cobertas de limo e cracas. Hércules parou diante dele. Que fazer para induzir uma criatura daquelas a contar um segredo? A sugestão de Emília não prestava. Pingo na testa!... Que adianta pingar água na testa duma múmia de deus já sem sensibilidade nenhuma e a viver toda a vida sob chuva de pingos que caíam do teto? E Hércules olhou para Emília com ar desanimado.
Apesar de velhinha e aparentemente caduca, Emília ainda funcionava muito bem de cabeça. Percebeu logo que naquele caso de nada valia o remédio usado contra a Cuca na aventura do saci e disse:
— O jeeito Lelé, ééé sugestionar esta múmia e faazer que ela soonhe em voz alta.
Pedrinho aprovou a idéia e, chegando perto de Nereu, começou a sugestioná-lo à sua moda, murmurando com voz disfarçada e grossíssima:
— Deus, deus do mar! Nereu, grande Nereu, ó vós que sabeis todos os segredos do mundo porque sois velho como o mundo!
Emília ia repetindo no outro ouvido de Nereu, como um eco, as últimas palavras de Pedrinho:
— . . .muundo...
Pedrinho continuou:
— Sabeis todos os segredos menos um só...
—uum sóó... repetiu o eco.
— Todos, menos o segredo da localização do jardim das Hespérides...
—... Hespérides — repetiu Emília em sua vozinha trémula de eco velho. Nereu, mergulhado no sonho, ouviu aquele som estranho, tão diferente dos que ouvia habitualmente por ali, das ondas que entravam e saíam. E lembrou-se do jardim das Hespérides. E sorriu um feio sorriso desdentado de velho velhíssimo. E falou em voz alta, como certas pessoas falam nos sonhos:
— Sim... sei... as Hespérides... lembro-me sim. Quatro... Lá no jardim perto de Tíngis...
Não era preciso mais. Sem querer o velho Nereu revelara no sonho o que ninguém no mundo sabia: o jardim das Hespérides ficava perto da cidade de Tíngis, a mesma em que eles haviam estado em aventura anterior. Fora lá que Hércules vencera Anteu, o filho de Géia.
— Nada mais temos a fazer aqui disse Hércules. Saiamos deste úmido palácio entorpecedor.
Saíram. À proporção que ia se aproximando das portas da imensa gruta, a ex-boneca ia remoçando. Primeiro botou fora o bordão em que se apoiava. Depois endireitou o corpo. E quando se viu restituida à luz do sol, estava já sem a menor tremura da falinha.
— Uf!... — exclamou, espreguiçando-se e desentorpecendo os músculos. — Velhice das que pegam na gente, é a primeira que vejo. Nós chamamos de velhas Dona Benta e tia Nastácia, mas perto de Nereu as duas nem nasceram ainda...
Hércules confessou que também havia sentido um entorpecimento dos músculos. Não havia dúvida que as velhices muito velhas contagiavam até os próprios heróis.
Depois de se restaurarem aos raios do sol e de trocarem mil impressões sobre o velho Nereu, puseram-se a caminho da Líbia.
Emília observou que não encontrava na gruta nenhuma nereida "dançando e cantando para distrair o velho pai", como lhe haviam contado. Com certeza, vendo que Nereu não saía nunca daquele sono de deus do mar aposentado, elas tinham fugido para cantar e dançarem lugares mais alegres.
A viagem à Líbia foi repetição da primeira. Hércules, coitado, enjoou como nunca, e chegou à praia da Líbia com o olho mais branco que manjar-branco. Mas restabeleceu-se prontamente e seguiu para Tíngis.
O povo da cidade o recebeu com grandes honras. Houve festas e mais festas, presentes e mais presentes. Emília ganhou um escaravelho de ouro, fabricado pelos ourives do Egito, terra vizinha. Mas ninguém na cidade pôde informar coisa nenhuma sobre o jardim das Hespérides.
Hércules olhou para Emília como quem pede opinião — e ela:
— Nereu disse que o jardim ficava perto daqui, mas não declarou onde. A palavra perto na boca dum diabo velho como aquele pode siguificar uma boa lonjura.
— E que acha que devemos fazer?
— O remédio, Lelé, parece-me um só: aplicar o faz-de-conta — e aplicou-o: Faz de conta que fica a dois dias de marcha rumo sul.
Hércules continuava a não entender muito bem aquele negócio do faz-de-conta, mas já se habituara a não duvidar dos seus efeitos. Voltou-se para os outros e deu ordem de marcha:
— Vamos caminhar rumo sul durante dois dias. O jardim das Hespérides é lá.
— Lá onde, Hércules? — reclamou Pedrinho. — Dois dias é "tempo" não é "lugar".
O herói olhou novamente para Emília — e Emília, lampeirissimamente: Com dois dias de marcha batida chegaremos a um certo lugar. O jardim das Hespérides é aí e pronto! Aposto um pomo!
Diante daquela firmeza nada mais restava senão porem-se a caminho, e puseram-se a caminho, com o pobre Lúcio sobrecarregado com os presentes recebidos. Muitas rosas vira ele em Tíngis e grande vontade lhe veio de comê-las mas era um asno de palavra. Havia prometido agüentar até o fim e agüentaria.
O terreno era dos arenosos — beira de deserto. Árvore dos países temperados, nenhuma. Só palmeiras, sobretudo tamareiras. Pedrinho regalou-se de comer tâmaras no cacho e levou um sortimento no lombo de Lúcio. Meioameio dava galopadas gostosas, porque para um centauro nada melhor do que as planícies sem tropeços. Em certo ponto viram uma miragem estampada no céu.
— Que maravilha! — exclamou Pedrinho; e o Visconde explicou que a miragem reproduz como um espelho o que está embaixo.
— Então essa miragem está reproduzindo o jardim das Hespérides! — berrou Emília. — Estou vendo a árvore dos pomos de ouro, carregadinha...
E era mesmo. Logo adiante avistaram, lá bem longe, um começo de jardim.
O jardim das Hespérides, afinal...

No jardim

Um jardim encantado no meio do deserto! De longe parecia um oásis como todos os oásis. Que é um oásis? O Visconde explicou:
— A causa dos desertos é a falta d'água. Planta é um bichinho que não vive sem água. Nos pontos do mundo onde não chove, não há rios, e portanto não há água, e portanto não há vida de espécie nenhuma. A vida nasceu da água e só vive com água. Mas em certos pontos desses desertos, existem, aqui e ali, fontes de águas subterrâneas, que vêm de longe e brotam à superfície; e então as sementes que o vento traz germinam e viram capões de mato. Oásis é isso: um capão de mato no meio do deserto.
— Que mato? — perguntou Emília.
— Em geral, palmeiras e outras plantinhas desérticas, como os cactos. Nascem e crescem ali na nesga de chão que a fonte umedece. E é graças aos oásis que os beduínos podem atravessar o deserto. Organizam caravanas de camelos que varam de um oásis a outro, como os trens varam duma estação a outra, como as tropas varam de um pouso a outro.
— E por que usam esses beduínos camelos e não cavalos?
— Porque o camelo adaptou-se ao deserto. Aprendeu a encher-se de água quando a encontra e a passar dias e dias sem beber nem um pingo.
— Então são caixas dágua ambulantes...
— Isso mesmo. Levam-na consigo — e muitas vezes, nos grandes apuros, os beduínos matam os camelos para beber a água que eles guardam lá dentro.
Emília cuspiu, com cara de nojo.
— Grande porcaria...
— Quando a sede vem os homens bebem até as águas mais sujas — elas viram o néctar dos deuses... Não há maior tortura que a da sede — e assim conversando sobre sede e fome, camelos e águas limpas e sujas, a expedição foi se aproximando daquele jardim-oásis. Que lindo! Como se regalaram só de vê-lo à distância! Muitas palmeiras como nos oásis comuns, mas debaixo das palmeiras numerosas plantas das que dão flores lindas e frutas gostosas.
Hércules parou. Tinha de planejar a entrada no jardim, e todo cuidado seria pouco. Havia o dragão de cem cabeças de guarda àquilo. Em que ponto ficava o dragão? Escondido nalguma gruta, como o da ilha de Eritia? E o herói, na forma do costume, volveu os olhos para os pica-paus. Eles é que sabiam pensar certo nas ocasiões difíceis.
— Então, oficial? — exclamou Hércules olhando para o seu oficial de gabinete.
Pedrinho estava muito atento, como que a procurar se havia uma entrada no jardim. Não viu nenhuma. Podiam entrar por onde quisessem. Uma solução lhe veio:
— Podemos mandar o Visconde assuntar.
Emília aprovou a idéia, mas com um aperfeiçoamento:
— E o Visconde pode ir camuflado, vestido de folhas secas, como aquele "bicho-folhagem" das histórias.
O sabuguinho suspirou. Era sempre assim. Só nos momentos perigosos se lembravam dele.
Havia ali pelo chão muitas folhas trazidas pelo vento. Pedrinho juntou uma porção para camuflar o Visconde.
— Há cera em sua canastra, Emília?
Havia um pelotinho. Que é que não havia na canastra Emíliana? E lá abriu ela a canastra e tirou a bolota de cera.
E sabem que cera? A de Ícaro. Enquanto os outros ouviam as derradeiras palavras do pobre
moço caído lá no mar e lançado à praia pelas ondas, Emília, sempre tão prática, ia tirando com a unha os restos da cera do coto daquelas asas derretidas pelo sol.
Com aquela cera Pedrinho fez do Visconde um perfeito bicho-folhagem, do qual nem as Hespérides nem o dragão desconfiariam — e lá foi o Visconde investigar.
Meia hora depois regressava.
— Vi tudo — disse ele. As Hespérides moram num maravilhoso palácio no centro do jardim. Bem na frente há uma árvore carregada dumas frutas do tamanho de laranjas-limas, dum amarelo de ouro. Deve ser a que procuramos.
— Por que não trouxe um pomo? Não os havia pelo chão?
Pedrinho riu-se.
— Que ingenuidade! Pois é lá possível que pomos de ouro andem pelo chão, como as laranjas lá do nosso pomar? As Hespérides juntam todos e guardam-nos como as maiores preciosidades do mundo. E o dragão, Visconde?
— Estava lá de guarda, sim. Encontrei-o dormindo com metade das cabeças. As outras vigiavam, com os olhos muito abertos.
— São cem mesmo?
— Não contei, mas é cabeça que não acaba mais.
— E as Hespérides? — quis saber Emília.
— Vi três passeando pelo jardim. Lindas! Impossível criaturas mais lindas — e o Visconde, que era grande apreciador da beleza feminina, revirou os olhos para o céu.
Bom. Hércules ficou instruído da situação. Restava agora estudar o meio de destruir o monstro. Atacá-lo com flecha já vira ser absurdo. Que fazer? e o herói olhou para Emília. "Que fazer, Emilinha?"
A ex-boneca segurou o queixo e franziu a testa. Era assim que "espremia" a caixa das idéias, fazendo que espirrasse alguma. Depois de uns instantes seus olhos brilharam — sinal de idéia espirrada.
— O meio é narcotizar esse bicho...
Pedrinho fez cara de decepção.
— Soluções teóricas são muito fáceis. Narcotizar!... E onde o narcótico, boba? No deserto, não há farmácia nas esquinas.
Emília pensava, pensava. Hércules não tirava dela os olhos. Como fazer? Evidentemente Emília estava remoendo uma idéia qualquer, com ar de quem quer e não quer. Por fim disse, depois dum profundo suspiro:
— O jeito é um só: fabricarmos ópio...
A decepção cresceu. Pedrinho soltou um "Oh!" de desapontamento e Lúcio olhou para o centaurinho. Emília, porém, os surpreendeu com uma resposta inesperada:
— Podemos fabricar ópio com a varinha de condão. Arranjem-me um pouco d'água.
O rosto de Pedrinho iluminou-se diante da imprevista generosidade da cigana. Ia ceder uma das viradas de sua vara! Milagre puro! Só o amor poderia explicar aquilo. "Será que está apaixonada por Hércules?"
Pedrinho despejou na palma da mão do herói um pouco d'água da sua frasqueira, enquanto Emília, com muitos suspiros, abria a canastra em busca da varinha.
— Abaixe essa mão, Lelé — disse depois ao herói, que estava com a mão em concha com a água dentro. Hércules abaixou-a à alturinha da ex-boneca.
Emília deu um último suspiro, dos mais puxados, e: "Vira que vira, virade!" tocou na água com a varinha. Imediatamente a água virou num caldo grosso e preto. O Visconde veio provar. "Sim, é ópio do legítimo!"
Muito bem. Estava obtido o ópio. Como agora fazer o dragão beber aquilo? Emília perguntou ao Visconde:
— Não viu se o dragão tinha algum bebedouro perto, como o das galinhas e pintos?
O Visconde refranziu a testa, como procurando recordar-se.
— Creio que tinha... Tinha, sim, agora me lembro.
— Pois então volte lá e despeje este ópio na água do bebedouro.
Hércules continuava com a mão em concha, com aquele caldo preto dentro.
De que modo dar aquilo ao Visconde?
Hércules atrapalhava-se com qualquer coisa. Teve novamente de olhar para Emília.
— Pois despeje na cartolinha dele, Lelé.
O herói sorriu. Tudo tão simples para Emília — e lá foi o caldo preto para a cartola do Visconde. Encheu-a de transbordar.
— Pronto, vá! — ordenou Emília — e o visconde-folhagem lá se foi, passo a passo, segurando com toda a atenção as abinhas da cartola, de medo de tropeçar e derramar aquilo. Voltou ao jardim e... não apareceu mais.
Depois de meia hora de espera todos ficaram nervosos. Por que não voltava o Visconde? Que lhe teria acontecido? As hipóteses eram muitas. "Quem sabe se foi descoberto e comido pelo dragão?" — dizia um. "Quem sabe se alguma Hespéride havia dado com a maçaroca a mexer-se e a levara para o palácio como uma curiosidade da natureza?"
Duas horas se passaram e nada. Por fim Pedrinho tomou uma resolução: mandar Lúcio ver o que havia.
O pobre do Asno de Ouro tremeu da cabeça aos pés. Seus pelos arrepiaram-se, mas Emília explicou que se fosse muito cautelosamente e espiasse de longe, de dentro das moitas, podia ver sem ser visto e verificar se o dragão bebera a água com ópio.
— Como posso saber disso? — murmurou o pobre asno, ainda trêmulo.
— Se o dragão estiver acordado, é que não bebeu. Se estiver dormindo é que bebeu. Tão simples...
E Lúcio não teve remédio senão ir, mas foi com um pensamento mau na cabeça: "Eles não têm dó de mim? Pois então me desligo da palavra dada — e se houver no jardim rosas, mastigo as que puder", e com esse plano lá se foi cautelosamente de rumo ao jardim. Todos ficaram à espera na maior ansiedade.
E se o dragão houvesse comido o Visconde e comesse também o pobre asno?

O dragão de cem cabeças

Mas não foi assim. Minutos depois voltava Lúcio, pé ante pé, de cabeça baixa e orelhas caidíssimas, como se andando assim ninguém o enxergasse. Não tendo encontrado rosa nenhuma, vinha dar contas da missão.
— Sim — disse ele. Encontrei o monstro dormindo com todas as cabeças.
Os olhos de Hércules brilharam. Emília deu um pinote e Pedrinho bateu palmas. Tudo ia correndo maravilhosamente bem. Com o dragão adormecido pelo ópio, a façanha de Hércules se tornava uma brincadeira de criança. Era só chegar e com a clava ir macetando aquelas cabeças.
— E o Visconde? — perguntou Pedrinho. — Não o viu?
— Vi, sim. Vi uma das patas do dragão apoiada numa coisa ou maçaroca de folhas secas que deve ser o Visconde. Ele aproximou-se demais e...
Hércules correu a mão pela clava, alisando-a. Depois ergueu-se e disse: — Vou com Pedrinho. Os outros esperem-me aqui — e foi com o seu oficial. Entraram no jardim com a perícia com que os índios entram no mato, sem fazer o menor barulho. Foram varando, varando por entre as plantas, na maior parte desconhecidas de ambos. Súbito, uma clareira à frente. Lá estava diante deles o palácio das Hespérides! Pedrinho tremeu de entusiasmo.
— Que maravilha! — exclamou em voz baixa. Parece coisa de sonho...
E diante do palácio viram uma árvore com frutas amarelas — evidentemente os pomos de ouro. E lá estava de guarda à árvore o dragão de cem cabeças — mas dormindo, coitado, com todo aquele cabeçame aplastado no chão. Pedrinho encheu-se de coragem e disse:
— Me dá a sua clava, Hércules. Eu mesmo esmago pelo menos metade daquelas cabeças.
O herói riu-se. Pedrinho nem pôde erguer a tremenda clava. Devia pesar umas quatro arrobas. Mas vendo ali no chão um pedaço de pau de bom tamanho, apanhou-o.
— Com isto me arranjo. O tacape do síndios lá da minha terra é um pau mais ou menos assim — e lá se foi de tacape em punho rumo ao dragão adormecido. Caminhava cautelosamente, pé ante pé, como o asno, e já de tacape erguido. E ia descarregar o primeiro golpe numa das cabeças, quando deu com o Visconde. Exatinho como Lúcío dissera: estava seguro sob uma das patas do monstro. Pedrinho entreparou, sempre de tacape levantado. "Está vivo, Visconde?" — perguntou. — "Sim" — respondeu uma vozinha espremida de sabugo esmagado por pata de dragão. — "E agüenta até matarmos este bicho?" — ainda perguntou o menino. — Sim" — respondeu de novo o “empatado".
Pedrinho sossegou e, erguendo o tacape no máximo, desceu-o com toda a força sobre a cabeça número um do dragão. Era dura. Foi o mesmo que dar uma paulada numa pedra. Pedrinho ergueu de novo o tacape e desferiu segunda pancada com mais força — e ficou ali, bá, bá, bá, a malhar tacapadas na cabeça número um. Hércules, ali perto, ria-se. Pedrinho já estava a suar e frouxo — e não conseguiu esmoer nem sequer uma das cem cabeças. Parou olhou para Hércules, desanimado.
— Agora é que vejo que isto de ser herói não é para todos! Não agüento mais — e jogando o tacape, sentou-se, ofegante.
Hércules então ergueu a clava e esmoeu de um golpe a cabeça número um, e depois a número dois — e assim todas, uma por uma, até a noventa e sete. Quando faltavam apenas três, o dragão acordou e arreganhou para ele três horríveis bocarras vermelhas, com mais dentes que as dos crocodilos, e com línguas de ponta de flecha. E atacou.
Hércules saltou para trás num pulo de tigre, arrastando consigo Pedrinho. Senão fosse isso, adeus neto de Dona Benta! Sentado ali a descansar, como estava, e desprevenido, foi o puxão de Hércules que o salvou.
Uma flecha partiu do arco do herói — e outra — e outra. As últimas três cabeças do monstro penderam e foram juntar-se às noventa e sete já esmagadas.
Nesse momento uma voz soou atrás deles:
— Avé, Avé, Evoé!
Os dois voltaram o rosto. Era Emília que, não resistindo à tentação de ver com seus olhos a matança do dragão, deixara os companheiros e viera sózinha. Lá estava ela trepada a uma árvore...
O grito de Emília ecoou no palácio das Hespérides. Aretusa, ocupada em tricotar um cinto para Juno, ouviu aqueles "Avés" e estranhou, por que além delas só havia no jardim maravilhoso o dragão. Ora o dragão era mudo como as serpentes — só silvava de vez em quando, tsi, tsi, tsi, como a Kaa do Livro da Jângal. E a moça correu a ver do que se tratava.
Dando com o herói e um menino lá perto do dragão imóvel, evidentemente morto, Aretusa soltou o grito das sereias:
— Humanos!...
Suas três irmãs acudiram à janela Egle, Hestia e Eritia, cada qual mais linda.
Emília, lá do galho da árvore, percebeu e sussurrou para Hércules:
— Já viram você, Lelé. Estão de olhos arregaladíssimos olhando para cá... e desceu.
Nada mais tinham a fazer ali. Agora, ao palácio!
— E o Visconde? — berrou Emília.
Sim, o Visconde! Entretidos com tanta coisa, Hércules e seu oficial tinham-no esquecido completamente lá sob a pata do dragão morto. A pergunta de Emília chamou-os à realidade. Pedrinho foi até lá com ela. Ergueu com esforço a pata do monstro, enquanto Emília puxava o sabuguinho. Como estava amarrotado!
Despiram-no das folhas secas e examinaram-lhe o corpo. A barriga toda amassada, a cartolinha entortada...
Hércules dirigiu-se ao palácio das Hespérides. Aretusa veio recebê-lo à porta e com espanto do herói o reconheceu.
— Hércules! — exclamou. — Não me surpreende a tua presença aqui. O oráculo de Amon já o tinha previsto.
Estava falando com a maior gentileza, sem hostilidade nenhuma no tom; isso muito alegrou Pedrinho, fazendo-o pressentir que tudo iria acabar bem. Aretusa fez o herói entrar e chamou as outras: "Egle, Hestia, Eritia, venham ver quem está aqui..."
Pedrinho tonteou. Nunca supôs que houvesse criaturas de tanta beleza — e pela primeira vez sentia não ser gente grande, para namorá-las. Hércules fez as apresentações do costume. Aretusa achou Emília muito engraçadinha, mas notou no Visconde um cheiro muito esquisito...
— Parece ópio...
— É ópio, sim! — berrou Emília muito lampeira. — Ele trouxe caldo de ópio na cartola para adormecer o dragão...
— Ah, foi assim? — exclamaram as Hespérides, aparentemente satisfeitas com a morte do dragão, e Aretusa contou a história da árvore dos pomos de ouro. Juno, ao ter notícia da árvore maravilhosa, mandara para ali o dragão de cem cabeças para guardá-la, pois não queria que ninguém no mundo possuísse nem um pomo sequer. Todos os produzidos eram guardados e enviados para ela no Olimpo.
— Para quê? — indagou Emília, com a sua carinha de ex-boneca insaciavelmente curiosa.
— Para comê-los — respondeu Aretusa.
— Oh, então esses pomos são comestíveis?
— Sim, e deliciosos. Mas não são de ouro?
— Só na cor. Tornam-se de ouro ao toque de certas varas feiticeiras.
Pedrinho, que havia saído da sala, reapareceu com quatro pomos na mão e um ar muito desapontado: "São laranjas!" — disse ao apresentá-las a Hércules.
Hércules mordeu uma. Era de fato laranja.
A decepção foi grande. Laranja, laranja... Por que então aquele empenho pela posse duma fruta que abundava em todos os países do Mediterrâneo? Hestia explicou que abundava agora: antes só havia ali aquele pé. As "laranjeiras" dos países do Mediterrâneo eram produtos das sementes que Juno jogara lá de cima. A laranjeira inicial, a primeira aparecida no mundo, era a daquele jardim.
— Mas como foi então que Atlas esteve aqui e levou um pomo de ouro maciço, que eu bem vi, porque esteve na minha canastra uma porção de tempo?
— Porque a pedido dele nós o tocamos com a nossa varinha mágica.
Atlas é nosso pai e esteve cá justamente no único dia em que o dragão dormiu com as cem cabeças. Colheu uma. Desapontou tal qual vocês agora — então, para contentá-lo, Aretusa virou a laranja em pomo de ouro.
Emília contou que também possuía uma vara de condão, dada por Medéia em troca daquele pomo de ouro de Atlas.
As Hespérides muito se admiraram daquilo — e Egle achou que Emília estava habilitada a tornar-se uma pequena fada.
O característico das fadas é a posse das varinhas de condão. Emília enfunou-se toda.
— A vara dela já está só com dez viradas — disse Pedrinho para abater-lhe o orgulho. Tinha cem quando a recebeu de Medéia. Mas a boba, no maior assanhamento, passou a manhã inteira lá no acampamento a virar isto naquilo. Gastou em bobagens quase todas as viradas da varinha...
As Hespérides sorriram.


A volta

A estada deles no palácio das Hespérides foi um contínuo deslumbramento. Banquetes, passeios pelo jardim maravilhoso, danças e músicas à noite. Hércules sentia-se em tamanho enlevo que nem pensava em voltar. Bem que passaria o resto da vida ali. Quem o chamou à ordem foi Pedrinho.
— Isto não deixa de ser ótimo, mas nós temos obrigações. Euristeu lá está à sua espera e vovó anda ansiosa pelo nosso retorno. Este décimo primeiro Trabalho chegou praticamente ao fim. Temos de voltar...
Nesse momento, Egle, que havia chegado à janela, abriu-se numa exclamação:
— Venham ver! Venham ver!... Um centaurinho e um asno...
Hércules explicou a presença ali de mais aqueles dois estranhos personagens. Depois declarou que com grande pesar de coração tinham de partir. Aretusa veio com uma cesta de laranjas — os famosíssimos pomos de ouro. Pedrinho descascou uma em cuia e provou: laranja-lima da boa! Deu uma metade a Hércules e chupou a outra.
As despedidas foram comoventes. Emília ganhou uma porção de coisas lindas e Pedrinho lá se foi com a cesta de pomos.
A volta correu acidentada. Aqueles desertos da Líbia sempre foram assolados por animais ferozes, que viviam atacando as aldeias dos beduínos — leões, chacais, hienas. Hércules liquidou com todos. Depois tomaram uma nau para atravessia do Mediterrâneo e aportaram na
Ilha de Rodes para descanso. Lá aconteceu um caso esquisito. Hércules, depois de sarar do enjôo, saíra a passeio com Pedrinho, um passeio a pé pelos arredores do porto. Súbito, aparece à frente deles um carro de bois. O herói estava com fome. Desencangou a junta de bois, comeu um e sacrificou o outro a Palas, sua divina protetora. O carreiro fugiu e do alto dum morro deu de berrar contra o herói as maiores injúrias mas tudo ficou por isso. Quando Hércules tinha um boi inteiro no estômago, agia como as sucuris — não ligava a mínima importância a provocações. E dessa aventura nasceu um costume curioso: quando mais tarde os habitantes de Rodes instituíram sacrifícios em honra de Hércules, costumavam como parte das cerimônias injuriá-lo, como o fizera o carreiro...
Prosseguindo na viagem, foi o navio impelido por um grande temporal para muito longe da sua rota — de modo que quando deram acordo estavam mais próximos do Cáucaso do que de Micenas.
Tudo arte de Hera. Furiosa com o novo triunfo do herói no caso das Hespérides, a vingativa deusa encomendara a Netuno aquele temporal, o mais violento que ainda se viu. A nau que os transportava naufragou nuns arrecifes do Mar Negro, mas Hércules e os pica-pauzinhos foram salvos por um cardume de delfins — uns delfins a serviço de Palas.
Foi o que sugeriu o sabuguinho.
— Mas como, Visconde, pode Palas ter a seu serviço delfins de Netuno? — objetou Emília
Não é Netuno quem comanda todos os seres do mar?
— É, mas não existe governo sem oposição. Sempre que um ser marinho se descontenta com a política do governo — que é Netuno — passa para a oposição — que é Palas.
Os únicos desastres do naufrágio foram a molhadela do corpo do Visconde e a entrada de água dentro da canastrinha da Emília. Teve ela de abri-la e estender ao sol todos os objetos, depois de bem lavados em água doce.
Pedrinho também lavou o Visconde, que ficara com o corpo salgadíssimo — e dessa lavagem resultou maior encharcamento ainda. Sabugo de milho bebe água como esponja.
— Vai repetir-se aquilo que houve no começo da vida do Visconde — observou Emília. — Vai esverdear de bolor...
Pedrinho não viu nisso mal nenhum, porque sua intenção, logo que voltasse ao sítio, era entregá-lo a tia Nastácia para uma reforma do corpo. Ela aproveitaria as perninhas, os braços e a cartola num belo sabugo novo — e eles enterrariam o sabugo velho num canteiro da horta. Era assim que a Medéia-Nascia reformava o Visconde, sem necessidade de fervura nenhuma.
Depois de restabelecer-se de mais aquela viagem por mar, Hércules rumou na direção do Cáucaso, que é a famosa montanha plantada entre a Europa e a Ásia. Por quê? Por que em vez de seguir para Micenas se pôs Hércules a caminho do Cáucaso?
Por causa de Prometeu. Já de muito tempo andava com idéia de uma visita a esse titã de fígado devorado pelo abutre de Zeus, e que ocasião melhor que aquela em que um temporal o lançava quase aos pés do Cáucaso?
Quando Hércules lhes comunicou a grande idéia, Pedrinho e Emília abraçaram-no comovidos. Ambos sabiam a história de Prometeu, contada por Dona Benta.
— Prometeu era um dos titãs que se rebelaram contra Zeus, e depois de vencido recebeu uma tortura horrenda: ficar eternamente amarrado ao Elbruz, o pico mais alto do Cáucaso.
— Quantos metros? — exigiu Emília.
— Tem 5.657 metros, cantou o sabuguinho — e continuou,de gozar a admiração de Hércules:
— Pois é. Zeus condenou-o a ficar amarrado naquele pico eternamente, e a ser eternamente bicado por um abutre...
— Sei — disse Pedrinho. — Bicado no fígado. O abutre come o fígado de Prometeu diariamente, e diariamente o fígado renasce... Os deuses sempre foram vingativos. Dai vem aquele dito: "A vingança é o manjar dos deuses" — e ninguém jamais verificou isso melhor do que esse titã. O suplício de Prometeu é de arrepiar os cabelos.
— Mas que é que ele prometeu? — perguntou Emília.
— Prometeu não prometeu coisa nenhuma; fez coisa mais importante: deu ao homem o elemento inicial do progresso, que é o fogo.
— E onde foi ele achar fogo?
— No céu. Naquele tempo os homens cá na terra viviam na maior barbárie, exatamente como os bichos. Moravam em cavernas, comiam carne crua — uns perfeitos peludos. E isso porque não dispunham do fogo. Sem o fogo não há metais e sem metais não há civilização. O bicho-homem estava impedido de civilizar-se por falta de fogo.
— E então aparece Prometeu e promete dar fogo ao homem, xeretou Emília.
— Espere. As coisas estavam nesse ponto quando veio ao mundo o titã Prometeu, irmão de Atlas. Mostrou desde logo ser um verdadeiro gênio criador. Foi ele quem deu ao homem isso a que chamamos "civilização". Foi ele quem sugeriu a construção de naus no tempo do Dilúvio, com as quais a raça humana se salvou do afogamento geral. Foi ele quem ensinou ao homem as primeiras artes. Em suma, tanta coisa fez em benefício da humanidade que Zeus se indignou e por fim o puniu da maneira mais cruel.
— Mas então Zeus é um malvado! — berrou Emília num súbito acesso de indignação...
— Emília, Emília!... — advertiu Pedrinho. — Lembre-se de que está na Grécia com todos os deuses vivinhos lá em cima, talvez nos escutando...
Mas a ex-boneca estava revoltada demais e nessas ocasiões esquecia-se de tudo. E continuou:
— Malvado, sim. Peste!... Sustento o que digo até nas fuças dele, e ele que me venha amarrar num Cáucaso para ver o que acontece!... O titã só estava fazendo o bem, ensinando as artes. Como poderiam os homens viver na terra sem as artes — a arte de fazer panelas de barro, a arte de cozinhar, a arte de construir casas? E como poderiam arranjar-se sem o fogo? E o tal Zeus duma figa amarra o coitado no Cáucaso para que um estupor de abutre lhe fosse eternamente devorando o fígado? Malvado, sim. Casca de ferida...
Todos estavam assustadíssimos, com os olhos no céu à espera dos terríveis raios do deus supremo. Pedrinho correu para ela e tapou-lhe com a mão a boca. Mas Hércules sorria da maneira mais estranha, como que subitamente iluminado. É que ele sempre achara uma grande injustiça divina aquele suplício infligido ao titã, mas nunca tivera a coragem de o dizer, nem sequer a si mesmo.
Ninguém na Grécia punha em dúvida os decretos de Zeus. Ninguém duvidava de Zeus nem da sua alta sabedoria. A adulação era geral. Todo mundo lhe fazia sacrifícios nos templos e altares caseiros. Pois era num ambiente assim, de perpétuo terror pânico e medo à vingança de tão vingativos deuses, que Emília de Rabicó, aquela figurinha lá do sítio de Dona Benta, ex-boneca de pano feita por tia Nastácia, arrostava o deus dos deuses, dava-lhe de "malvado", de "peste" e até de "casca de ferida" pelas ventas! E por fim lançou um grito de revolta:
— Pois vamos libertar Prometeu! Vamos matar aquele estupor de abutre e desacorrentar o pai do fogo e de todas as artes!...
Tão tremendas palavras soaram dentro de Hércules como a voz da sua própria consciência, acordada depois de longo período de mudez. Sim. Era aquele o seu pensamento secreto e nunca sussurrado nem para si mesmo. O sonho inconsciente de Hércules sempre fora libertar Prometeu. Esse sonho inconsciente acabava de fazer-se consciente graças à revolta e ao grito de guerra de Emília. E aconteceu então um fato assombroso: Hércules, o tremendo e invencível Hércules, o homem mais forte que o mundo jamais produziu, chorou... Chorou de pura emoção. E agarrando Emília e beijando-a na testa disse: Você é a própria voz da minha consciência, criaturinha...

Prometeu

— A raiva de Zeus contra o titã vem de várias coisas — disse o Visconde. — Houve primeiramente a história do touro.
— Que touro?
— Prometeu havia sacrificado a Zeus um touro, mas Zeus estranhou o cheiro da fumaça. Espia e descobre tudo: o touro não era touro de verdade, sim uma armação de vime e palha... A partir desse dia Prometeu ficou marcado. Em seguida veio a história de ensinar as artes aos homens. E se depois de grandemente se aperfeiçoarem nas artes os homens virassem deuses? Zeus não gostou da brincadeira. E por fim veio o grande crime:
Prometeu roubou o fogo do céu para dá-lo ao homem. Ah, aí Zeus explodiu e inventou a incrível tortura do abutre a comer um fígado vivo e renascente.
— E quando foi isso?
— Há milhares e milhares de anos...
— Quer dizer então que o pobre Prometeu está lá há milhares de anos e não há ninguém que se anime a libertá-lo? — berrou Emília, vermelha de cólera. É preciso então que eu, uma coitadinha lá da roça, me lembre disso? Porcaria...
— Que é que é porcaria, Emília? — perguntou Pedrinho.
— A humanidade, bobão, pois não vê? Os homens que andam a regalar-se com os benefícios das artes ensinadas pelo titã, com os assados de carneiro e boi feitos no fogo que ele lhes deu, sem que ninguém se lembre de ir tirá-lo de lá — de matar aquele estupor de abutre e jogar aquelas correntes no nariz de Zeus.
Pedrinho agarrou-a de novo e tapou-lhe a boca. Ficou assim uns instantes, com os olhos no céu, à espera dos raios do Olimpo. Mas não aconteceu coisa nenhuma. Em vez de raios, quem surgiu foi Minervino.
— Viva!... pensamos que já se havia esquecido de nós. Há tanto tempo não aparece...
— Apareci hoje para defendê-los de vários perigos próximos.
— Desceu diretamente do Olimpo?
— Sim...
— Não notou se Zeus está assim com cara de quem comeu e não gostou?
— Zeus deve estar sonhando com Europa, Leda ou qualquer das suas antigas namoradas, porque ainda não acordou esta manhã. Certos sonhos fazem-no despertar muito tarde.
Pedrinho respirou. Zeus não tinha ouvido o desabafo da Marquesa de Rabicó...
Minervino contou mil coisas. Palas estava radiante com o desfecho da aventura das Hespérides e queria agora guiá-los naquelas montanhas.
— Ela já sabe que Lelé vai libertar Prometeu? — perguntou Emília.
— Já.
— Como, se essa idéia nasceu agorinha mesmo na cabeça dele?
— Os deuses adivinham o pensamento dos mortais. Palas leu na cabeça de Hércules esse pensamento e mandou-me acompanhá-lo.
Emília contou que havia visto Palas no momento em quê ela desceu para impedir a luta entre Hércules e Marte.
— Sim, Palas desceu — confirmou Minervino. — Eu acompanhei-a.
— E Marte? Como vai do ferimento no pulso? — perguntou Pedrinho. — Que coisa esquisita um herói derrotar um deus, e logo que deus, o da guerra...
— Não há o que um homem não faça quando tem Palas do seu lado. Minha deusa é a grande deusa. Quem goza de sua proteção nada tem a recear, nem mesmo de Zeus. Palas faz dele o que quer.
Foram caminhando rumo ao Cáucaso. Os primeiros contrafortes já estavam perto. Começou a subida. Enquanto a marcha fora no plano, Lúcio não protestou muito. Limitava-se a uns suspirinhos de longe em longe. Mas na voz de "subida de morro", estrilou.
— Não agüento mais! — disse. — Gentinha, Visconde de sabugo, canastra cheia de laranjas e não sei quantos presentes, tudo em cima do meu lombo e serra acima, ah, não!... Tenham paciência. Lembrem-se de que não sou burro de nascença, dos que suportam cargas de oito arrobas. Sou gente com forma de burro. Minha força é de gente, não de burro e tanto chorou que Emília dividiu o carregamento com Minervino, o qual se ofereceu para levar uma parte enquanto estivessem em zona montanhosa.
Já estavam em pleno Cáucaso. O pico de Elbruz aparecia ao longe. Era lá que gemia preso a grossas correntes o maior benfeitor dos homens. Emília vibrava de cólera a essa idéia. Seus olhinhos telescópicos não se despregavam do pico semi-envolto em nuvens. Súbito, depois de mais umas horas de caminhada, Emília deu um berro.
— Estou vendo! Estou vendo um homem nu de mãos atadas às costas. Está meio sentado numa pedra, com a cabeça reclinada para trás, como que também apoiada na pedra. Meu Deus! Que cara de dor ele tem!... A gente percebe que é dor de fígado comido. Mas não vejo abutre nenhum... Esperem... Vem vindo um enorme. Chegou. Vem "recomer" o mesmo fígado que comeu ontem e renasceu de noite...
Todos olhavam para o rochedo e não viam nada. Emília era mesmo telescópica. Mas não houve fantasia nenhuma naquela sua visão antes dos outros, porque quando se aproximaram um pouco mais, todos distinguiram a cena por ela descrita. Lá estava o titã preso ao rochedo, com o abutre a lhe
bicar o fígado. E até os gemidos do grande mártir todos chegaram a perceber dali.
— Há milhares de anos que ele geme de dor — disse o Visconde. — Há milhares de anos que o abutre lhe rói o fígado e só agora aparece quem se proponha a libertá-lo. Não há dúvida que a ingratidão é própria do homem...
O Viscondinho não era só ciência; às vezes também filosofava.
Para libertar Prometeu, Hércules tinha primeiramente de destruir o abutre. Que abutre era aquele? Ah, um abutre de Zeus, eterno também, pois que teria de ficar eternamente a devorar o fígado eternamente renovado de Prometeu. Ora, sendo assim, como poderia o herói matar o que era eterno? Esta observação acudiu a Pedrinho.
O mensageiro de Palas respondeu:
— Minha deusa já ponderou sobre isso. Hércules tem que atacá-lo nos olhos. Não o matará, já que é um abutre eterno, mas o cegará para sempre. E, cego que esteja, não poderá impedir a libertação do titã.
Emília não gostou da idéia de Palas.
— Fica cego e que tem isso? Fica cego e não sai dali de junto de Prometeu, continuando a comer-lhe o fígado da mesma maneira e bicando quem aproximar-se. Os cegos comem tanto como os não cegos, embora não vejam a comida.
— E os cegos acabam ficando com os outros sentidos de tal modo agudos que por fim dispensam os olhos — acrescentou o Visconde. — Acho que Emília tem razão. Cegar o abutre não adianta nada.
Minervino atrapalhou-se e começou a dizer: "Mas Palas..." Emília interrompeu-o:
— Sim, Palas, a boa Palas, a grande Palas cochilou. Não há quem não cochile. Dona Benta diz que até Homero cochilava. Não quero que Lelé se limite a cegar o abutre. Temos de fazê-lo cair num laço — e enquanto estiver preso, vamos lá e libertamos o titã.
Hércules achou excelente a idéia de sua "dadeira" e encarregou Pedrinho de pegar o abutre. O menino pulou de contente. Isso de laços e armadilhas era com ele. Sabia pegar toda sorte de passarinhos, com peneira, com arapuca, com laçada de crina de cavalo, com visgo e até com anzol. Certa vez, quando tinha sete anos, pegou um urubu no quintal com anzol — e muito boas palmadas levou de sua mãe Tonica por causa da judiação. Ora, a diferença entre os passarinhos lá no sítio e aquele enorme abutre era só de tamanho. Logo, bastava que ele fizesse uma armadilha proporcional.
Pedrinho pensou, pensou, e por fim resolveu seguir pelo caminho mais simples e rápido: o do anzol. Mas onde anzol?
— Você não terá por acaso um anzol na sua canastrinha, Emília? — perguntou ele por perguntar — e a resposta assombrou o herói, que estava acompanhando tudo:
— Tenho!... — respondeu ela.
E tinha! Entre as muitas miudezas da sua "canastra de badulaques" havia um anzol grande que Emília "achara" no quarto de Pedrinho. O menino reconheceu-o imediatamente.
— Este é o meu anzol de pegar piabanha! Você, Emília... mas perdoou-lhe o roubinho porque havia resultado em bem. Encastoou o anzol num cordel bem forte e...
— E isca? Que isca ponho aqui?
Hércules opinou que um fígado de carneiro seria ótimo, mas a "dadeira" não concordou.
— Se esse abutre anda há milhares de anos comendo fígado, juro que está "por aqui" de fígado e quer o que for, contanto que não seja fígado.

O abutre

Hércules arregalou os olhos. Como era claro aquilo! Como era inteligente tudo quanto a "dadeira" dizia!
Pedrinho iscou o anzol com um rim de carneiro.
E agora? Quem ia largar o anzol isca do lá perto do abutre?
Quem mais, se não o Visconde? Pedrinho chamou-o e deu-lhe instruções:
— Você vai galgando o pico e lá em cima arrasta-se por trás do abutre e larga a isca num lugar bem visível. Nós ficamos aqui segurando a ponta do cordel.
O Visconde suspirou que nem Lúcio, mas foi. Galgou o pico e lá em cima arrastou-se por trás do abutre. Mas em vez de largar a isca, teve a bela idéia de jogá-la bem diante do bico da ave. A isca nem chegou a cair no chão. O abutre, enjoadissimo de fígado e sequioso por variedade, sentiu o cheiro do rim e pegou-o no ar.
— Fisgado! — berrou o Visconde. — Puxem!...
Pedrinho puxou o cordel; mas com o arranco que ao sentir-se preso o abutre deu, o arrastado foi Pedrinho e não ele.
E se num movimento rapidíssimo Hércules não levasse a mão ao cordel, lá iria Pedrinho pelos ares, levado pelo abutre em vôo. Imagine-se (o que é imprudência de criança) que ele havia atado a pontado cordel em torno da cintura!...
Depois que o herói segurou o cordel a situação mudou completamente. O abutre, que já ia entrando em "vôo planado", capotou com o arranco, focinhou, lá veio como um pára-quedista cujo pára-quedas se engasga. Hércules ia encurtando o cordel, como quem recolhe um peixe do espaço.
Ao tê-lo ao alcance da mão, agarrou-o pelos pés e subjugou-o. Bem que a monstruosa ave se debateu! Mas se nem monstros como o leão da Neméia podiam com o herói, que esperava aquele abutre?
Emília insultou-o:
— Bem se vê que é ave de zero cérebro! Que adianta debater-se assim? Sossegue, estupor, antes que Lelé perca a paciência e esmoa essa cabeça, como fez com as cem do dragão lá do jardim.
Parece que a ameaça valeu, porque o abutre sossegou. Hércules amarrou-o pelos pés a um tronco de árvore e disse: "Pronto! Podemos ir desencadear Prometeu."
Emília pôs as mãozinhas na cintura.
— Que cabeça, meu Deus! Pois você tem coragem, Lelé, de deixar este abutre, de bico mais cortante que alicate, preso só pelos pés? Assim que virarmos as costas, ele aplica a bicanca no amarrilho, come a corda e vai voando para o rochedo e chega muito antes de nós...
Hércules abriu a boca. "É mesmo! ..." — exclamou com cara de bobo e ficou olhando para Emília à espera de solução. Emília nem segurou o queixo para pensar. Tão simples aquilo...
— Pois é só cortar-lhe a ponta duma das asas, como faz tia Nastácia com as galinhas muito voadeiras...
E foi o que fizeram. Hércules cortou a ponta duma das asas do abutre com a faca da Emília, isto é, com o moleque de Mícenas virado em faca — e pronto.
Estava o abutre inutilizado. Para o verificar, soltou-o. O pobre abutre de Zeus — o "estupor" — como dizia Emília, tentou voar, desequilibrou-se, pererecou e por fim rodou pelas perambeiras abaixo, a debater-se.
Bom. Estavam livres do abutre. Restava agora subir ao pico e desacorrentar o herói, o que Hércules fez num instante. Fortíssimas aquelas correntes, mas de que valia força de corrente para Hércules? Ele agarrou-as e despedaçou-as como se fossem de vidro.
Ah, ninguém descreve o suspiro de alívio do titã ao ver-se libertado! Seu primeiro movimento foi cair nos braços de Hércules em lágrimas — em lágrimas os dois. E Pedrinho, Emília e o Visconde também choraram de emoção.
— Livre, livre afinal! — exclamou Prometeu. — Livre, depois de séculos e séculos de martírio pelo crime de haver dado o fogo aos homens...


 

De "O pomo das Hespérides" para "Biblioteca"

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