Fé e razão
Valdir Aguilera
Filósofos e teólogos de todos os tempos se debruçaram sobre este instigante tema, fides et ratio (fé e razão). Muita tinta e papel foram consumidos (desperdiçados, querem alguns) com ensaios e discussões. Para os teólogos, fé é uma virtude; já para muitos filósofos, ela é uma crença religiosa sem fundamento lógico. Quanto à razão, tanto uns como outros concordam que é uma faculdade que nos permite raciocinar.
De modo geral, à fé costuma-se associar o fatalismo, o misticismo, a religiosidade e o teísmo; à razão subordinam-se o pragmatismo, o determinismo, a ciência e o ateísmo. .
Paralelamente a estas posições, também se opina que o indivíduo que se apóia na fé é um preguiçoso mental; quer que os outros pensem por ele ou espera que as coisas aconteçam com ajuda divina. A fé, nesta visão, seria um tipo de muleta para aleijões mentais, ou ainda, resulta de crenças ou superstições (trevas). Já a razão teria a ver com a busca de conhecimentos (luz).
Não temos intensões de nos aprofundar nesses detalhes. O objeto deste ensaio é levar aos nossos leitores algumas ponderações, convidando-os a refletir sobre elas.
Considerando-se o binômio fé-razão, pode-se pensar que uma é a negação da outra, que não podem coexistir numa mente sem resultar em concessões perigosas, do ponto de vista da Lógica.
Talvez os esforços teológicos mais célebres de tentativas de se encontrar uma conciliação entre fé e razão partiram de Tomás de Aquino e de Ignácio de Loiola. Aquele argumentava que sendo Deus o autor da natureza humana, não podia haver conflito entre elas. Este, mais pragmático, aconselhava a crer e rezar, mas agir como se Deus não interferisse nos nossos atos.
Na trilha das ponderações metafísicas desses teólogos, perguntemos: Fé e razão, será que realmente tem sentido afirmar que uma é a negação da outra? Para tentar encontrar uma resposta, comecemos com algumas considerações.
Imaginemos um objeto. Ele pode estar se movimentando ou em repouso. Essas duas condições se negam mutuamente. O objeto não pode estar se deslocando e parado ao mesmo tempo (estamos deixando de lado considerações relativistas). Uma outra situação: Em uma mesma escala de comparação (um termômetro, por exemplo), um objeto não pode estar quente e frio ao mesmo tempo. Nestes dois casos temos situações que se excluem mutuamente. Da mesma forma, sem maiores problemas, aceitamos que a crença religiosa e o ateísmo são posturas conflitantes.
Por que essas situações movimento-repouso, quente-frio, crente-ateu são tranquilamente aceitáveis como condições que podem se negar mutuamente? Procuremos a explicação.
Haverá algo em comum entre as situações que foram confrontadas? Por que nos sentimos à vontade quando comparamos movimento com repouso, frio com quente, crente com ateu? A resposta é simples: são comparações que envolvem conceitos de mesma natureza. Não nos sentiríamos tão à vontade se alguém nos afirmasse que um livro espesso não pode conter um texto de qualidade. Neste caso, o que esse alguém estaria tentando nos impingir é a ideia de que espessura de um livro e qualidade do seu conteúdo são qualidades que se anulam. Não aceitamos a afirmação simplesmente porque espessura de um livro e teor de um texto são conceitos de natureza diversa. Não podem, portanto, ser comparados.
Chegamos, agora, à nossa pergunta fundamental. Fé e razão são conceitos de mesma natureza? Não, como veremos.
A fé é algo que é ensinado ou imposto. Honestamente ensinada por alguém convencido de que está fazendo um bem; imposta por alguém movido por interesses inconfessáveis. Fé é, assim, algo que se passa a ter ao longo da vida. E é quantificável, pode-se ter mais ou menos fé.
A fé sendo quantificável, quando atinge níveis de fanatismo, pode conduzir a nefastas consequências como nos mostra a História através dos horríveis quadros produzidos pelas guerras santas, inquisições, genocídios, suicídios coletivos e terrorismo. A História nos mostra, ainda, longas e negras páginas escritas com o sangue jorrado de crimes cometidos por fanáticos em nome de um piedoso Deus.
Não devemos confundir fé com convicção. Enquanto aquela é adquirida por alguém à sua revelia, esta é fruto da experiência e do conhecimento oriundo de estudo e meditação.
Por sua vez, a razão é um atributo psíquico, inato. Não é ensinada nem imposta. Ou está presente, como no ser humano, ou não está, como nos animais irracionais. Também não é quantificável. Pode-se estar mais ou menos certo, mas, ninguém tem mais ou menos razão do que outro, (embora muitas vezes, na linguagem coloquial, dizemos que fulano tinha mais razão do que cicrano). O que se pode quantificar é a capacidade de se usar mais ou menos acertadamente a razão.
Vemos, então, que fé é uma atitude, enquanto que razão é um atributo. São conceitos de natureza distinta. Por este simples motivo não tem sentido dizer que uma é a negação da outra.
Vimos que a origem da fé está em quando nos disseram que precisamos tê-la ou nas imposições que nos incutiram. Será que podemos, igualmente, descobrir a gênese da razão? De onde veio ela?
Sendo a razão um atributo psíquico, somente pode ter sido resultado de um processo natural, independentemente de crenças ou convicções. Se o corpo e comportamento de um animal têm os atributos e características que apresentam, de acordo com as teorias evolucionistas isso acontece devido à necessidade de adaptação ao meio para conseguir sobrevivência. Da mesma forma, os atributos psíquicos – razão, inteligência, etc. – também são resultados de processos evolutivos, aparentemente ainda não adequadamente estudados, mas enfatizados na doutrina racionalista cristã.
Por que a razão é um atributo conquistado por meio de processos evolutivos? Porque, como ocorre com os atributos físicos, ela se constitui numa arma de defesa. Dela resulta o poder do raciocínio. Por assim dizer, ela permite separar o certo do errado, o que é bom do que é ruim. É, portanto, o recurso que leva a uma maior independência mental, mais liberdade de pensamento e ação, mais condições de aprendizado.
(Publicado na edição de dezembro de 2016 do jornal A Razão.)
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