Valdir Aguilera
 Físico e pesquisador

 

 

Uma pequena história do movimento

Valdir Aguilera

1. Introdução

Estamos todos bastante familiarizados com o fenômeno do movimento. A todo momento vemos objetos se movendo: um carro percorrendo as ruas da cidade; um ciclista passeando em sua bicicleta; um balão ganhando os céus nas noites juninas; uma folha caindo de uma árvore; um avião cruzando os ares; e muitos outros tipos de movimentos. Alguns deles não conseguimos ver diretamente, mas, podemos imaginá-los, como o movimento de uma bala disparada por um revólver, por exemplo.

Um carro e um avião são movidos por algum tipo de motor; o pedalar do ciclista faz a sua bicicleta andar; a força de gravidade obriga a folha a cair; o empuxo eleva o balão. Portanto, o movimento é um fenômeno que podemos explicar facilmente. Será que podemos mesmo?

Pensemos na bala disparada por um revólver. Sabemos que é uma expansão de gases numa câmara interna da arma que a impele para fora do cano. E depois que sai da arma? Em vez de prosseguir vencendo distâncias, por que simplesmente não cai aos pés do atirador logo depois que atinge a extremidade do cano? Alguma coisa a faz continuar em seu movimento sempre em frente. Que coisa é essa?

Mais de dois milênios atrás, principalmente na Grécia Antiga, os filósofos-cientistas já se preocupavam com a questão do movimento em todas as suas formas. Como sabemos, naquela época não havia automóveis ou aviões, mas já se sabia que para haver movimento era necessário algum tipo de força atuando. Era aparente que os objetos somente podiam se mover quando alguém ou alguma coisa os empurrasse ou puxasse. Mas, por que a folha cai da árvore? (A força da gravidade não era conhecida ainda, daí o mistério.) Enquanto está no arco, acionada pelo mesmo, podia-se entender por que a flecha se move; afinal há uma corda empurrando-a. Mas, e depois que deixa o arco? Como é que consegue manter seu movimento?

Questões dessa ordem incomodavam os pensadores deixando-os confusos. O movimento era algo que não conseguiam entender completamente. E queriam entendê-lo.

2. A teoria aristotélica

É bem possível que o primeiro a fazer um estudo mais organizado e metódico sobre o movimento tenha sido Aristóteles (384-322 a.C.). Em seus estudos e conclusões, como freqüentemente ocorre ainda hoje com as pesquisas modernas, foi bastante influenciado pelas teorias correntes da sua época e pelo contexto em que a filosofia e a ciência se inseriam. Não conseguindo explicar o movimento, Aristóteles optou por classificá-lo tentando, assim, aclará-lo. Desta forma, conforme propôs aquele grande pensador, os movimentos pertenciam a duas classes: havia movimentos naturais e movimentos violentos.

Antes, porém, de considerar cada uma dessas classes aristotélicas de movimentos, vamos recordar os conceitos dominantes na época sobre a constituição da matéria, em particular, sobre a natureza dos átomos. Poderemos, então, entender mais facilmente a base do raciocínio de Aristóteles que o levou a desenvolver a sua teoria sobre o movimento.

2.1 A teoria atômica

Desde Demócrito (460-361 a.C.), já se aceitava que a matéria era constituída de pequenos corpúsculos indivisíveis, os átomos. Essas partículas eram consideradas rígidas e perenes. As propriedades das diversas substâncias eram determinadas pelo tamanho e forma dos seus átomos. (Demócrito fez mais do que propor uma natureza corpuscular para a matéria. Ele afirmou, ainda, que a alma também era formada por átomos, esféricos e bastante leves. Como o conceito de alma, infelizmente, anda em baixa ultimamente, não tem havido interesse em se especular sobre a sua provável natureza. Conseqüentemente, essa parte da teoria de Demócrito não tem recebido atenção e raras vezes é mencionada.) Mais tarde, Empédocles (490-430 a.C.) aperfeiçoou a teoria de Demócrito afirmando que os átomos podiam ser de quatro tipos. Havia átomos tipo terra, ar, fogo e água. Substâncias diferentes continham quantidades diferentes desses tipos de átomos. Conforme as propriedades de uma substância, haveria predominância de um tipo de átomo sobre os outros. Aristóteles adotou e enriqueceu o modelo de Empédocles ao afirmar que cada um daqueles tipos de átomos era dotado de qualidades. Assim, os átomos podiam ser úmidos, secos, quentes ou frios. Para ser mais específico, cada tipo de átomo gozava de duas dessas propriedades. Um átomo tipo terra, por exemplo, tinha as qualidades de seco e frio, enquanto que um átomo tipo ar tinha as qualidades de quente e úmido. A Figura 1 mostra as qualidades dos diferentes tipos de átomos, de acordo com o pensamento aristotélico.

Fig.1. Os tipos de átomos e suas qualidades, de acordo com Aristóteles.


Para saber mais sobre as teorias atômicas, talvez você queira consultar o artigo A saga do átomo, publicado neste site.

2.2 Movimentos naturais

Dissemos, antes, que quando Aristóteles se preocupou com o problema do movimento, classificou-o em duas classes. Havia movimentos que eram devidos à natureza dos átomos que compunham o corpo. Esses movimentos eram naturais, cada corpo tinha o seu lugar próprio determinado por sua natureza. Se ele não estivesse em seu lugar próprio, era "forçado" a ir para lá. Assim, uma pedra, que seria formada por átomos tipo terra, tem seu lugar natural na superfície da Terra. Se fosse abandonada no ar, cairia pela tendência forçada de se dirigir ao lugar que a natureza lhe designou. Esse seu movimento era, portanto, natural. Um rio se move porque, sendo formado por átomos tipo água, procura o mar que seria seu lugar natural. As nuvens ficam lá em cima e nada mais natural, pois seus átomos são do tipo ar. Uma pena também procura o chão, mas, não tão avidamente quanto uma pedra, pois, é uma mistura de terra e ar, mais predominantemente de terra. Desta forma, podia-se compreender e ficava clara a razão dos movimentos naturais.

Ainda de acordo com a lógica do pensamento aristotélico, quanto maiores eram os corpos, mais forte era a forma em que eram forçados a se mover. Em conseqüência, os corpos mais pesados devem cair mais rapidamente do que os mais leves. A velocidade de queda de um objeto é proporcional a seu peso. Essa precipitada conclusão aristotélica, fruto de uma elaboração mental apenas, perdurou e dominou o pensamento científico-filosófico por quase dois mil anos. Foi Galileu, através de suas experiências irrefutáveis, que provou ser falsa, como veremos mais adiante.

Em seu movimento natural, os corpos podiam ir diretamente para cima (um punhado de fumaça), diretamente para baixo (uma pedra) ou mesmo horizontalmente (um rio). Os movimentos dos corpos celestes também eram considerados naturais. Seus movimentos circulares eram percebidos como sem começo nem fim, repetindo-se cíclica e imutavelmente.

2.3 Movimentos violentos

A outra classe de movimento, de acordo com Aristóteles, era o movimento violento, imposto por forças que empurram ou puxam os corpos. Uma mesa tranqüila em seu lugar poderia sofrer um movimento imposto por alguém que a empurrasse ou puxasse. Os barcos se moviam por imposição do vento atuando sobre as velas. Carros eram puxados por animais.

A característica principal desse tipo de movimento violento é que ele era causado por agentes externos, era um movimento imposto a algum objeto que não se movia por si próprio (como uma pedra caindo) mas era empurrado ou puxado. Movimento violento era movimento forçado.

Esse tipo de movimento, entretanto, apresentava algumas dificuldades de compreensão, pois, os empurrões e os puxões nem sempre eram evidentes. Por que, por exemplo, uma flecha continua seu movimento após ter deixado o arco? O empurrão da corda do arco já não opera mais. Por que, portanto, ela simplesmente não cai rente aos pés do arqueiro? Era necessário, assim, algum tipo de explicação. Desta forma, concebeu-se a idéia de que a flecha, em seu movimento pós-arco, produz uma compressão em seu extremo anterior (sua "popa") obrigando o ar a correr para trás dela e evitando, assim, a formação de um vácuo (os antigos tinham um verdadeiro pavor da idéia de um vácuo). Era esse ar o agente responsável pelo movimento da flecha após deixar o arco.

Em resumo, de acordo com Aristóteles, todos os movimentos eram devidos ou à natureza do objeto movente (movimento natural) ou a algum empurrão ou puxão constante (movimento violento). Se um objeto se encontra em seu lugar natural, ele não se move a não ser forçado pela ação de algum agente externo. Desta forma, o estado natural de um corpo é o de repouso, exceto para os corpos celestes.

3. O movimento da Terra

Para a maioria dos pensadores até o advento do século XVI, era evidente que a Terra se encontrava em seu lugar próprio, natural. Como não era possível conceber nenhuma força capaz de fazê-la mover-se, ficava, assim, provado que a Terra estava em repouso. Esse pensamento predominou durante toda a Antigüidade, Idade Média e começo da Renascença. Diante disso, é fácil imaginar a situação incômoda em que se encontravam Copérnico (1473-1543), Galileu (1564-1642) e outros quando afirmavam que era a Terra que se movia, e não o Sol! Defendendo essa posição, apesar de baseada em observações experimentais irrefutáveis, estavam em clara desvantagem perante os outros, pois, não eram capazes de explicar por que a Terra se movia. Além disso, não estava escrito nos livros sagrados, e, portanto, incontestáveis, que numa certa ocasião o Sol havia parado? A humanidade teve de esperar a chegada de Newton (1642-1727) e a manifestação da sua genialidade com a formulação da sua teoria da gravitação universal, para encontrar a explicação.

É importante, entretanto, esclarecer que o próprio Aristóteles (notável pensador de altíssimo e merecido prestígio) não considerava suas conclusões como definitivas e sagradas. Dava, assim, Aristóteles, clara demonstração de ser possuidor de admirável integridade e honestidade intelectual. Mesmo assim, seus seguidores, indo mais longe em suas crenças do que seu próprio mentor intelectual, e numa demonstração clara de fanatismo, por aproximadamente 2.000 anos consideraram inquestionáveis as idéias de Aristóteles. Esse tipo de conduta de boa parte da humanidade tem sido repetida muitas vezes ao longo da História. Grandes pensadores e filósofos acabaram sendo endeusados por fanáticos seguidores levados por marcante tendência à adoração!

Se Galileu e outros não podiam explicar por que a Terra se move, também não podiam desprezar as observações astronômicas levadas a cabo por Copérnico. Este, com a irrefutável base experimental de suas observações, desacreditou o sistema ptolomaico vigente afirmando que era a Terra que se movia ao redor do Sol, e não o contrário. Durante anos, Copérnico trabalhou sem tornar públicos os seus estudos e resultados obtidos. Isso por dois motivos. Primeiro, temia uma perseguição, pois, sua teoria, tão contrária à opinião comum, seria considerada um ataque à ordem estabelecida. Segundo, as idéias de Aristóteles tinham se tornado fundamentais na doutrina da Igreja Medieval. Afirmar que a Terra se movia ao redor do Sol era mais do que um desafio às autoridades eclesiásticas; era um desafio aos próprios fundamentos da fé. Pressionado por amigos, já no fim de sua vida, Copérnico finalmente permitiu que sua obra De Revolutionibus fosse enviada para publicação. Precisamente no dia de sua morte, 24 de maio de 1543, chegou-lhe às mãos a primeira cópia dessa famosa obra.

4. O trabalho de Galileu

Galileu foi o principal cientista do século XVI a dar crédito à teoria de Copérnico. Mas, percebeu que era necessário derrubar as idéias de Aristóteles, ou melhor, desacreditar os seus pontos de vista defendidos aferrada e cegamente por seus seguidores. As explicações de Aristóteles eram eivadas de dificuldades, já apontadas por outros pensadores. Galileu percebeu que era necessário produzir resultados irrefutáveis, e o que poderia ser mais convincente do que apresentar conclusões baseadas na observação e na experiência?

Desta forma – não se sabe se isso aconteceu realmente ou se é apenas uma lenda – Galileu subiu ao topo da Torre Inclinada de Pisa e de lá deixou cair vários objetos, de diferentes pesos. Comparando a suas quedas, mostrou que, ao contrário do que asseverava Aristóteles (ver acima), esses corpos caiam juntos quando abandonados ao mesmo tempo. Um objeto duas vezes mais pesado não caia duas vezes mais rápido.

Diz-se, também, que uma vez Galileu conseguiu reunir uma pequena multidão para testemunhar a queda de dois objetos, um leve e outro pesado, do topo da torre. Os presentes viram os objetos atingirem o solo juntos e saíram praguejando e zombando de Galileu, e continuaram firmemente fiéis ao venerado mestre Aristóteles. Entretanto, a História já registrava o desmoronamento de parte da teoria de Aristóteles sobre o movimento, já agonizante. Faltava, porém, o tiro de misericórdia.

Como já dissemos, para Aristóteles era fundamental que houvesse um empurrão ou tração para que um corpo pudesse manter-se em movimento.

– Como pode a Terra se mover se não há nenhuma força atuando sobre ela?

Esse princípio básico Galileu também conseguiu derrubar. Se um corpo estiver em movimento, afirmou, e não houver nenhuma interferência, ele se manterá movendo em linha reta para sempre, sem necessidade de nenhuma força atuando sobre ele. Nascia uma nova teoria do movimento.

Vejamos algumas das simples, mas geniais, experiências realizadas por Galileu e que provaram a sua teoria do movimento. Ele considerou vários objetos movendo-se em dois planos inclinados. Notou que bolas descendo pelo plano em declive ganhavam velocidade enquanto que bolas subindo pelo plano em aclive perdiam velocidade (Ver Figura 2).

Fig. 2. Galileu mostrou que bolas ganham velocidade ao descer e perdem ao subir.


Concluiu, dessa simples experiência, que se o plano for horizontal as bolas não ganham nem perdem velocidade. Certamente, na prática, as bolas diminuem sua velocidade até atingir a condição de repouso. Isso, porém, não era devido à sua "natureza", e sim, ao atrito com a superfície. Essa conclusão foi apoiada por experiências realizadas com superfícies cada vez mais lisas. Quanto mais lisa era a superfície, mais tempo demoravam as bolas para parar. Se não houvesse nenhum atrito, concluiu, as bolas nunca parariam.

Para dar um apoio ainda mais forte à essa conclusão, Galileu repetiu a experiência com os dois planos inclinados e desenvolveu um tipo diferente de raciocínio. Observou que, após descer pelo plano em declive, a bola subia pelo outro até atingir aproximadamente a mesma altura da qual foi solta no primeiro plano (Ver Figura 3). Apenas o atrito impedia a bola de atingir exatamente a altura inicial. Quanto mais lisas as superfícies, mais próximas da altura inicial chegavam as bolas.

Fig. 3. Galileu observou que a bola atinge a mesma altura da qual foi solta.


Diminuindo pouco a pouco o ângulo de aclive do segundo plano, a bola continuava atingindo a mesma altura, porém, caminhava uma distância cada vez maior. Em seguida, fez a seguinte pergunta: se eu tivesse um plano horizontal longo, quanto a bola percorreria para atingir a mesma altura? (Ver Figura 4)

Fig. 4. Se o segundo plano for horizontal, a bola permanecerá em movimento para sempre.


Ele mesmo deu a resposta óbvia: para sempre – ela nunca atingirá sua altura inicial. (Os dois últimos trechos em itálico foram tirados da obra Diálogos sobre duas novas ciências, do próprio Galileu.)

Essas experiências de Galileu são de uma simplicidade impressionante. Com base nos resultados, soube fazer a pergunta correta que conduziu à resposta reveladora. Este é um exemplo edificante que nos mostra que algumas vezes formular a pergunta certa é a parte mais importante de um trabalho de pesquisa. Cientistas, não raras vezes, se deparam com o dilema de saber a resposta, mas não saber qual é a pergunta!

Galileu desenvolveu, ainda, um outro raciocínio sobre os resultados obtidos com os dois planos inclinados. Como o plano em declive tinha sempre a mesma inclinação, a velocidade com que a bola começa a subir o segundo plano é, portanto, a mesma em todos os casos. Se ela encontra um plano bastante inclinado, perde velocidade rapidamente. Quanto menos inclinado o segundo plano, mais lentamente perde sua velocidade e rola por mais tempo. No caso limite, quando não houver nenhuma inclinação – isto é, o segundo plano é horizontal – a bola nunca diminuirá a sua velocidade e permanecerá em eterno movimento. Na ausência de atrito, a bola tenderá a manter o seu movimento para sempre sem perder velocidade. Concluiu Galileu que essa é uma propriedade intrínseca dos objetos materiais. A essa propriedade chamou de inércia.

O conceito de inércia, que o gênio de Galileu fez nascer dessas experiências tão simples, decretou o fim da teoria aristotélica acerca do movimento. Corpos podem mover-se sem que seja necessária a atuação de forças externas. Os resultados experimentais, por mais simples que sejam, têm o poder de demolir o mais bem construído sistema filosófico. As mais belas e elaboradas teorias, muitas vezes tão acarinhadas por notáveis pensadores, sucumbem ao mais simples resultado experimental que as contradizem.

Desacreditada a doutrina aristotélica sobre o movimento, a Terra já podia mover-se. Estava pavimentado o caminho para Newton, mais tarde, mostrar ao mundo um universo totalmente novo.

O próximo capítulo desta pequena história versa sobre o conceito de relatividade dos movimentos, introduzido por Galileu e, posteriormente, generalizado por outro gênio da humanidade: Alberto Einstein. Este assunto fica para outra oportunidade.

Bibliografia

[1] Galileo Galilei, Dialogues Concerning the Two New Sciences, Prometheus, New York: 1991.

[2] Nicolaus Copernicus, On the Revolutions of Heavenly Spheres, Prometheus, New York: 1995.

[3] Paul G. Hewitt, Conceptual Physics, Little, Brown, Boston: 1981.

[4] Valdir C. Aguilera-Navarro, O descobrimento do elétron, Anais da III Semana de Física, eds. M. C. K. Aguilera-Navarro, V. C. Aguilera-Navarro e M. Goto, UEL, Londrina: 1998.


 

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