Valdir Aguilera
 Físico e pesquisador

 

 

História do racionalismo - 48

José Alves Martins

Em honra dos sofistas

A vitória de Atenas sobre os persas, em 479 a. C, marcou também a consolidação de sua democracia. Nesse regime político surgiu a necessidade de cuidar da educação dos filhos da florescente classe dos comerciantes e artesãos, cidadãos comuns enriquecidos que começavam a fazer concorrência à poderosa classe dos aristocratas na política.

Foi da educação dos jovens dessa camada social em ascendência que os sofistas passaram a se ocupar, a fim de torná-los também aptos à vida pública, em condições de igualdade com os do partido aristocrático. Para tanto, esses jovens ávidos por se lançar com êxito na política precisavam adquirir conhecimentos gerais, aprender e dominar a arte da oratória e da retórica, a ponto de poder argumentar em público de maneira persuasiva e atraente em defesa de suas teses. O que importava aos sofistas era que seus discípulos aprendessem a falar, não importava o quê, mas bem. Pretendiam assim compartilhar com os atenienses a experiência da democracia. Mas esses mestres não ensinavam de graça. Protágoras, por exemplo, tornou-se um homem rico, pois cobrava caro por suas lições.

Reação O acontecimento filosófico-educativo chamado sofística causou forte reação entre os aristocratas atenienses, principalmente depois que se ficou sabendo que os sofistas compartilhavam das ideias democráticas, com as quais a aristocracia não simpatizava. Chocou também, claro, o jovem e aristocrático Platão, e Sócrates, seu amigo e mestre, que, embora não sendo da classe nobre, de igual modo não era simpatizante da – segundo eles – "demagógica democracia".

Uma das coisas que mais escandalizaram a nobreza ateniense foi a prática dos sofistas de cobrar pela educação, o que Sócrates chamou de prostituição. Este e seu discípulo Platão e, depois, o discípulo deste, Aristóteles – tríade ilustre do período clássico da filosofia grega – sempre negaram aos sofistas a condição de filósofos, pois achavam que a sofística não tinha entre seus fins ou motivos a busca da verdade.

Platão considerava também que os sofistas não se dedicavam à ciência e à filosofia por amor à sabedoria, como preconizara Pitágoras; que seus ensinamentos não visavam senão à utilidade prática, ou seja, à habilidade nos debates políticos ou jurídicos e o sucesso na vida pública. Eram falsos filósofos, mercenários do ensino.

Esses três filósofos foram os maiores adversários e contestadores da sofística, mas o papel de destaque nessa campanha contra os sofistas coube a Platão, que, afirma Bertrand Russel, "entregou-se à tarefa de caricaturá-los e envilecê-los". A verdade é que os ataques desferidos contra esses professores ambulantes por personagens da antiguidade grega de tamanha importância e autoridade deixaram opinião formada, que se cristalizou historicamente, sendo absorvida pela tradição até os nossos dias.

Preconceito Foi só a partir do século XIX que diversos estudiosos começaram a chamar a atenção para o preconceito contra os sofistas, até então aceito ou pouco debatido. Com os filósofos Georg Wilhelm Friedrich Hegel, alemão, Bertrand Russell, inglês, o historiador da filosofia Will Durant, americano, e uma nova geração de helenistas europeus, em que se destacam W. K. C. Guthrie, G. B. Kerferd e George Gote, foi possível chegar a julgamento mais justo e respeitoso em relação aos sofistas, que haviam sido banidos da história da filosofia em consequência do preconceito criado pelas severas críticas de seus principais adversários, Sócrates, Platão e Aristóteles, e que se tornou dogma com a chegada do cristianismo.

Essa nova geração de helenistas foi influenciada principalmente pela obra Lições sobre a história da filosofia, do filósofo G. W. F. Hegel, publicada em 1833. Nesse livro, em que valoriza o pensamento dos sofistas, o autor afirma que "não haveria Sócrates nem Platão sem a existência prévia dos sofistas", e chama o período em que viveram de "Iluminismo grego", comparado ao Iluminismo do século XVIII.

Persuasão A retórica – principal ferramenta do ensino e da oratória dos sofistas –, observa W. K. C. Guthrie, não é somente discurso e raciocínio, é antes de tudo um poder de persuasão, já que persuadir é sua finalidade. "Em honra da sofística", declara ele, "deve ser dito que a persuasão é preferível à força e à violência e que a retórica é, por excelência, uma arte democrática, que não pode florescer numa tirania. Por isso, lembra Aristóteles que o nascimento da retórica em Siracusa coincidiu com a derrubada do tirano".

George Gote, talvez o maior exaltador dos sofistas, classifica-os, em sua História da Grécia, escrita entre 1846 e 1856, como "campeões do progresso intelectual".

Segundo o professor de filosofia David Velanes Araújo, os fundadores do racionalismo grego e seus continuadores eram filósofos e educadores, e os sofistas foram os "primeiros educadores profissionais" da civilização ocidental. Eles trouxeram contribuições de alto significado para a história da educação. Entre outras, ele cita os próprios fundamentos da pedagogia moderna. Foi com os sofistas, afirma o professor, que a educação ganhou significado mais profundo, ou seja, passou a ser tratada de maneira mais consciente e racional.

Corroboram esse testemunho outros estudiosos, que se somam a outros pesquisadores que têm contribuído para uma avaliação positiva do movimento sofístico, diversa da interpretação negativa deixada pela tradição socrático-platônica e aristotélica.

Valor da dialética. Embora admitindo, em obediência às diretrizes da Igreja, a interpretação negativa da tradição sobre a sofística, o historiador do pensamento ocidental padre Leonel Franca reconhece, como vêm fazendo outros historiadores do pensamento, que os sofistas foram de incontestável utilidade para o progresso da filosofia. Abusando da dialética, diz Leonel Franca, eles revelaram o valor dessa arte e a importância de estudar suas regras e leis fundamentais; impugnando a certeza e a veracidade das faculdades cognoscitivas (que nos dão a capacidade de conhecer), fizeram sentir a necessidade de aprofundar a análise psicológica de nossos instrumentos de conhecimento e estabeleceram-lhes o alcance e as condições de legitimidade. Desbravaram, acrescenta o sacerdote católico, o terreno intelectual e descortinaram para a filosofia novos horizontes, orientando-a para o estudo do espírito e de sua atividade, bem como para a investigação dos métodos científicos do conhecimento.

Sem os sofistas, conclui ele, repetindo Hegel, já citado, não se compreenderia Sócrates. A reação deles à cosmologia e às teorias contraditórias dos pré-socráticos preparou a reação de Sócrates às duas escolas, a dos pré-socráticos e a dos sofistas, o que resultou em salutares consequências para os novos rumos do pensamento grego.

A paulista Marilena Chauí, professora de filosofia na Universidade de São Paulo, alinha-se ao lado dos estudiosos modernos que rebatem o tradicional preconceito contra os sofistas e afirmam, por exemplo, ser a sofística um dos momentos mais sérios e decisivos para a filosofia.

Sobre as críticas de Platão e outros, de que os sofistas cobravam pelo ensino, veja-se a observação de Bertrand Russell: "Platão objetava – de maneira pedante, segundo as noções modernas – que os sofistas cobravam dinheiro pela instrução. Nascido em família rica e nobre, Platão possuía meios próprios suficientes, sendo incapaz, ao que parece, de compreender as necessidades daqueles que não tinham essa boa sorte. É curioso que os professores modernos, que não veem razão para recusar seus salários, hajam repetido com tanta frequência os juízos de Platão."

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