Valdir Aguilera
 Físico e pesquisador

 

 

História do racionalismo - 49

José Alves Martins

O homem que perguntava

"Calvo, rosto grande e chato olhos fundos e arregalados, nariz grande e aberto, lábios grossos, cabeça que parece a de um carregador." Essa descrição é de um busto salvo entre as ruínas da escultura antiga. Mas não é o de um carregador, e sim o de Sócrates, o mais célebre dos filósofos. "A julgar pelo busto", observa um historiador da filosofia, "beleza estava longe de ser um dos atributos de Sócrates. No entanto, se atentarmos melhor, veremos, através da bruteza da pedra, algo da humanitária bondade e da simplicidade natural que faziam desse pensador de rude aspecto o amado mestre dos mais distintos jovens de Atenas."

Sócrates nada escreveu. O pouco que se conhece de sua vida e de sua doutrina nos chegou através dos escritos de Platão, Aristóteles e Xenofonte. Primeiro filósofo ateniense, Sócrates era filho de Sofronisco, escultor, e de Fenáreta, parteira. Nasceu em 470 antes de Cristo e foi condenado à morte em 399 a.C., aos 70 anos. Apenas na juventude, teria praticado o ofício do pai. Depois, o que passou a fazer para sustentar a si, sua mulher, Xantipa, e os três filhos é coisa que dificilmente se poderá saber. Há testemunhos de que pertencia à classe pobre, incluindo o do próprio Sócrates, que declarou viver em extrema pobreza por dedicar seu tempo de modo quase exclusivo ao que considerava a missão de sua vida a filosofia.

Os filósofos anteriores a Sócrates, chamados "físicos", naturalistas ou cosmológicos, dedicaramse a conhecer a physis (natureza), a perquirir a respeito das coisas exteriores, das leis e elementos componentes do mundo material e mensurável. "Isso é muito bom", disse Sócrates, "mas existe matéria infinitamente mais digna da meditação dos filósofos do que estas árvores e estas pedras, do que mesmo aquelas estrelas: é o espírito do homem."

Quando o oráculo de Delfos proclamou Sócrates o mais sábio dos gregos, ele, com sincera modéstia, interpretou essas palavras como aprovação de seu agnosticismo, ponto de partida de sua filosofia. "Só sei que nada sei" e "Não tenho a sabedoria, e sim a procuro" eram duas recorrentes frases do mestre. Deduz-se, portanto, que, segundo ele, a filosofia começa quando, à luz da razão, aprendemos a duvidar de nossos conhecimentos.

Sócrates passou então a sondar a alma humana, por meio de perguntas, tendo em vista desvendar ideias preconcebidas, questionar certezas, dogmas, místicas, teologismos, mitos e axiomas religiosos. Se alguém se referia à justiça, por exemplo, ele perguntava: "O que é isso? O que significais com as palavras abstratas, por meio das quais explicais tão facilmente os problemas da vida e da morte? O que compreendeis por honra, verdade, moralidade, virtude, coragem, patriotismo? Conheceis a vós mesmo?" (Essa última pergunta era uma referência à inscrição que se via na entrada do templo de Delfos: "Conhece-te a ti mesmo".) Eram questionamentos de cunho moral e filosófico como esses os preferidos por ele nos diálogos com seus jovens discípulos. Havia quem reclamasse de suas insistentes perguntas, alegando que Sócrates mais perguntava do que respondia, deixando confuso o interlocutor. "Todavia", diz um historiador do racionalismo grego, "Sócrates legou à filosofia duas respostas muito precisas para dois de nossos mais difíceis problemas: Qual a significação de virtude? Qual o melhor governo?"

Pouco sabemos a respeito dele, é verdade. "Mesmo assim", observa o mesmo historiador, "o conhecemos mais intimamente do que ao aristocrático Platão e ao reservado Aristóteles. Após 2,4 mil anos, ainda se pode vê-lo, com seu andar desajeitado e usando vestes simples e rústicas (andava sempre com a mesma túnica surrada), a passear pela Ágora (praça pública), pelo pórtico do templo, enfim, por locais públicos, reunindo os jovens que encontrava para questioná-los sobre as coisas que afirmavam ou que julgavam conhecer."

Então, fazia perguntas, exigindo definições precisas. Se a resposta vinha em forma de exemplos ou opiniões subjetivas (achismos), ele voltava a questionar o jovem sobre o mesmo assunto, sempre visando a obter dele uma definição que expressasse o real conhecimento do tema em análise. Desse modo, submetia o interlocutordiscípulo a um exercício que o levava a compreender o que significava fazer uso da razão.

Sócrates afirmava que a alma possui, em estado latente, a verdade. Seu método ou técnica de diálogo fazia essa verdade aflorar aos poucos, à medida que o aluno respondia a uma série de indagações feitas pelo mestre. Esse método compreendia duas etapas: na primeira, chamada ironia socrática (nada a ver com a figura de linguagem), aparentava desconhecimento ou ingenuidade e, com perguntas habilmente dirigidas ao discípulo, levava-o a expor as contradições em sua maneira de pensar, normalmente baseadas em valores e preconceitos sociais, e a revelar sua ignorância sobre determinado assunto. Na segunda etapa, chamada maiêutica (do grego maieutiké, arte do parto), fazia-o conceber novos conceitos sobre o assunto em pauta, estimulandoo a pensar por si mesmo. Ou seja, o método socrático primeiro demolia, depois ajudava a reconstruir conceitos, transitando do básico ao elaborado, "partejando", trazendo à luz noções cada vez mais complexas. Esse exercício, segundo Sócrates, punha o homem na procura das verdades universais (conceitos que são verdades em qualquer tempo e em qualquer lugar), encaminhandoo para a prática do bem e da virtude.

A maiêutica de Sócrates foi inspirada na profissão de sua mãe. "Ela partejava crianças; eu, a verdade, os conhecimentos verdadeiros, que a alma traz em si", dizia ele.

Assim, Sócrates, fundador da filosofia moral, estabeleceu o método de tentar chegar à verdade mediante o questionamento persistente, fazendo as perguntas básicas de moralidade e política a quem quer que pudesse ou quisesse ouvi-lo. Tamanho era o interesse que provocava que as pessoas se juntavam a sua volta, sobretudo os jovens, atraídos tanto por sua inédita e provocante técnica de diálogo, como também por sua personalidade carismática.

Vejam-se, ainda, algumas perguntas de Sócrates relativas às coisas públicas no período de decadência da democracia ateniense: Há coisa mais ridícula do que esta exaltada democracia da populaça, do que este governo feito com discussões dessa populaça, com demissão e execução de generais, com a escolha de lavradores e mercadores, por meio da ordem alfabética, para membros da suprema corte nacional? Como desenvolver uma nova moralidade, independente das doutrinas religiosas? Como salvar o país?

Foi ao fato de responder a essas perguntas, lembra um estudioso da história grega, que Sócrates deveu a morte e a imortalidade.

Ele não prestava culto aos deuses de sua cidade, dever, na Grécia antiga, de todo cidadão. Por seu lado, os atenienses mais antigos, fiéis à tradição religiosa e adeptos da democracia, sonhavam em restaurar a velha fé politeísta, reconduzir os jovens aos templos e bosques sagrados e fazê-los novamente sacrificar aos deuses de Atenas. Sócrates, porém, persistia em seu sonho de edificar um sistema de moral absolutamente independente das doutrinas religiosas. Esse código de preceitos morais pretendido por ele deveria ser duradouro e válido tanto para ateus como para crentes. As teologias ou mitos poderiam surgir e desaparecer sem afrouxar os vínculos morais que transformam indivíduos indisciplinados em bons cidadãos, virtuosos e pacíficos.

Enquanto isso, a minoria rica e letrada planejava uma revolução contra a "democracia demagógica e indisciplinada". Sobreveio, de fato, a revolução, mas a vitória sorriu para a democracia. Decidiu-se então o destino de Sócrates. Apesar de ter-se mostrado sempre um cidadão pacífico, foi acusado de ser o chefe intelectual dos revoltosos e criador de uma "abominada filosofia aristocrática", de não cultuar os deuses da cidade, de introduzir novas divindades e corromper os jovens, a quem "embebedara" com suas discussões filosóficas. (As "novas divindades" a que se referiam os acusadores consistiam no que Sócrates chamava de seu daimon entidade espiritual da qual ouvia conselhos e orientações e no que ele denominava Inteligência ou Alma Universal.)

"Melhor seria que Sócrates perecesse", disseram Anitos e Melitos, dois de seus desafetos e acusadores, escolhidos, com muitos outros, para compor a equipe de juízes que o julgou e condenou a beber cicuta, veneno extraído de pequena e delicada planta, de aparência inofensiva, que crescia em pântanos próximos da cidade. Os últimos momentos do mestre, de que falaremos depois, foram relatados por Platão, seu amigo e discípulo, numa das páginas em prosa mais belas e comoventes da literatura.

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