Valdir Aguilera
 Físico e pesquisador

 

 

O que Ptolomeu não viu ... mas poderia ter visto

Valdir Aguilera

Ptolomeu (Alexandria, sec. 2 A.D.) pode soar para alguns como o nome de um vilão de quem escapamos graças à ajuda de Copérnico e Galileu. Não obstante, foi um notável cientista.

Muitas pessoas o conhecem apenas como defensor do sistema planetário geocêntrico, que, de passagem, dominou o mundo ocidental durante cerca de 15 séculos. Inicialmente, o seu sistema foi aceito por ser o único modelo "razoável" disponível, e, mais tarde, por imposição da classe religiosa dominante. Entretanto, Ptolomeu foi um cientista bastante ativo e produziu muitos trabalhos. Suas obras mais conhecidas são: o Almagesto, que significa "o maior", versa sobre astronomia e é uma síntese dos conhecimentos gregos; a Geografia (foi esta obra que convenceu Colombo de que seria possível chegar à Ásia via ocidente); e, Optica, que trata do problema da refração atmosférica, entre outros.

Além de astrônomo, geógrafo e matemático, foi, também, físico. Em sua obra Optica – que chegou até os nossos dias numa tradução do latim da perdida versão árabe do original grego –, descreve, entre outras coisas, suas experiências com a refração da luz ao passar de uma meio para outro. Foi, portanto, um dos primeiros a fazer Física Experimental.

A seguir, vamos descrever uma das experiências realizadas por Ptolomeu e constatar que ele tinha tudo para descobrir, mas não o fez, uma lei que agora conhecemos como lei de Snell (ou de Descarte, conforme os franceses).

A montagem de Ptolomeu para estudar a refração da luz na superfície plana entre o ar e a água está esquematizada na Figura 1. Ele mediu os ângulos de incidência i e de refração r (ambos referidos à vertical traçada a partir do ponto de contato do raio luminoso com a superfície da água, conforme ilustrado). Os resultados por ele obtidos são mostrados na Tabela 1. Os ângulos são dados em graus, e "inclinação" é a diferença entre os ângulos de incidência e de refração.

i r incl. i r incl.
10

8

2,0 50 35 15
20  15,5 4,5 60 40,5 19,5
30  22,5 7,5 70 45,5 24,5
40

  29

11 80 50 30

Figura 1

Tabela 1

Ele examinou, também, o caso da refração da luz quando ela incide sobre vidro. Neste caso, descobriu que a inclinação é maior do que no caso ar-água.

Agora vem a parte mais interessante de nossa história. Ptolomeu usou extensivamente uma tabela de relações entre arcos e cordas correspondentes compilada por Plutarco 150 anos antes. Essas relações também foram utilizadas por Ptolomeu em suas análises das observações astronômicas que fizera. Usando métodos matemáticos engenhosos, Ptolomeu construiu uma outra tabela, que hoje chamaríamos uma tabela de senos. Esses estudos, análises e trabalhos estão no Almagesto.

ângulo(graus)

seno

58,0 0,8480
58,5 0,8526
59,0 0,8572
59,5 0,8616
60,0 0,8660

Tabela 2

Ao lado, reproduzimos parte da tabela de senos (em notação moderna, mas com os números obtidos pelo próprio Ptolomeu). Os valores indicados são exatos até a última decimal mostrada.
Se Ptolomeu tivesse usado sua própria tabela para examinar os resultados observados em sua experiência de refração e constantes da primeira tabela, teria constatado que a relação entre o seno do ângulo de incidência e o seno do ângulo de refração é constante (no caso, aproximadamente 1.3). Entretanto, ele não o fez e foi necessário passar cerca

de 1.500 anos  para que o holandês Willebrord Snel (1591-1626) a descobrisse. (Note que o nome do holandês tem um só 'ele', mas, a literatura científica consagrou o uso de dois 'eles' na denominação "lei de Snell".)

Não é tão raro encontrar na História da Ciência acontecimentos como esse. A informação estava "no ar", esperando para ser captada, mas, não era percebida. Seria uma falha infeliz da intuição do cientista? Ou ainda não era o momento para a "revelação"?


 

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